Cem anos de Paul Celan: uma homenagem possível

Cem anos de Paul Celan: uma homenagem possível
O poeta tradutor e ensaísta romeno Paul Celan,1967 (Foto: Heinz Köster/ullstein bild)

 

Em 23 de novembro de 1920 nascia o poeta romeno de língua alemã Paul Celan, um dos poetas mais potentes do pós-guerra, que carrega uma das vozes mais radicalmente singulares da poesia de todos os tempos. Sua voz, aliás, plena de faltas, de silêncios, de suspensões, de reiterações, de retificações – de balbucios: “se viesse um homem ao mundo, hoje,/ (…) só/ poderia/ balbuciar balbuciar”– entrega ao mundo outras maneiras de abordar a palavra, a escrita, a poesia.

Nesse ano de 2020, o mundo todo passa por uma grave crise sanitária e de saúde decorrente da pandemia da Covid-19 (que acomete os nossos modos de respiração); e, no Brasil, somos regidos por um governo de fascistas e ineptos, que se utilizam do discurso de ódio (irmão e tributário, portanto, de discursos como aqueles de Hitler, que submeteram Celan e sua família – judeus – aos campos de concentração) para controlar e subjugar a população, em especial a em maior situação de vulnerabilidade, bem como os mais diversos grupos minoritários.

Nesse mesmo complexo e irreconciliável 2020, exatamente 50 anos depois de seu último salto (um salto para a morte, para a suspensão da vida e da respiração, definitivamente, um salto em direção ao irregressável Sena); hoje, dia 23 de novembro, comemoramos o centenário desse poeta definitivo e que continua a fazer silêncio – a ecoá-lo – em nossas palavras, em nossas escritas e leituras.

Assim como nos dias de Celan, atravessamos, aqui, em nossos tempos – como se algumas datas se reapresentassem, se erguessem outra vez – mais um período sombrio da história da humanidade. Tomamos de empréstimo suas palavras, em carta a Hans Bender, de maio de 1960: “Vivemos sob céus sombrios, e… são poucas as pessoas. É por isso que existem tão poucos poemas”.

E, no entanto, seguimos. E, no entanto, escrevemos poemas, vivemos, respiramos. De lá até aqui. Atravessamos e revisitamos essas datas, vivemo-las em seu presente também. Nosso. Cada um de nós seguindo “ao encontro da língua com sua [própria] existência, ferido de realidade e em busca de realidade”.

Por isso, apesar dos dias sombrios – recorrência histórica e humana por excelência; insistência histórica e humana, pois –, quisemos fazer convergir aqui poéticas, quisemos fazer convergir aqui vozes que, sendo completamente aquilo que são, apresentam em sua singularidade caminhos entre caminhos, passagens, travessias, viagens; e que também guardam silêncios, vazios, esperas, ruínas. Quisemos fazer convergir aqui essas vozes específicas: para que haja mais poemas, outros poemas, ainda que poucos; para que sejamos mais e mais humanos – diante das palavras que nos exigem, diante da vida.

São poetas que aprenderam com Celan a falar sem separar “o Não do Sim”; poetas cujas falas (trans)portam “sombra bastante”, “tanta/ quanto exista à tua volta repartida entre/ a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite”. Suas obras revelam uma nova forma de respirar; portanto, exigem uma nova forma de ler, exigem uma nova forma de estar no mundo. Parece ser essa a demanda legada pela obra de Celan: mudar a respiração, suspendê-la, prendê-la ante o salto ou o poema, ante a vida, libertá-la; Atemwende (título de seu livro de 1967), imagem que também aparece no discurso O Meridiano (pelo recebimento do Prêmio Georg Büchner, em 22 de outubro de 1960).

Isso não quer dizer que haja uma homogeneidade entre as diversas poéticas reunidas aqui. Pelo contrário: são poetas com trajetórias muito distintas na poesia brasileira e que de alguma forma trazem em suas obras certa ressonância – certo sopro ou fôlego, certo fogo – da obra de Celan. Seus poemas entoam o silêncio de cada palavra a plenos pulmões; e sabem também a sua sombra; sabem que se encaminham a ninguém e a Ninguém, a todos; a si e a outrem.

