Com prefácio de Patti Smith, primeiro romance de Sam Shepard chega ao Brasil

Com prefácio de Patti Smith, primeiro romance de Sam Shepard chega ao Brasil
Sam Shepard e Patti Smith no Hotel Chelsea em 1971 (Foto David Gahr / Reprodução)

“O manuscrito diante de mim é uma bússola preta. Todos os pontos saem do seu norte magnético – a paisagem interna do narrador. Passei a tarde lendo, sem conseguir desgrudar, navegando por um mosaico de ecos de conversas, perspectivas alteradas, lembranças claras e impressões alucinatórias”.

É assim que a poeta Patti Smith descreve o novo, primeiro e último romance de Sam Shepard (1943 – 2017), Aqui de dentro (Estação Liberdade). No prefácio do livro, Smith avisa a qualquer leitor mais distraído: dali para a frente, o território será traiçoeiro, marcado por uma narrativa labiríntica, fragmentada, enviesada, que lembra um mosaico inacabado – como acontece sempre que se tenta registrar a memória de qualquer acontecimento.

Lançado no Brasil no final de novembro, o romance conta a história de um velho ator que, no silêncio de sua casa e no final da vida, começa a se emaranhar nas próprias lembranças: com toques de humor e melancolia, ele  volta a acontecimentos banais, relembra diálogos extensos, repensa a relação com o falecido pai e recorda das três mulheres de sua vida – Felicity, “Garota Chantagem” e a esposa, que o abandonou.

“Ele passa a vida cativado, atordoado, encantado por mulheres, atraído por elas, e no entanto sempre tentando escapar. Mas, no fundo, não se trata tanto das mulheres, e sim da essência mutável do narrador”, escreve Smith, no prefácio. E completa: “Percorremos as curvas dessa mente prismática, desse coração cansado, não como uma confissão, mas pela honestidade vigorosa, pelo encanto em não se importar”.

Aos poucos, através de sua memória já gasta, o narrador acaba rememorando uma velha América que já não existe mais: o país do gado, das estradas com restaurantes, das fazendas imensas, da geração Beat. “O que sobra são as palavras rabiscadas num panorama que se desdobra, vestígios de imagens poeirentas arrancadas à memória, um canto fúnebre de vozes desaparecidas, vagueando pela planície americana”, escreve Smith.

De fato, como se refletisse a forma fugidia da memória, o livro é organizado em capítulos com diversos formatos: texto corrido, longos diálogos, discurso indireto livre, sentenças curtas, descrições minuciosas que lembram roteiros de cinema (um dos capítulos chega, inclusive, a ser intitulado “Close de Felicity”). 

Afinal, a confusão e a singularidade das lembranças do narrador acabam, aos poucos, transformando a memória em um personagem também. “Ele passou a maior parte da vida adulta como ator, o que permite um tipo de viagem que não precisa de passaporte: só uma picape, um roteiro e seus cães no rastro da nostalgia”, aponta Smith.

Na verdade, a silhueta esfumaçada da memória é tão bem recriada nas palavras do protagonista que ele pode muito bem ser o próprio autor: um homem maduro, vivido, remoendo, ao fim da vida, aquilo que não foi bem digerido. Ou não. Patti Smith resume bem: “É bem ele, mais ou menos ele, é nada a ver com ele”. 

Seja o romance autobiográfico ou não, a descrição do narrador lembra bastante a figura de Shepard. Nascido em Illinois, nos EUA, o autor construiu ao longo da vida uma sólida carreira como dramaturgo, tendo escrito quase 50 peças de extrema importância para o teatro americano, como Criança Enterrada (que lhe rendeu o Pulitzer em 1979). Ele também atuou em diversos filmes, chegando a ser indicado ao Oscar em 1984, pelo filme Os eleitos – onde o futuro começa.

Além do mundo dramático, Shepard sempre esteve imerso na literatura: é autor de três coletâneas de contos, incluindo o finalista do prêmio literário W.H. Smith, Grande sonho do céu. Mas Aqui de dentro foi sua primeira (e derradeira) experiência com romances. Talvez de propósito, já que o livro traz mesmo a sensação do fim: aquele leve torpor do que está prestes a acabar, misturado à nostalgia daquilo que já terminou – e a consciência de que jamais poderá ser resgatado.

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