Sereias da vida alheia: cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira

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Sereias da vida alheia: cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira
O poeta, escritor, crítico literário, musicólogo e ensaísta Mário de Andrade (Foto: Reprodução)

 

“As cartas que mando pra você são suas. Se eu morrer amanhã não quero que você as publique. Nem depois da morte de nós dois quero um volume como o epistolário Wagner-Lizt. Essas coisas podem ser importantes, não duvido, quando se trata dum Wagner ou dum Lizt que fizeram arte também pra se eternizarem. Eu amo a morte que acaba tudo. O que não acaba é a alma e essa que vá viver contemplando Deus.” (de Mário de Andrade para Manuel Bandeira, 25/01/1925).

Para nossa felicidade, o destinatário das cartas de Mário de Andrade não atendeu ao pedido do missivista compulsivo, adivinhando, sob a máscara da modéstia, o esforço guaçu por ele realizado no sentido de nos legar um dos mais significativos documentos da vida intelectual brasileira deste século. Inacessível à consulta até 1995 por um desejo do próprio Mário, preocupado em resguardar a intimidade alheia, a correspondência entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira permite reconstituir o itinerário de uma amizade e, a partir daí, recuperar o clima de uma etapa importante de nossa história literária. O material foi publicado no volume Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira (Edusp), em 2001. 

Amizade, é preciso que se diga, marcada por diferenças de temperamento e pela incorruptível lhaneza de seus protagonistas. Amizade, portanto, afeita à polêmica, fruto de uma intimidade que não se priva do mundo, mas, ao contrário, nele se aquece pela consciência intensificada de suas contradições. Amizade algo assemelhada ao amor mundi de que nos fala Hannah Arendt ao se referir à figura de Lessing, amor a este espaço intermediário entre os homens que, comprimido em tempos sombrios (a fraternidade dos párias, em que se verifica uma humanidade invisível, sem ressonância pública ou significação política), dilatasse na amizade autêntica pela ação discursiva. Entre a verdade e a amizade, Lessing sempre escolheu a primeira, variou seus argumentos tendo mais em vista seu poder de incitação ao discurso, seu efeito no mundo, que sua lógica interna; o pensamento como instrumento para se mover em liberdade no mundo (e não como ersatz psicológico de liberdades confiscadas).

Como não lembrar, em Mário, da curiosidade perpetuamente em via de satisfação, de suas convicções transitórias, sua busca incessante em face da qual as respostas representariam o descanso em vida, parar mais detestável que a morte? Com a diferença talvez de que Mário nunca se liberta completamente da coação exercida pela necessidade de coerência, donde a imensidão de explicações pontuando cada gesto ou afirmativa seus e a força com que retruca às afirmativas vibrantes de Bandeira com uma análise muito de máquina, cheia de rodinhas cada uma bem no lugar, cheia de polias, cheia de relógios etc. 

Comentando as estratégias de divulgação do modernismo, as rixas entre panelas literárias, batendo-se em defesa da língua brasileira, discutindo poemas, quadros, composições musicais, é patente na correspondência a flexibilidade nas posições críticas assumidas por Mário; a tendência a tomar partido considerando o efeito moral de suas declarações. Flexibilidade que, por um lado, se vincula ao desejo de sinceridade (de comunicação rente às modulações da personalidade, às sensações que renascem de si mesmas sem repouso na alma desse que é trezentos, trezentos-e-cinquenta) e, por outro, constitui fonte de sofrimento para um sujeito, como bem observa Bandeira, assaz dependente do meio amical: “Que direi a respeito dos teus aborrecimentos? Devo passar-te o meu displicente pessimismo? (…) sinto teres necessidade do meio amical para criares. Mas o meio amical não existe! Tu devias aprender a passar sem amigos, amigos literatos. Com literatos e artistas só há duas atitudes possíveis: 1a ser intratável, isto é, guardar isenção absoluta de ânimo; 2a ser irônico, não levar nada a sério, dançar de ombros. A 1a atitude é, sem dúvida alguma, a melhor, a mais nobre. Requer, porém, uma força de coração acima das nossas possibilidades sentimentais. Ou então ser duro. Nem eu nem tu somos assim”.

