O candidato a presidente que nunca imaginou que Bolsonaro pudesse ser assim

O candidato a presidente que nunca imaginou que Bolsonaro pudesse ser assim
(Foto: Alan Santos/AB)

 

Os papéis, escolhas e responsabilidades de cada um para nos levar a Bolsonaro serão certamente um tema da próxima campanha. Eduardo Leite, que desafia Doria nas prévias do PSDB, teve um teste esta semana com a pergunta que vai fustigar todos os candidatos presidenciais que aderiram ao bolsonarismo em 2018, e desfrutaram dele.

Leite, é bom que se diga, tem o physique du rôle, a aparência justa para o perfil do que vulgarmente se chama “o candidato da Globo”, mas que, na verdade, seria o de toda uma mentalidade da alta classe média das grandes metrópoles brasileiras, particularmente do Sudeste e Sul. É um rapaz de terno bem cortado, aparência civilizada, bem articulado na expressão e, sobretudo, liberal nas ideias e antiestatista na economia e na condução do Estado. O governador do Rio Grande Sul é liberal no estilo de vida, donde se infere que há de ser progressista também na visão de mundo, embora seja conveniente, para o papel, não exagerar no quesito.

Num debate promovido pelos jornais O Globo e Valor esta semana, várias vezes o jovem governador gaúcho foi indagado sobre o que sabemos que ele fez em 2018. Como também o foi Doria Jr., beneficiário do famoso voto Bolsodoria. Ocorre que Doria, sobretudo em virtude do seu comportamento durante a pandemia, virou o arqui-inimigo de Bolsonaro. E não é por declaração e propaganda não: o bolsonarismo o odeia em um nível Lula de ódio bolsonarista. O que quer dizer no grau máximo. E Doria não tem problema em declarar que se arrependeu daquele momento de amor, e que não foi colaboracionista, antes, sem a sua aposta em vacina o país inteiro estaria ainda mais dependente da política democida de Bolsonaro durante a pandemia.

Leite, por sua vez, não se saiu bem e é surpreendente que não tenha se preparado para explicar a sua adesão a Bolsonaro no passado, em um ambiente político crescentemente antibolsonarista. Foi tão ágil em surfar o antipetismo juntamente com o bolsonarismo, mas está levando um caldo, como se diz aqui no litoral, do antibolsonarismo.

Leite faz cara de quem não gosta da pergunta. O antipetismo que compartilha do seu ambiente social deve considerar uma afronta ser indagado assim, na lata, por que diabos preferiu o autocrata ao professor. “Como assim, não é óbvio?”, rumina enfezado. Parece que não, “o tempo passou na janela e só Carolina não viu”. Eduardo Leite não se dá conta de que o antipetismo que justificava qualquer coisa em 2018 não pode mais ser uma muleta confiável em 2021. Quanto mais em 2022. Mas ele não tem outro argumento, e fica bravo.

Então, insiste que segundo turno era opção binária mesmo, e que de um lado estava o candidato do PT que, como se sabe, não podia ser votado porque… bem, porque era do PT. As caracterizações das razões por que Haddad era um candidato tóxico enquanto o filofascista era aceitável não passam de genéricos argumentos de WhatsApp: Haddad representava “um projeto político que já tinha sido desastroso para o Brasil de eliminação de empregos, de recessão econômica”. A esse ponto, não tem distinção: o governo Dilma é o modelo para o governo Lula e para Haddad, tudo uma paçoca só de maldade e incompetência. Um argumento suficiente para se ganhar discussão no Uber ou no bar do clube, uma indigência intelectual para uma entrevista de um governo de Estado com pretensões presidenciais.

E o outro lado? Bem, do outro lado tinha Jair Bolsonaro, cujo passado Leite não nega que conhecia. Apesar disso, apertou o 17 porque, segundo ele, não se podia prever o que Bolsonaro faria nem antever os desafios que teria que enfrentar. “Mesmo assim não sabíamos que viria a pandemia, em que a falta de humanidade, de sensibilidade, custaria tantas vidas como estão custando, inclusive economicamente. Aí está o erro (da escolha em Bolsonaro). Mas era imprevisível o que viria pela frente.” Rá!

