Caso Alec Baldwin: precarização e morte na indústria cultural

Caso Alec Baldwin: precarização e morte na indústria cultural

 

Semana passada um grave acidente com arma de fogo durante as gravações de um filme nos Estados Unidos pôs a nu a precarização das condições de trabalho na indústria cultural.

O acidente envolveu o ator Alec Baldwin, que disparou por engano uma arma de fogo no set de um filme de ação. O disparo atingiu a diretora de fotografia do filme, Halyna Hutchins, que faleceu instantes depois.

A princípio, tudo pareceu mero acidente. Mas revelações feitas pela imprensa de Los Angeles mostram que o caso é só a ponta de um incômodo iceberg: a degradação das condições de trabalho dos empregados na indústria do entretenimento.

As chamadas indústrias criativas movimentam hoje grande parcela da produção de bens e serviços. Como afirma o professor titular da Universidade Federal da Bahia, Albino Rubim:

O imbricamento crescente entre cultura e economia […] tem destinado à cultura uma centralidade na nova conformação econômica do século 21. Tal articulação – retida por meio de noções como: indústrias culturais, indústrias criativas e outras – tem mobilizado um conjunto não desprezível de problemas a serem enfrentados (Políticas culturais e novos desafios. Matrizes, 2(2), 2009. p. 110-11).

Em meados da década passada a economia da cultura já movimentava 7% do PIB mundial e era responsável por 6% dos empregos formais, como informa a obra Cultura pela palavra: coletânea de artigos, discursos e entrevistas dos ministros da Cultura 2003-2010. Muitos desses empregos estão ligados à produção cinematográfica.

O cinema foi a primeira arte eminentemente industrial. Podemos perceber isso, desde logo, prestando atenção aos letreiros de um filme. Surge ali um verdadeiro batalhão de profissionais que inclui cenógrafos, figurinistas, iluminadores, fotógrafos, câmeras, continuístas, designers gráficos, assistentes de gravação e direção e uma série de outras funções. Eles são os operários da indústria cultural.

Como vivem essas pessoas? Quais suas reais condições de vida e de trabalho? Muitas vezes isso permanece oculto à maioria de nós, espectadores dos produtos dessa indústria. Mas o acidente ocorrido nas gravações do filme Rust lança luz sobre a realidade do trabalho na indústria cultural.

Esse filme era gravado em um set de filmagens no estado norte-americano do Novo México. Ali tem florescido, desde o início dos anos 2000, um polo cinematográfico significativo, porém mais modesto do que o do distrito de Hollywood, na cidade de Los Angeles.

Esse polo do Novo México emprega trabalhadores residentes na região, principalmente nas cidades de Albuquerque e Santa Fé. Os filmes que lá se produzem são, em geral, as chamadas “produções de baixo orçamento”. Os empregados nessas produções trabalham em turnos punitivos. Essa situação tem motivado muitas greves e protestos pela melhoria das condições de trabalho.

Vale lembrar que esse setor também foi profundamente atingido pela pandemia. Um fato que, aliás, aconteceu também aqui no Brasil, levando à aprovação – após muita luta – da Lei Aldir Blanc, que instituiu um auxílio emergencial destinado aos trabalhadores da cultura.

Vale lembrar que o Novo México, embora tenha uma população pequena, possui uma das maiores taxas de pobreza dos Estados Unidos. Isso faz com que a população local, mesmo quando não trabalha diretamente no setor, valorize muito a indústria de filmes que vem crescendo, e que é uma alternativa de emprego.

Foi nesse cenário que, na última quinta-feira (21/10), uma tragédia aconteceu durante as gravações do filme Rust, que se passa num cenário de faroeste. De acordo com a polícia da cidade de Santa Fé, um assistente de direção do filme pegou uma das três armas disponíveis para as filmagens e a entregou ao ator Alec Baldwin, avisando que a arma estava descarregada. Pouco depois, Baldwin apertaria o gatilho.

O projétil atingiu a diretora de fotografia Halyna Hutchins, atravessou seu corpo e acertou também o diretor Joel Souza. Halyna veio a óbito.

Nesse tipo de produção se costumam usar armas de verdade, por conta do realismo que elas proporcionam. Isso apesar de muitos técnicos em efeitos visuais dizerem que os benefícios das armas reais não compensam tanto, e que se poderiam usar armas com balas de borracha ou com tiros de festim.

Durante as gravações, quem cuida das armas é um profissional chamado “armeiro”. Nesse caso havia uma armeira: uma jovem de 24 anos, filha de um profissional experiente, que também trabalhou como armeiro em outras produções.

Os protocolos de segurança indicam que uma arma carregada não devia ter sido entregue ao ator. Portanto, à primeira vista o acidente pode ter resultado de negligência por parte da armeira, ou por parte do assistente de direção, ou por parte dos dois.

