BBB e Congresso, o inferno político em dois atos

BBB e Congresso, o inferno político em dois atos
No BBB, a guerra identitária da nova esquerda tribal; no Congresso, o inferno do fisiologismo a céu aberto (Fotos: Reprodução Globo/Cléia Viana)

 

A segunda-feira desta semana teve uma noite extraordinária para quem estuda política. Houve um alinhamento perfeito de dois dos nossos infernos antidemocráticos. Uma raridade. 

O que aconteceu foi que nas duas “casas mais vigiadas do Brasil”, o Congresso e o BBB, funcionaram a todo vapor dois laboratórios dos piores pesadelos para um liberal-democrata. No Congresso, assistimos ao inferno do fisiologismo a céu aberto. Consideravelmente repugnados, vimos como nas duas casas legislativas os parlamentares escolheram dar as costas à vontade do país e entregar as respectivas presidências a pessoas expressamente aliadas a Bolsonaro. E não foi por escolha ideológica ou qualquer razão de matriz republicana, como sabem até os garçons de Brasília, foi na base da negociata mesmo, aquela prática degradada de política que, entre julho de 2018 e dezembro de 2019, Jair Bolsonaro jurava a cada cinco minutos que jamais faria. 

Do outro lado do balcão, a direita fisiológica tradicional mais uma vez capturou um governo politicamente fraco e o tornou seu hospedeiro político até o fim do mandato, ou até que morra. O que vier primeiro. O hospedeiro parece forte com a simbiose. Afinal, conquistar a presidência da Câmara que a qualquer momento poderia votar a admissão de um processo de impeachment contra o presidente, parece uma vitória maiúscula. Na verdade, não é bem assim, pois ele agora está consignado às forças que lhe permitiram continuar respirando a um custo altíssimo de autonomia e de acesso aos recursos públicos. E a simbiose pode ser renegociada a qualquer mudança importante de temperatura e pressão.

Até mesmo o DEM, que Rodrigo Maia havia levado para brincar de “centro não bolsonarista”, para o contentamento do jornalismo que adora um centro mesmo quando centro não há, largou a brincadeira de lado, comandado por ACM Neto, porque sabe que não consegue viver com síndrome de abstinência de poder. 

A propósito, Merval Pereira publicou em O Globo nesta quinta que acha que Luciano Huck pode “se transformar na alternativa à polarização entre PT e Bolsonaro”. Rá! Merval não notou uma coisa importante: quem foi derrotado na segunda-feira, pela primeira vez em anos, não foi o PT, foi justamente a centro-direita não bolsonarista. Se alguém tiver melhor hipótese que me apresente, mas foi a primeira vez, desde 2014, que o antipetismo não foi o grande eleitor. E foi também a primeira grande derrota da projetada Alternativa Huck, que muitos vêm trabalhando para construir, inclusive, claro, o jornalismo de referência.

Enquanto isso acontecia em Brasília, do outro lado do país, no BBB, o espectador teve a oportunidade de ver funcionando em laboratório a carnificina da guerra identitária da nova esquerda tribal. Na tentativa de se afinar aos novos tempos de Black Lives Matter e de maior sensibilidade às pautas identitárias antirracistas, o BBB este ano juntou celebridades militantes da causa para o seu jogo de paixões sexuais e intrigas. 

O identitarismo, contudo, é cada vez mais beligerante, autoritário e dogmático, como bem sabe quem já teve contato próximo com ele nas universidades, na cena cultural, nos congressos e nas redes sociais digitais e conheceu os seus rituais de assédio coletivo, marcação de alvos, exposição de pessoas, cancelamentos e linchamentos digitais.

 

Na verdade, a guerra
identitária só funciona
de forma razoavelmente
limpinha se você tiver
um pequeno coletivo de
identitários, de uma
única facção, um número
pequeno de “culpados”
e uma multidão de
progressistas complacentes
assistindo ao ataque.

 

 

No BBB, erraram a mão e misturaram as facções: antirracistas negros com antirracistas feministas e com feministas não negras. Tinha que dar errado. Deu. 

Tanto assim que cheguei a cogitar a hipótese de que a direita enfim havia encontrado um modo brilhante de desqualificar os progressistas aos olhos de todo mundo, que consistiu em pegar uns tipinhos de esquerda identitária bem tribal e colocá-los para se devorar numa caixa de vidro, para todo mundo ver o que eles fazem e dizem fora das mesas-redondas, dos textões lacradores, das lives e colunas, cercados de indulgência do “campo intelectual”. O que se viu esta semana, de fato, desceu pesado ao estômago. “Então é assim que eles são?”, perguntaram muitos, chocados. Sim, bem assim é “o processo” de feroz crueldade com que detectam e punem pecados e evangelizam os pagãos. É bem assim o xadrez de superioridade moralista, inquisições e confissão de pecados – mesmo os não cometidos -, suplício e humilhação dos pecadores, caminhada da vergonha, cruzada contra os infiéis. Foi um show! 

Então, todos puderam assistir ao inferno das guerras tribais identitárias, onde todos têm razão, todos têm superioridade moral, todos têm imunidade para humilhar e ir na garganta dos outros, todos fazem julgamentos sumários, todos têm a obrigação de arrancar um naco dos “culpados” até que estrebuchem na contramão da vida. “Um pecador a menos no mundo, louvada seja a Identidade”, professará algum sacerdote. 

Enquanto isso, o nosso terceiro inferno, o bolsonarismo, teve um dia de gozo. No Congresso, os fisiologistas lhe entregaram a cabeça de Maia numa bandeja de lata. Nhonho está morto, vida longa ao nosso novo Nhonho! No BBB, a esquerda identitária exibia o seu killer instinct, a paixão autoritária, a crença tribal de que todo pecado será castigado, e de que enquanto houver um branco, hétero, cis e ocidental de pé continuarão amolando facas e se pintando para a guerra. E que, por enquanto, vamos nos matando uns aos outros, pois o sofrimento dos nossos antepassados ou a opressão estrutural do nosso gênero nos concede uma excludente de ilicitude segundo a qual humilhar, assediar, mandar calar a boca, expulsar da mesa e reivindicar privilégios pessoais não é nada disso, é apenas Justiça. 

O bolsonarismo, que parece até que escreveu os textos e os roteiros que as conkás e lumenas, os fiúks e lucas recitaram e têm seguido fielmente, foi visto rindo às escâncaras noite adentro.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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