Ora, a pandemia era efetivamente imprevisível, mas estávamos no meio de uma terrível crise econômica em continuidade com uma tremenda crise política, que já se arrastavam desde 2014, e que prometiam destruir o país. Era bem evidente que era preciso colocar na presidência alguém capaz de pilotar o país para fora das crises, não para dentro delas. Previsível era que Bolsonaro levaria a nação, suas instituições e sua economia para o coração da tempestade. Ele disse o que faria, ele jurou que o faria, alegar surpresa com isso é desrespeitar a nossa inteligência. Leite não escolheu se juntar com Bolsonaro por não ter podido prever o furacão que teríamos pela frente e como ele se comportaria diante dele. Ele o abraçou porque lhe era conveniente ser beneficiado pela onda que nos país inteiro tirava o PT da hegemonia e varria os partidos tradicionais, mas estava sendo extremamente vantajosa para políticos novos que queriam uma subida rápida, como ele.

Em suma, no debate, Leite preferiu fingir ter sido o tolo, que não foi, do que parecer ter se beneficiado de forma oportunista do antipetismo e do bolsonarismo, o que efetivamente fez.

No dia seguinte, em entrevista ao colunista da UOL Tales Faria, que lhe fez a pergunta óbvia sobre se o PSDB não teria responsabilidade pela chegada de Bolsonaro ao poder, novamente Leite demonstrou que não está preparado para lidar com essa indagação.

Mais uma vez fez cara amuada e esgares de ultraje. O antipetismo ambiental, em que Leite parece ainda mergulhado, põe brumas na sua visão. Como se atrevem a me perguntar tal coisa, deve ruminar com os seus fantasmas. “Vão perguntar a isso a todos os que votaram em Bolsonaro?”, deixa escapar. Sim, claro. Na democracia, todos são responsáveis pelas consequências das suas decisões eleitorais e dos seus apoios políticos, ainda mais em um ambiente social em que não faltaram informações sobre o que estava em jogo naquela eleição e quem eram as pessoas envolvidas.

Quando se trata de dar uma resposta material, Leite ainda se sai com o argumento de tiozinho envergonhado do Zap, o clássico – e memético – o PT me obrigou a votar em Bolsonaro. Novamente apelou ao binarismo plebiscitário do segundo turno, de novo apresentou Haddad como uma impossibilidade eleitoral (por causa dos escândalos e dos milhões de desempregados) e disse que, do outro lado, estava “a expectativa de que fosse algo diferente”. Não é um argumento, são os velhos memes da direita antipetista de grupos de WhatsApp de 2018, enfileirados sem surpresa.

Chega a soar cândida a argumentação: “De um lado, nós tínhamos certeza de que a escolha pelo PT seria ruim para o país, de outro lado nós tínhamos a dúvida”, disse. De novo, o departamento de certezas e convicções de Leite parece não trabalhar com muita inteligência. Nem a sua certeza passava do antipetismo enunciado da forma mais vulgar nem a sua dúvida se justificava para qualquer brasileiro inteligente e capaz de ler jornais. Bolsonaro não era uma caixa vazia, um papel em branco, nunca foi. Essa dúvida aí ou é falsa ou prova de baixa inteligência de quem duvida.

No fim, Leite acaba confessando a sua “sofisticada” decisão política “no segundo turno eu busquei evitar o PT”. Sim, foi isso mesmo, foi só para “evitar o PT”, ainda que à custa de dar um cheque em branco a um sujeito cuja inépcia, incompetência e ignorância, cujo desprezo pelas mais elementares regras de civilidade e princípios da democracia, cujos planos de militarização da administração pública, perseguição a minorias, à cultura e à ciência, adesão a fake news, e governo moral da sociedade não foram escondidos de ninguém.

Se quiser ser presidente num ambiente eleitoral que será claramente antibolsonarista, Leite vai ter que ensaiar respostas melhores do que “eu pensei que ele fosse ser diferente”, como a moça ingênua do melodrama que se casou com o cafetão.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


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