 

“Creio nas afinidades eletivas. Sou teu irmão desde
uma nunca esquecida tarde de domingo, em que num
táxi o Guilherme disseme do aparecimento do Carnaval
e recitou de cor alguns versos esparsos de tua obra.
No dia seguinte procurei o livro. Quando, para ler a
Paulicéia na casa do Ronald, exigi dos amigos tua presença,
não foi porque tivesse a curiosidade de te conhecer
fisicamente. Foi para um reconhecimento. Emprego
a palavra com a sutileza dos poetas japoneses nos seus
haicais. Com todas as significações e associações que
ela desperta. E daí em diante esse reconhecimento não
cessou de aumentar, florir, frutificar. Hoje és, e não te
ofenderás com a metáfora, és uma propriedade minha.”

 

Mário de Andrade a Manuel Bandeira 22 de maio de 1923

 

 

No intercâmbio epistolar com o mesmo Bandeira, amigo cuja estatura intelectual se ombreava com a de Mário, o escritor paulista era compelido a abandonar o tom pedagógico paradoxalmente responsável pela universalidade desse discurso, espécie de mise en scène dirigida a um interlocutor abstrato, descolado das circunstâncias específicas que desencadeiam a carta, a retórica sedutora com que enredava os admiradores mais moços para dar lugar à reflexão macha, estribada na erudição comum e em afinidades de ordem moral, à discussão dos diferentes projetos criativos sustentados por ambos.

O que não significava necessariamente simetria nas relações nem ausência de conflitos. No campo dos comentários aos poemas, Mário é mais comedido que Bandeira (leva quase um ano para começar a comentar-lhe os versos) e também mais inclinado, sobretudo nos anos iniciais da correspondência, a acolher os conselhos do amigo pernambucano. Além disso, ressente-se amiúde com a ironia de Bandeira, que nem por isso deixa de dizer o que pensa, declarando-se mais amigo da obra que da pessoa de Mário.

Não é pequena a distância, percebida por Bandeira, entre o desejo de franqueza expresso por Mário e a sua capacidade real para suportar críticas. Escreve Bandeira: “O conceito que sempre fiz de sua sensibilidade moral era exato: eu não lhe posso falar como sinto, não poderei nunca dizer-lhe meu pensamento inteiro, ainda quando você me peça franqueza até o fim…” Ou: “… você com o seu amor pelo homem e seu ardente desejo de se comunicar e de ser compreendido e gostado, quereria ser compreendido e gostado com perfeita crítica em todos os aspectos, detalhes e nuances do seu pensamento e sentimento. Toda incompreensão ou compreensão parcial, que digo?, mesmo uma relação imperfeita de compreensões machuca”.

Eis trechos da correspondência que dão bem a medida do tom despachado de Manuel Bandeira, mais espontâneo que o amigo autovigilante. Escrevendo de pijama e chinelas, Manu manda o amigo à merda sempre que necessário, refere-se aos versos do Mário anterior a Pauliceia desvairada como coisa de adolescente que não trepou, com uma bruta ternura por ser feio e ao modernismo como uma putinha intrigante que apareceu para desunir os amigos. Discorda reiteradas vezes da intenção apostólica subjacente às ações do amigo, defendendo-se também das recriminações que este lhe faz, seja quanto ao recurso à ironia considerada por Bandeira a forma mais despretensiosa de ensinar, mais delicada e mais heróica porque dá à gente a aparência de mau em vez de superior e pedante, seja quanto ao sentimentalismo excessivo; o que lhe dá ganas de reagir e cair por orgulho ferido no mais meleca, cocadapuxa e baba de moça de todos os sentimentalismos.