É com grande alegria, enfim, que, a despeito dos tempos sombrios (de todos os tempos), apresentamos essa seleção de poemas em homenagem a – ou diálogo com, ou travessia por – a obra de Paul Celan. Muito nos orgulha poder trazer esses trabalhos conjuntamente – criando entre si, ainda, uma coesão muito particular, um vínculo – para os leitores da Revista Cult.

Participam desta seleção os poetas Carlos Orfeu, Daniel Arelli, Dirceu Villa, Edimilson de Almeida Pereira, Fabiano Calixto, Fernando Maroja, Francesca Cricelli, Leila Danziger, Maíra Mendes Galvão, Mar Becker, Matheus Guménin Barreto, Natália Agra, Paula Glenadel e Thiago Ponce de Moraes.

 

***

 

A queda como outro nascer

 

o pássaro leva o rio
a palavra – outro abismo
em seu canto azul

nervo do horizonte
fluxo e neve
rumoreja o silêncio

aberto no poema
como a carta
a casa – o fogo

ter a queda como
outro nascer no
pulmão da asa

nunca esquecer
a mãe essa árvore
escrita na carne

nunca esquecer
o inverno dos lábios
de bachmann

a traição de heidegger
o filho – o último abraço

Poema de Carlos Orfeu

 

Outra esfinge

 

fere-me a retina
com um estilete
solar

faz parte de seu modo de ser
aparecer
dar-se gratuita
como a própria paisagem
que dela se destaca
não se destaca

não vejo nada
que não possa decifrar
com uma só mirada

mas sei que me turva a visão
o antienigma que ela desfere
em mim:

– você é você, exatamente
quem pensa que é

Poema de Daniel Arelli

 

Levado a casa em esquecimento

 

eu fui ninguém na terra sem olhos,
eu fui os ouvidos de uma multidão sem língua,
meus cabelos, a água, meu rosto,
a superfície transparente,
minhas palavras, a corrente inescapável
onde o mergulho é esquecimento.

 

Heimgeführt Ins Vergessen

 

ich war niemand auf der erde ohne augen,
ich war die ohren einer menschenmenge ohne zunge,
meine haare, das wasser, mein gesicht,
die transparente oberfläche,
meine worte, die unausweichliche strömung
in der das tauchen vergessen wird.

Poema de Dirceu Villa

 

Esse rio depois

 

do Sena – morto. Ossos fizeram um dique
na história. O que lemos é o caniço
por onde respiravas. Noutra margem,
a casca resume a árvore, por mais que algo
pouse não há sopro. Ardeu a casa aliciada.
A rosa-de-ninguém nasceu com atraso,
nessa antiga e nova ausência sua nervura
é um canto: mudado em outra língua
o sobrevivente não se distingue da névoa.
Não quer renascer, sua fuga é a revolta,
vigia-se. Não há razão para escavar
(nem pás que removam o fio de sangue)
mas nos obrigamos ante o terreno execrável.
Outono entre os sapatos, em ti – escavaram
o que feroz nos redimia. O melro afogado.
Escavamos a ver se a terra abria em leito.
A mão pensou no feto antes de enlouquecer
– tarde. O terreno tinha sócios. O corpo
crispou além da urna, nada dirá da vida
submersa – cortou a cerca elétrica em si.

Poema de Edimilson de Almeida Pereira

 

Pólvora contra comprimidos

 

…………nos cerca
a conturbada
………………………..materialidade da morte –
………………..suas duplicatas,
procelas, poros,
……………..seus repores de sol
……………………………de porcelana
podre, zumbis
…………..instáveis incapazes
de fazer futuro

…………….
vírus de gosma
e chumbo
cheiro rosa de pólvora
…………..sobre a cova rasa

vício e vida no mesmo
………….processo embrionário

o rosto congelado
…………..do planeta

……………………..postergação indefinida da sorte

(este é o momento em que
…………..lobisomens se
…………………….deliciam com tremoço… )

……………no rosto
rasgos de soturnos
……………coturnos
……………latejam
………………………….para sempre

nenhuma palavra
……………………………..dorme
……………….no pesadelo dessa flor

Poema de Fabiano Calixto

 

Ponte Mirabeau

 

Senhor no fim do horizonte,
Estamos nos dois extremos da ponte
E vago na tua direção,
Mas jamais chegarei ao teu lado,
Se a diáspora é uma travessia sem fim,
Na eterna marcha do Rio Sena
Em busca da morada.