Segundo o jornal Los Angeles Times, diversos depoimentos afirmam que o assistente de produção, Dave Halls, era um profissional experiente e focado. Uma de suas funções era checar a segurança das armas. Após o acidente, ele disse que não sabia que a arma estava carregada com cinco tiros. Revelações dos últimos dias dão conta de que ele já havia se envolvido em outro acidentes, durante trabalhos anteriores.

Quanto à jovem armeira, Hannah Reed, ela era inexperiente, estava em seu segundo trabalho. Num podcast feito cerca de um mês antes do acidente, ela disse que não tinha certeza se estava preparada para a função, pois não sabia carregar armas muito bem. Nesse caso, fica a pergunta: por que foi contratada para a função?

Alguns outros detalhes dessa história podem ajudar a responder essa pergunta. Primeiro fato importante: cinco dias antes do acidente um dublê de Alec Baldwin já tinha disparado acidentalmente dois tiros depois de ser informado que a arma não estava carregada.

Esse fato deveria ter sido suficiente para interromper as gravações pelo menos até que uma sindicância fosse concluída. Mas isso não foi feito, embora a equipe do filme tenha chegado a enviar mensagens preocupadas à produção, levantando a questão da segurança das armas no set.

O que fica claro é que a inspeção das armas e outros protocolos de segurança – que são de praxe nesse tipo de indústria – não eram seguidos pelos produtores. Um membro da equipe de câmeras relatou ao jornal Los Angeles Times que “não havia reuniões sobre segurança. Não havia a certeza sobre se isso poderia ocorrer novamente. Tudo o que eles queriam fazer era correr, correr, correr [com as gravações]” (Rust camera crew walked off set before fatal shooting).

Além disso, problemas já vinham se acumulando há vários dias no set de filmagem. Apenas seis horas antes do acidente fatal, meia dúzia de operadores de câmera e seus assistentes tinham cruzado os braços para protestar contra as condições de trabalho em um filme considerado de “baixo orçamento”.

As reclamações da equipe eram sobre o excesso de horas de trabalho, longos trajetos a serem percorridos e atrasos nos contracheques. Um dos membros declarou que o grupo também estava preocupado com a segurança no set.

Mas a questão que mais pesava era a distância do set de filmagens. A equipe queria pernoitar em hotéis em Santa Fé, a cidade mais próxima. A produção a princípio se comprometeu com essa demanda, mas depois recuou.

Com isso, boa parte dos trabalhadores, residentes na cidade de Albuquerque – mais distante do set – tinham que viajar 160 km todos os dias (80 de ida, 80 de volta). Isso irritou os trabalhadores da produção. Eles estavam preocupados que pudesse haver um acidente em um deslocamento tão longo, depois de ficarem de 12 a 13 horas trabalhando nas filmagens.

A diretora de fotografia Halyna Hutchins, que terminaria atingida pelo disparo acidental, vinha defendendo condições mais seguras e chegou a chorar quando a equipe de filmagem decidiu parar as gravações reivindicando melhores condições de trabalho.

Os operadores de câmera que cruzaram os braços eram todos sindicalizados na International Alliance of Theatrical Stage employees (IATSE). Este é o forte sindicato dos trabalhadores na indústria teatral e cinematográfica norte-americana.

Quando eles decidiram cruzar os braços, vários membros da equipe que não eram sindicalizados apareceram para substituí-los. Com isso, um dos produtores solicitou aos trabalhadores filiados ao sindicato que deixassem o set e ameaçou chamar a segurança para tirá-los de lá. Os tiros ocorreram apenas seis horas depois que os câmeras deixaram o local.

O irônico é que tudo isso aconteceu poucos dias depois que o sindicato fechou um acordo com os estúdios para evitar uma greve da categoria. Um dos itens colocados na pauta de negociações dizia respeito às condições de trabalho. O acordo foi feito mas, pelo visto, a produção do filme não se adequou a ele.

Agora, a tendência é que a responsabilidade pelo acidente termine recaindo sobre a armeira, ou sobre o assistente de produção, ou sobre os dois. Claro que eles podem ter parcela de responsabilidade.

Mas, quando analisamos as condições e o contexto do acidente, fica claro que houve uma cadeia de erros, ocasionados pela tentativa dos produtores de diminuir custos, seja reduzindo o tempo no set de produção (o que leva a atropelos e negligência), seja contratando trabalhadores de menor qualificação, pagando-os mal e fazendo-os trabalhar mais.

Assim, aquilo que parece mero acidente ou, no limite, resultado de erros individuais revela-se, na verdade, uma tragédia evitável, determinada pelas condições precárias em que o trabalho como um todo vinha sendo realizado.

Essa é uma realidade não apenas da indústria cultural norte-americana, mas de uma série de empreendimentos do mesmo tipo em vários lugares do mundo. Isso inclui nosso país, que também já experimentou tragédias em locais de cultura e lazer, sendo o caso da boate Kiss, no Rio Grande do Sul, apenas mais um lamentável exemplo.

Fábio Palácio é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP). Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão.


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