Se estou dando maior destaque às cartas de Bandeira é porque elas constituem a parcela da correspondência que estava inédita (as escritas por Mário já estavam disponíveis desde 1958) e porque tornam mais evidente a constituição desse diálogo como um espaço ficcional ou o caráter de encenação de que se reveste essa escrita, como afirma, no excelente ensaio introdutório, o organizador do volume, Marcos Antonio de Moraes. Encenação não apenas de uma naturalidade que, fora das cartas, não tinha a mesma vigência, mas ainda expediente que, respondendo à personalidade multifacetada de Mário (também ele, à semelhança de Macunaíma, um escritor sem caráter por excesso de caracteres), põe a nu a natureza problemática, o aspecto fluido, mutante, do gênero epistolar: ora aproximando-se do ensaio, ora da crônica e do conto, ora do testemunho biográfico.

Mas como isso se dá mais concretamente? Acompanhemos, por exemplo, o problema da língua brasileira. Menina dos olhos de Mário de Andrade, a defesa de uma língua autóctone não pode ser encarada, conforme nos ensina Rosenfeld, como um problema exclusivamente estético-literário, ou como expressão de um nacionalismo supra-regional e cosmopolita, mas se liga ao problema mais íntimo da descoberta da própria identidade através da procura da identidade nacional. Donde o tom veemente com que contesta as acusações de Bandeira quanto à sistematização artificial, sem base em fatos da linguagem. As razões alegadas por Mário em defesa própria são as mais diversas. Algumas vezes, justifica a sistematização dizendo que sem ela seria um escritor sentimentalmente popular, e não o escritor culto e literário que pretendia ser. Noutras afirma estar simplesmente procedendo por dedução lógica, filosófica e psicológica, o que Bandeira atalha ponderando que a língua não é exatamente uma criação lógica, pelo menos não de uma lógica individual, e que a tal lógica filológica é assunto para gramáticos, não para escritores, que, por seu turno, só podem influir na língua pelo gosto da expressão. Mais frequentemente admite ter cometido exageros para dar coragem aos demais incorrendo em erros úteis, passíveis de retificação ulterior.

 

“Antes de entregar os meus versos à
tipografia, mandei-os a você, pedindo-lhe
que os criticasse: o meu desejo era que você
fizesse com eles o que eu, a seu pedido, faço
com os seus: uma espinafração isenta de qualquer
medo de magoar ou melindrar – crítica de sala
de jantar de família carioca, de pijama e chinelo
sem meia. Você tirou o corpo fora e limitou-se a
aconselhar a supressão de um soneto. Se você
tivesse me dado outros conselhos, o meu livro
sairia mais magro porém certamente mais belo.”

 

Manuel Bandeira a Mário de Andrade 27 de dezembro de 1924

 

 

Essa positivação do erro, ou justificação da arbitrariedade, prende-se à já referida capacidade de sacrifício da coerência não apenas em nome das exigências formativas e críticas do momento histórico, mais ainda das contingências pessoais a que não poderia se furtar sem prejuízo à autenticidade da expressão. E é precisamente nessa volubilidade de caráter momentos de euforia acompanhados de crises de consciência, culpas, retratações e muita auto-análise, mas que sempre supõe a permanência última da intenção sincera, como nos adverte o saudoso Cacaso, que reside o traço distintivo da reflexão marioandradina.

Parte significativa da correspondência revela os bastidores do texto literário, fonte privilegiada de informações sobre o processo criativo dos autores. Pelo confronto de variantes é possível apreender a obra de arte como campo de forças antagônicas, recuperando-se o movimento angustiado que marcou sua gênese.

Do lado de Bandeira, vamos encontrar a primeira versão de poemas que se incorporarão mais tarde à obra poética, alguns poemas inéditos e, o que é mais curioso, determinadas imagens, cadências, frases ou fragmentos de frase que, sem constituírem versos propriamente ditos, dão a conhecer de modo inequívoco o pathos lírico do autor por serem, talvez, secreções oriundas do mesmo lenho de personalidade.

