Até quando as falsas equivalências?

Até quando as falsas equivalências?
(Arte Revista CULT)

 

O Brasil encontra-se hoje numa encruzilhada histórica sem precedentes. Estamos, pela primeira vez na história, na iminência de ter que decidir, pela via eleitoral, dentro do que ainda resta de um regime institucional democrático, entre um candidato que defende os valores democráticos e o aprofundamento do acesso à participação política, e outro que fez carreira na rejeição da própria institucionalidade democrática e que, ainda agora, defende agendas que rejeitam os princípios basilares do nosso ordenamento constitucional, entre os quais a igualdade de todos independente de sexo, raça e comportamento afetivo.

Não obstante essa realidade, clara a olhos vistos, pelo menos para quem a quiser enxergar, os grandes meios de comunicação de massa, televisiva, radiofônica e escrita, quase que sem exceção, vem, ao longos das últimas semanas, insistindo em afirmar que se trata de uma escolha entre candidatos similares na sua qualidade democrática ou na sua radicalidade ideológica. Nessa fantasiosa construção de que estaríamos em condições normais do regime democrático – e de que a própria grande mídia, falsamente vendida como neutra, não teria uma grande responsabilidade em ter nos levado a essa grave situação -, teríamos simplesmente que fazer uma escolha entre um candidato de direita e outro de esquerda, como se os tradicionais rótulos políticos ainda tivessem alguma significação real, seja em nosso contexto, seja mesmo no ambiente global.

Mas já que estamos em um mundo cada vez mais interconectado, é fato que essa narrativa da normalidade é todos os dias rejeitada por meios de comunicação menos partícipes da fantasia nativa, que, ao redor do mundo, detalham de modo competente como Bolsonaro não pode, de modo algum, ser tratado como um candidato normal. Até mesmo revistas de perfil claramente conservador, como a The Economist, foi muito dura na análise do perfil não democrático do candidato.

É certo que os grande canais de comunicação, que compõem um caso claro e anti-democrático de oligopólio com poucos paralelos em todo o mundo, não têm buscado promover um verdadeiro entendimento do que está em jogo no Brasil nos dias de hoje. Esse cenário é extremante preocupante. É surpreendente que tais agentes comunicadores não entendam, ou se recusem a entender, que com a sua omissão em promover um verdadeiro contraste entre os candidatos – e portanto, entre as agendas que promovem, por um lado, o ambiente democrático; e, de outro, a sua própria erosão -, eles mesmos estejam correndo o risco de terem que agir, num futuro próximo, em um ambiente que limite sua própria liberdade de ação.

Alguns dizem que talvez Bolsonaro não venha a implementar uma agenda autoritária tão explícita e direta assim. Entendo que quem o apoia acreditando nisso é ingênuo ou, de fato, apoiador do autoritarismo, já que não o aterroriza a enorme probabilidade de que um candidato eleito com uma plataforma anti-democrática tenha que entregar algo nessas linhas para satisfazer seu eleitorado e apoiadores institucionais, como setores militares ainda presos na logica da Guerra Fria, surpreendentemente ainda influentes em nossas forças armadas.

Mas ainda que o pior e, a meu ver, mais provável cenário, qual seja o implementação de medidas que limitem a noção de cidadania e participação política, não venha a se concretizar em um governo da extrema direita neo-fascista brasileira, lembremos os dizeres de Pedro Aleixo, vice-presidente da República, quando da implementação do AI-5, quando foi a única voz discordante da reunião de gabinete que tomou a decisão. Disse o jurista mineiro: “o problema, presidente, é o guarda da esquina!”.

Ou seja, ainda que Bolsonaro viesse a ser tornar um democrata da noite para o dia, muitos de seus apoiadores, que cada vez mais se tornam verdadeiras milícias que já agora são responsáveis por ataques e mortes a minorias e mesmo não apoiadores do mesmo, certamente se sentiriam ainda mais livres e, então de vez legitimados, para agir em uma verdadeira implementação de um regime fascista no Brasil.

Até quando estarão os responsáveis em informar o público dispostos a não enxergar que não estamos em ambiente normal e que as consequências dessa visão fantasiosa e cúmplice serão muito piores do que podemos antever?


RAFAEL R. IORIS é professor da Universidade de Denver e autor do livro Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista (2017)

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