Apenas o curso do rio vai unir
Tudo que o vento dispersa e a guerra destrói
Nas trincheiras de areia e teias de aranha.
Apenas as legiões do rio marcham
No tempo da métrica
E na hora do sempre e do nunca mais,
Alcançando o eterno florescer.

Ó senhor,
O curso do rio é uma lagarta que rasteja
Dentro da métrica e fora do tempo,
Chegando mais longe que o soldado
A rastejar no front da guerra.

Ó senhor,
Olho para o curso do rio e vejo,
Além da minha imagem no espelho,
As botas do meu pai
E os cigarros da minha avó,
A garrafa de vinho que meu tio bebia
E levava debaixo do braço,
Como se fosse o gato de estimação.

Vejo a correnteza levar os restos do caderno
Que eu usava na escola.
Vejo a infância em Czernowitz
E o pente que arrumava o cabelo da minha mãe.

Senhor,
Vejo no curso do rio toda a minha família,
Vagando em busca da terra prometida.
Eu saltarei dessa ponte
E abraçarei e beijarei todos eles.

Poema de Fernando Maroja

Paul Celan visita a galeria Dorothea Loehr, em Frankfurt, julho, 1964 (Foto: DR
Paul Celan na Galeria Dorothea Loehr, Frankfurt, julho 1968 (Foto:  Reprodução)

 

……………..“Com tudo que aqui tem espaço,
……………..mesmo sem
……………..língua.”
……………..[Paul Celan, DE PÉ, na sombra]

MINHA LÍNGUA aqui
……………….é muda
……………….ou quase

só existe no silêncio
diálogo íntimo assoprado
desenlace da tradução.

Minha língua, flor inversa,
palavra que é corpo e é linguagem
e não posso transpor.

*

Adentar o figo
…………….sua polpa-essência
é adentrar um jardim de vespas mortas

a língua a saborear a planta
o bojo doce um dia à espera da fecundação.

*

Que gesto é esse que se repete há 34 milhões de anos?

*

Adentrar essa língua
……………….sua milenar essência
é adentar minha memória de pedra

a língua antes dos dentes
o bojo sem contornos da existência primordial.

*

Não só na queda se perdem as asas
(há de se deixá-las do lado de fora)
também ao percorrer o corredor afunilado
à procura de alimento e perpetuação.

Ao penetrar o figo, abandonamos o voo.

*

Para cavar uma saída da urna silente
servem mandíbulas fortes
dentes ferozes e olhos minúsculos
……………………………………….– saber se orientar na escuridão.

*

A muda de hortelã não morreu ao ser arrancada do solo
– sobrevive num vaso –
inventou raízes e uma nova folhagem.

*

Na minha cidade aguardamos o degelo do solo
como a língua espera pela dentição –
roçar as coroas que apontam das gengivas
preparar a mordida –
o que sobrevive sob o manto branco?

Nossos corpos estranhos se preparam
(como a vespa-mãe depõe seus ovos no figo)
raízes de hortelã
em busca do chão.

Poema de Francesca Cricelli

 

Destroços

 

dessa vez
creio que o início de tudo
foi a persiana que esqueci aberta
deixando que o sol esquentasse
em minha ausência
furiosamente
dias e dias
os versos de Celan
acumulados sobre a mesa

as palavras
de madeira e borracha
os carimbos
começaram a derreter e a gaguejar
– lallen und lallen –
balbuciar e repetir
: destroços celestes
: cinza-e-cinza Ho-sana anéis-almas
de uma forma não prevista no início do projeto
que queria apenas escavar e manobrar
os versos
como se faz com a própria
terra-areia-ar-eu-você-Ossip-Marina
e tantos outros nomes
todos os nomes
impronunciáveis
derretidos
fundidos

aos jornais
que cresceram como erva daninha
em minha ausência
furiosamente
dias e dias
a linguagem informativa
acumulada em pilhas
que era preciso desfazer
esvaziar
apagar
erodir a matéria-jornal
turvá-la de poesia

mas percebi
– surpresa –
o desastre
o desvio
tudo fora feito
sem mim

Poema de Leila Danziger

 