Exemplos? “Aqui no Recife estou num quarto engraçado, de telha-vã e chão de tijolo, dando pro Capiberibe, Capibaribe, deslizando sem ruído, onde as barcaças passam em silêncio e onde os coqueiros, magricelas com ar cansado de sujeito que andou muito e não tem onde sentar, deixam uma sombra tão gostosa”. Ou: “Está um tempo safado. Chuva miúda desde anteontem. Ontem enfurnei o dia inteiro. Hoje precisei sair à tarde comprei 1$500 de presunto, dois ovos e uma garrafa de caninha de Angra dos Reis. Voltei pra casa na boca da noite fritei os ovos em cima do presunto mandei antes e depois dois cálices da caninha acendi o charuto e me senti feliz desgraçadamente feliz!”. Como não pensar, lendo este último trecho retirado de uma carta de 1926, no “Poema só para Jaime Ovalle”, incluído em Belo Belo (1948)?

De repente, uma linha como a que encerra a carta de 26/dez/1925 – “A vida é um milagre. O único milagre.” – surpreende-nos no início de “Preparação para a morte”, poema de “Estrela da tarde” (1960): “A vida é um milagre./ (…)/ Bendita é a morte, que é o fim de todos os milagres.” Assim como é surpreendente, considerando o tom desbocado que Bandeira adota ao longo da correspondência, observar a substituição ocasional de um palavrão num poema como Desafio: “(…) Uma só coisa faltava/ No meu barco remador:/ Ver assentada na proa/ A bunda do meu amor!” (na versão final desse poema, destinado à Lira dos cinquenta anos, de 1940, a bunda cede lugar ao vulto da amada). Outras vezes, o que se nos oferece é a descrição pormenorizada da ambiência de certos poemas: as crianças da rua do Curvelo, em Santa Teresa, os lupanares da Lapa, paisagens de infância misturadas com restos da leitura de outros poetas; tudo galvanizado por altas voltagens de erotismo.

Do lado de Mário de Andrade, destacam-se as tensões permanentes entre lirismo e inteligência, arte pura e arte interessada, desfibrando muitas vezes o ordenamento lírico pela intromissão de interpelações condoreiras, enumerações descritivas e rompantes discursivos, conforme nos adverte o professor Sergio Miceli. É difícil imaginar que entre temperamentos assim diversos pudesse ocorrer troca tão intensa de ideias, de sugestões técnicas no plano da fatura dos versos, discussões sobre tradução, além de tentativas um tanto selvagens, posto que saborosas de psicanalização recíproca a partir de poemas e outros escritos (vale lembrar que ambos foram leitores atentos de Freud e que Bandeira chegou a acompanhar aulas do psicólogo polonês Waclaw Radecki e a demonstrar interesse pelo trabalho da psiquiatra Nise da Silveira, de quem foi vizinho, no hospital de Engenho de Dentro).

 

“A sinceridade sem vergonha que o
modernismo às vezes usou é um erro.
Daí aquela minha dúvida expressa no
prefácio do Losango cáqui, se temos o
direito de chamar de poemas aos nossos
movimentos líricos. Eu também me
entusiasmei pela sinceridade sincera
na arte. A Escrava que é de princípios
de 1922 diz isso. Hoje eu me entusiasmo
mais pela sinceridade artística que por
ser artística não deixará de ser psicológica,
e real. A história é que versos a gente faz
pros outros lerem.”

 

Mário de Andrade a Manuel Bandeira 29 de dezembro de 1924

 

 

Belo é ainda perceber o lirismo involuntário de certas passagens epistolares nas quais, em contraste com as zonas de silêncio nessa amizade fundada sobre bases intelectuais, se verifica uma poderosa impregnação de objetos, situações e paisagens pela presença singular de cada um dos missivistas. Penso na Remington de Mário, em cujo metal gostava de encostar a testa para sentir-lhe o friozinho, batizada com o nome de Manuela, homenagem ao melhor amigo, e acariciada (como um cavalo em que se passa a mão para amansar) quando os poemas custavam a sair. Penso também, como mais um sinal dessa impregnação afetiva, no sofrimento de Mário quando da mudança de Bandeira da casa de Santa Teresa (o famoso endereço da rua do Curvelo 51, para onde tantas cartas se habituaram a seguir). Sofrimento causado não só pelo que tal mudança indiscretamente revelava da pobreza em que vivia Manu, mas pela sensação de uma diminuição no caráter do companheiro exilado de sua paisagem moral. De modo amplo, penso na presença mais difusa e constante de um amigo à consciência do outro, levando Bandeira a confissões do tipo: “(…) quando escrevo sempre imagino você me lendo”, paralela à afirmação de Mário de que falar de um livro ou de um poema “não passa dum jeito da gente manusear um caráter, beijar na boca uma alma de gente como a gente e tão diferente no entanto”.

