Cinemateca

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O nosso coração está em chamas. Sim, não é a Cinemateca de São Paulo que arde, somos nós, paulistanos eventualmente, brasileiros sempre. Parece definitivamente que os ventos, nesses últimos anos, não estão a nosso favor. Nem na mata, nem na cidade. Pelo contrário, são combustíveis da destruição insana.

A primeira lembrança que me veio à cabeça foi luminosa. Aquele lindo poema A Lua foi ao Cinema, do Paulo Leminski:

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
Uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
– Amanheça, por favor!

Estrela pequena e sozinha. O brilho cabe em uma janela, mas basta. E salto para minha segunda lembrança, Eduardo Coutinho. Ele mesmo, o cineasta das lembranças. De gente comum.

Fui correndo rever Eduardo Coutinho, 7 de outubro, na plataforma do Sesc Digital, na seção Cinema em Casa. Como um ato pessoal simbólico de combate ao incêndio, cheio de urgência. Pensando: e se a única cópia existente, aquela analógica de antigamente (faz de conta que não vivemos o tempo digital), estivesse lá queimando? O que perderíamos para sempre?

Começa o documentário, uma entrevista sobre ele mesmo, Eduardo Coutinho, nosso maior documentarista.

A proposta que introduz o roteiro da entrevista é: falar sobre a verdade da filmagem e não a filmagem da verdade. Em suma, por que fazer documentário e não ficção?

E partindo da escolha da câmera extática, frontal, sem movimento e alternância, Eduardo Coutinho discorre, comentando o filme Santo forte, de 1999:

Eu fiz aquele filme. Quando você consegue, é a coisa mais extraordinária do mundo. Quero fazer esse filme sobre esse tema, enfim, feito dessa forma, porque eu sei que só eu quero fazer, no mundo. E digo mais: porque eu quero e/ou posso fazer. Porque o cara pode querer e não poder, porque ele não vai deixar a câmera no mesmo lugar (…) Um filme que fosse contra todas as regras, um filme que fosse em cima da coisa extraordinária que é o diálogo, a fala humana. O corpo que fala é uma coisa fenomenal, a origem de todas as coisas vem disso, antes da escrita e tudo. Então, esse troço me dava a impressão que eu tô fazendo algo que só eu posso fazer, no mundo. Isso me dava um prazer indizível (…) E quando ele foi recebido, e contra todas as expectativas das pessoas que viam e ouviam, foi um prazer indizível. Tudo ao contrário de quando eu fazia ficção, que eu tinha medo do que os outros iam dizer. Entende, eu tinha certeza que o filme que fiz tinha valido a pena. (…) Imagino o que os caras que fazem cinema experimental devem achar, quem faz cinema da minha geração, de meia idade, o que devem achar desse troço. As pessoas vão ao cinema assistir gente falando? É um absurdo! E é esse absurdo que me mantém vivo.

O entrevistador escolhe, então, uma sequência de Edifício Master, de 2002, para Coutinho, depois, comentar. Trata-se da entrevista com uma jovem.

Eduardo Coutinho (EC): Você gosta de viver?
Jovem: Eu gosto, mas eu digo pra minha mãe, a hora que eu morrer não chora, porque eu vou estar melhor do que todo mundo.
EC: Por que você acha isso?
Jovem: Porque aqui é muito ruim, tem muita pessoa ruim. Por isso que eu digo, a hora que eu morrer eu vou ser feliz. Eu não quero morrer não, eu amo a minha vida, eu não quero morrer, mas eu sei que vou parar de sofrer. Não vou ter que trabalhar, olha que bom! Acordar sete horas da manhã é muito ruim. É verdade, eu não gosto de trabalhar (risos), eu não gosto. Eu trabalho porque tenho que sustentar minha filha, mas, se eu pudesse, eu vivia na mordomia.
EC: Mordomia que que é?
Jovem: Acordar ao meio dia, almoço pronto, acho que tenho que casar com milionário… Eu e minha filha ficar brincando o dia inteiro, enchendo o saco uma da outra, telefonando pra todo mundo, é isso que eu queria.
EC: Você teve coragem, dando um depoimento corajoso, entende? Por que você tomou a decisão de falar? É um filme que vai passar no cinema depois. Explica isso.
Jovem: Isso não é coragem, isso é normal, acho uma coisa normal, hoje em dia no mundo que a gente vive. As pessoas ter a cabeça antes de Cristo já passou, no mundo hoje tudo é normal. Nasce gente de tudo quanto é jeito, é home com home, muié com muié, né? 50 muié pra cada home. E cada coisa que não deveria ser normal: é gente roubando gente, é político roubando gente, é ladrão roubando de pobre, ladrão pobre roubando de pobre, ladrão rico roubando de pobre, gente roubando de gente, o pessoal acha normal. Eu fazer programa é anormal? É coisa de vir me apedrejar? Eu falo mesmo, eu não tenho vergonha. No meu bairro, todo mundo sabe, minha família toda sabe, e quem quiser gostar de mim, vai ter que gostar assim, eu não acho isso anormal.
EC: Vou te perguntar uma última coisa só. Você, quando sua filha crescer, ela tá com 6 anos, né? Você pretende dizer a verdade pra ela?
Jovem: Vouu, que é isso? Vou orientar minha filha de tudo. Quando minha filha tiver com 14 anos, eu vou comprar remédio pra ela, já falei com minha mãe, vou comprar remédio, porque não vou fazer como minha mãe fez comigo. Eu não quero, nem ela nem minha irmã, não quero que façam o mesmo. Vou trabalhar pra pagar os estudos, curso, tudo o que ela quiser fazer, ela e minha irmã, eu ajudo, eu pago, eu dô tudo, para não fazer o mesmo. Mas se quiser fazer, você acha que eu vou proibir? Não vou não, vai doer, igual doeu na minha mãe. Claro, é minha filha, paciência! Eu vou falar, olha tá doendo, você tá me magoando. Eu não vou falar isso, não! Você magoou a minha vó (jovem pensando), e ela não falou isso pra você…

Esse fragmento serviu a Eduardo Coutinho para desenvolver melhor a ideia que colocou, de início, sobre o “corpo que fala”, caracterizando a relação entre entrevistado/entrevistador como uma relação erótica, porque se estabelece uma relação de confiança, de proximidade e de troca. Esse é o encantamento que se cria, que nos faz ficar ouvindo e vendo gente que fala, por algumas horas…

Por mais que tentemos mostrar a química que ocorreu, com o recurso da transcrição textual desses trechos, nunca essa compreensão será completa. Aliás, passa muito longe disso. Nunca poderemos descrever suficientemente a tranquilidade, a segurança, a clareza e a beleza desta jovem. Isso só o cinema faz.

Espero que o incêndio da Cinemateca tenha sido controlado. E que tenha se perdido pouco.

 

Solange Peirão, 70, paulistana, uma brasileira comum.
Trabalha na área de História e Memória. Cinéfila.

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