Claraboias da noite – sobre O Sonâmbulo Amador de José Luiz Passos

Claraboias da noite – sobre O Sonâmbulo Amador de José Luiz Passos

Pode ser que eu esteja ficando paranoica, mas tenho notado olhares estranhos quando estou por aí lendo um livro. Verdade ou mera impressão, um dia vou entender o motivo dessa sensação de estar fazendo alguma coisa estranha ao ler…

Tenho a mesma sensação de estar fazendo uma coisa estranha quando escrevo sobre os livros dos outros. Meus comentários acontecem na intenção de mostrar uma experiência de leitura e não uma crítica do estilo anacrônico e pedante que julga o autor e sua poiésis (tipo aquelas “malanálises” de jornal) por critérios pré-estabelecidos. Escrevendo sobre um livro qualquer, quero só partilhar o prazer de ler e sugerir, para quem não conhece, esse prazer. O prazer (sempre subversivo) de ler um livro até o fim (fico pensando naquele que me olha quando estou lendo um livro no ônibus ou no avião, se ele está curioso sobre o estranho gesto alheio cheio de prazer…).

Então, eu andava lendo O SONÂMBULO AMADOR de José Luiz Passos (Alfaguara, 2012). Sei que ele ganhou prêmios, o que é sempre bom para o livro e para o autor. Bem merecidos, é um livro inteiramente bem escrito em todos os sentidos. Um livro sem erros. Personagens bem desenhados, digamos que todos muito coloridos, bem traçados: Minie, Madame Góes, Odilon Nestor, Dr. Ênio, Heloísa, Andrezinho, o enfermeiro Ramirez. Virtuoso formalmente falando, de um lado pela narrativa que nos ajuda a ir ao peso e ao odor das coisas, mas também porque o autor parece ter vivido em um tempo ou lugar em que a língua portuguesa era bem falada. É um português bem cuidado sem ser pedante, sem ser “prosa poética” como alguns tentam reduzir a experiência da língua que tenta atingir o ordinário desde dentro.

Fiquei com esse parágrafo pra exemplificar a beleza do livro:

“Depois de me ouvir contando mas ou menos isto, madame Góes riu e disse que, realmente, nos sonhos pouco ou quase nada fazia sentido. Eu, já cansado dessa conversa, da caminhada e do filme, que tinha sido um dramalhão de guerra, apenas balancei a cabeça. Concordei com a opinião dela, sobre os sonhos serem algo sem coerência, muito embora pra mim essas visões sejam, de fato, nossas grandes claraboias da noite” (p. 119-120)

Pego as “claraboias da noite” para título do meu texto sobre O Sonâmbulo Amador. Por que um livro é como um sonho: claraboia na noite que é viver.

***

Não dá pra saber de cara o que é um “sonâmbulo amador”. Não sei se o título é só uma legenda para os livros. Certamente é para alguns, não para outros. Gosto quando o título tem nome de quadro ou é uma alusão a alguma coisa que não se entende bem. Como leitora, gosto de ficar nas impressões que tenho. Gosto quando não entendo bem, quando o autor perde, ou abandona, os fios diretos que sempre são meio didáticos, e dá espaço ao leitor para pensar, viajar, imaginar por conta própria. É um jeito bom de ler o que o outro se pôs a escrever.

“O Sonâmbulo Amador” narra a história de um homem chamado Jurandir, um homem comum vivendo sua vida ordinária, com suas questões familiares, profissionais e amorosas. Pra entender o livro a gente precisa entender que o simples homem chamado Jurandir tem também questões complexas, mais do que complexas: oníricas. É junto com ele que se vai acompanhar a história que ele mesmo narra, na qual realidade e irrealidade entrelaçam-se sem que o leitor venha a perder o chão. O leitor fica inteiro, mas Jurandir perde o chão e essa é a sua história. A história de um homem que perdeu o chão. Que é um sonâmbulo “amador”. Não um sonâmbulo amador por oposição a um que pudesse ser mais profissional. Deve ser outra coisa. “Amador” deve ser um sinal para a experiência de uma perdição. Mas a história não fica num primeiro plano. A ação é como eu gosto, bem demorada e nela se tem tempo de pensar e pensar no que será mesmo que está acontecendo. Aí vem os sonhos e quem lê fica de novo muito impressionado.

Jurandir é alguém que a gente conhece. “Ninguém hoje é obrigado a gostar de Jurandir”, mas a gente gosta.  Você começa a lê-lo e vai se aproximando de alguém que você já conhecia. Um colega de trabalho, um porteiro, um motorista de ônibus, um paciente do seu médico, um tio, um vizinho, o irmão do seu professor, um ex-marido de sua mãe, o seu pai, um sujeito no ponto de ônibus, um sujeito meio antigo, meio mofado, meio esmerado, meio antiquado, meio simples, meio complexo. Penso nisso porque a pergunta “quem é esse Jurandir?”se coloca no processo da leitura. Ele é colateral sempre. Sempre um conhecido e um desconhecido. Dizer quem ele é implicaria contar o livro e, por isso, é preciso parar por aí evitando muita interpretação. Mas lendo o livro acontece muita coisa com nossos pensamentos, nos damos conta que “vivemos como sonhamos”. Aquilo que parecia ser, não era bem assim como parecia, mas isso é efeito do sonho e da realidade entrelaçados daquele jeito que a gente conhece, porque acontece um pouco, às vezes muito, na vida.

Aquele lugar onde, sonâmbulos, procuramos uma claraboia pra fugir e depois, se for o caso, poder voltar.

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