Da mesma forma, várias páginas são gastas com discussões sobre política literária: críticas ao provincianismo paulista e carioca, ao oportunismo de sujeitos como Graça Aranha (posando, sem mérito para tanto, de líder do movimento modernista), às malandragens de Monteiro Lobato como editor; articulação com jovens valores de outros estados (como Drummond, em Minas; Câmara Cascudo, em Natal; Augusto Meyer, Murilo Mendes etc.); colaborações assíduas em revistas, jornais; palestras, viagens etc.

Cumpre todavia notar que, se há alguma semelhança nas dificuldades enfrentadas por Mário e Bandeira e aquelas que hoje se colocam para o escritor contemporâneo, totalmente outras são as formas de reação a tais dificuldades, principalmente no que diz respeito à perda de ressonância pública desse debate. Não se escrevem mais cartas abertas com a mesma honestidade e entusiasmo demonstrados pelos nossos modernistas: a poesia vai se integrando de modo pacífico ao mercado e conquistando reconhecimento por intermédio de lobbies junto à mídia e à universidade; não mais pelo trabalho paciente de crítica e decantação.

Nesse sentido, talvez valha acompanhar de perto as vicissitudes da ideia de sacrifício sustentada por Mário ao longo da correspondência. Sacrifício da arte em nome da vida, com assunção do papel ingrato de palmatória-do-mundo, em contrapartida à indiferença dissipadora dos amigos ricos, ao lado de quem foi mais difícil permanecer após a fase destrutiva do movimento modernista:

“Quando foi pra destruir, tempo em que a blague e o espírito valem mais que o saber, estávamos todos juntos. Porém depois esse tempo passou. Eu fui o mais sacrificado, jurei pra mim que havia de provar que não era o cabotino besta que pensavam e que a verdade em que estávamos era justa e propícia. (…) É certo que eles têm mais dotes que eu. Dotes inatos. Porém, e talvez seja a minha inferioridade a causa da minha maior dignidade (é quase certo que é), eu trabalhei. Eu me dei um destino (…) e eles ficaram sem se dar destino”. Sacrifício, trabalho e destino que acabaram por acentuar a distância entre Mário e seus pares paulistanos também no que se refere à feição nacional da literatura por eles empreendida.

 

“Macunaíma chegou e eu gostei dele. Eu
estava de pé atrás com o herói. Você deve
ter notado que quando você me falava nele
eu não mostrava lá muito entusiasmo. Me
parecia que você estava preparando uma bruta
caceteação em cima da gente. Me explico: você
me dizia que era uma história escrita sobre lendas
do Amazonas. Ora quase todas essas lendas me
aporrinham, é um defeito meu, eu luto pra me
emendar mas qual. Bem entendido não são todas
que me aporrinham: são principalmente as que
explicam a origem das coisas. Porque é que cai
orvalho de manhãzinha, – e lá vem uma historiada
comprida com uns nomes filhos da puta pelo
meio. Sei da importância enorme de tudo isso,
mas quê que hei de fazer, como dizia Macunaíma,
me aporrinha. Agora as sacanagens, as histórias de
bicho, etc., isso é comigo. Comecei a ler e a gostar.”

 

Manuel Bandeira a Mário de Andrade 31 de outubro de 1927

 

O que não passará despercebido por Bandeira, como se pode ver no comentário deste ao Pau-Brasil de Oswald: “O que está dentro é o bom Oswald, empregando a técnica de Kodak de Cendrars. Pena aquela prosa prefacial cafezista e importante (…) Ele sente e critica deliciosamente o Brasil, mas no fundo é pouco Brasil. Pau-Brasil é tradução de Bois du Brésil. Acho você mais Ibirapitanga. Por vezes, o altíssimo senso de dever leva Mário a se castigar por ter criado poemas, como os do Remate de males (1930), os quais, sem as cores de anúncio com que funcionavam dentro de uma nacionalidade, teriam perdido a serventia social. Acabrunhado com isso, não se deixa convencer pelo argumento de Bandeira de que “todo artista genuíno tem ação socializante mesmo quando pensa estar batendo a punhetinha mais pessoal na famosa Torre.”