Coro fantasmaglótico para Celan

 

ante ele diz tu
diz tu!
— schnever!

en seno diz tu!
diz tu!
– schnever!

dizque diz tornassol
fala-fadeja
incandesce
sobeja

ante-náutilo
diz – tum!
emudece
tum!

como gota em seio ancora
torna vau sopro evapora
vau torna sopro evapora
seio em gota como ancora

tornassol dizque diz
diz tu!
– schnever!

en seno diz tu!
diz tu!
– schnever!

Poema de Maíra Mendes Galvão

 

Com Petre Solomon, em 1947 (Foto: Reprodução)

 

minhas coxas ainda úmidas de sêmen

meu nome ainda dentro
do teu nome

juntos, nós dois
respirando o véu que nos esconde
um do outro

enquanto o dia nasce
enquanto minha boca segue dentro da tua boca, ainda

cercada de um fogo frio
como uma estrela morrendo

Poema de Mar Becker

 

Quase morte de uma avó: estudo de caso nº 1

 

Der halbe Tod,
großgesäugt mit unserm Leben,
lag aschenbildwahr um uns her –
Paul Celan – “In Prag”

A meia morte,
amamentada com a nossa vida,
jazia afim-à-cinza em torno a nós –
Paul Celan – “Em Praga”
(tradução própria)

a –
Rasgar em uma só madrugada
o que resta de uma infância: perdê-la sob o sol.

b –
Ter sobre os ombros seus mortos
– cinza inversa.
Pegar a xícara como quem tem seus mortos
lavar as mãos como quem tem seus mortos
abrir a janela como quem tem seus mortos
mijar como quem tem seus mortos
dormir como quem já não dorme só mais
depois do morto inaugural.

Perder posse do que se era
depois do morto inaugural.

Perder o gesto que era apenas gesto irrepetido
não saudação
não pedido
não suborno do tempo.

Manchar irremediavelmente as manhãs.

Poema de Matheus Guménin Barreto

 

Heimkehr

 

estar de volta à casa,
após mergulho fecundo no rio –
refiar o vazio

leio o leito
frio do rio

volto à casa

)mergulh
ar
……………até
……………acab
……………ar
……………o
……………ar(

cômodos de água
onde morar

saber de cor o vazio
desfiar a casa
fio a fio
estar de volta

à casa

Poema de Natália Agra

 

Tardígrado

 

O fim do mundo não parece tão distante.
Por isso, nos (trans)portamos,
e conosco
toda a gravidade e a graça.

Lentos.
Sós, não sós.

Tardígrado,
anelamos a mesma água,
mesmo sendo tu – e – eu.
Tão diversa e agudamente existir.

Rosa-de-ninguém,
mamão-nascido-no-lixo,
abóbora-de-todo-terreno.

Em toda parte, canto.

Poema de Paula Glenadel

 

Pallaksch

 

com que a língua em ruína versa e atravessa a vertigem da tua fala
que farfalha entre as torres e rios de Hölderlin

Folhas de outro outono feito rastros recém-engolidos pelas sombras
da terra sem rosto do desterro

…….Outrora é hoje-e-agora com seus destroços

Rente às margens sentas, sonhas, experimentas os escombros como mobília
para a paisagem de que ora podes somente ouvir o ruir de seu deteriorar

………O pássaro da noite vibra frente aos teus olhos convertidos à cegueira,
canta o indecifrável, redime a tua memória, sibila junto ao teu coração

Afundas os pés na lama do rio que no fundo é tudo aquilo que cala:
estás em casa, estás
aqui
feito
fluxo de eloquência
da tua
própria presença
que
per-
trans-
ultra-
passa
e
fica


Pallaksch

Poema de Thiago Ponce de Moraes


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