Quando, entretanto, o Mário artista deixa de se sotopor ao apóstolo, a coisa muda de figura. Em obras como Macunaíma, livro desinteressado aos olhos de seu criador (ele mesmo sentindo-se incapaz de julgá-lo), o problema do engajamento e da gratuidade na obra de arte sugere novas articulações. Em Macunaíma, o descompromisso com o imediato, indispensável ao trabalho intelectual militante, pode significar um autocomprometimento que não se confunde com “o andar nas nuvens ou qualquer tipo de evasão esteticista”, assegura-nos Cacaso. “Pois Macunaíma”, prossegue o crítico, “justamente por seu caráter de jogo desinteressado (…) é ainda obra inteiramente engajada, mas um engajamento não imediato nem instrumental, um engajamento da forma.” Engajamento não-retórico no qual a liberdade comparece como condição prévia, e não como finalidade exterior, pois só os objetos e as atitudes livres podem se comprometer de modo descondicionado e adulto, independente e responsável.

Seguir na esteira dessas considerações seria tarefa para um outro momento, exigindo maior espaço expositivo. Por ora basta saber que elas definem uma das principais linhas de força da correspondência e permitem entender com maior exatidão a questão do “direito à pesquisa estética permanente”, bem como aquilo que no fim da vida Mário chamará de “técnicas dinâmicas do inacabado”, propiciadoras de uma “arte malsã”, voltada para a crítica e para a superação dos engessamentos contemporâneos.

Por fim, uma ou duas palavras sobre o aparato de notas. Simplesmente uma gostosura, para falar como Mário. Não só pela quantidade formidável de informações que precisam, para o leitor menos familiarizado, as circunstâncias mais particulares, o entorno específico de cada carta (pessoas, livros, lugares, datas, acontecimentos…), como também pelos confrontos com outros documentos outras cartas, artigos, entrevistas que fazem menção ao tema abordado em determinado momento, além de comentários humorados do organizador e, mais espaçadamente, pequenos voos interpretativos.

Pelo cruzamento de correspondências se podem constatar variações no tratamento de um mesmo assunto de acordo com o interlocutor visado. Daí que, queixando-se a Bandeira da dura convalescença após uma cirurgia a que se submeteu para retirada de hemorroidas, Mário prefira, ao relatar o mesmo incidente para Anita Malfatti, inventar, “por delicadeza com a interlocutora feminina”, uma apendicite, modificando a origem do mal sem minimizar “a descrição voluptuosa do sofrimento” (cf. n. 91, p. 313).

Noutras passagens, espanta o detalhismo, as minúcias a que desce o anotador ao descrever, por exemplo, uma edição do Vita nuova, de Dante, pertencente à biblioteca de Mário de Andrade. Como se não bastasse a menção a um defeito na capa do livro causado pela censura postal, deparamo-nos ainda com uma referência a Antonio Cândido (por coincidência apresentado a Mário no mesmo dia em que chegara o tal livro), que lembra a revolta do escritor ante o estrago decorrente da truculência do Estado Novo (cf. n. 168, p. 255).

Aqui e ali topamos com uns poucos erros de revisão: palavras que escaparam à atualização ortográfica adotada como critério para a presente edição, referências sem anotação, notas com a numeração trocada e outras distrações de somenos importância (perdoáveis numa iniciativa editorial dessa monta).

Comemore-se, então, essa peça do enorme puzzle espiritual deixado por Mário de Andrade e que, com dilatar-lhe o legado, reverbera a muiraquitã de sua presença e segue espalhando o poeta pela cidade, saudade.

Fabio Weintraub é poeta e editor, autor de Sistema de erros (Pau-Brasil).


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