Arquitetura estética da polarização

Arquitetura estética da polarização

 

 

 

 

 

 

I- O despercebido da percepção

 

Não é fácil entender o fenômeno da estética da violência. De início, o âmbito da estética parece não ter nenhuma relação com o da violência. A violência legítima se dá no espaço das forças de segurança – polícia e exército – contra as forças de subversão – terrorismo e criminalidade. A lógica da segurança não parece envolver a lógica da contemplação desinteressada e relaxada, que está no fundamento do sentimento do belo.

Contudo, vivemos numa sociedade que conjuga enorme estímulo midiático com insegurança pública. A conjunção dos dois fatores se dá num clima de ameaça permanente que mobiliza o reconhecimento imediato de culpados e protetores, de modo a instituir uma visão de mundo dualista, sem solucionar a criminalidade. Essa visão de mundo não existe sem uma verdadeira arquitetura estética de ideias, afetos e sensações.

No estágio atual da estética da violência, a bolsonarista, muitos fatores permanecem pouco ou nada conscientes, muito menos analisados. Há vários motivos para tais peculiaridades se esquivarem de nossa percepção.

Primeiro, os analistas e o público estão sempre muito preocupados com o sentido pragmático dos lances políticos do governo e passam por cima de um plano supostamente menos significativo: a imensa dimensão perceptiva.

Segundo, a própria estética é o campo que não lida com a razão, lida com motivos, temas, símbolos, formas e materialidades, e sempre envolve afeto, o que, para captar sua propriedade, exige um preparo teórico específico.

Terceiro, fora as celebridades sertanejas e gospels, o bolsonarismo mesmo não se coloca diretamente em atividades profissionais da cultura, por conseguinte, sua atividade estética não se reconhece enquanto tal: ela se esgueira no plano moral e religioso. Mas a falta de elaboração estética segundo certas habilidades não significa, de modo algum, que ela não esteja atuando.

Quarto, o choque dela no cidadão deprimido é tão atordoante, no meio da prolixidade da guerra híbrida, que ele não se dá conta de que está sendo bombardeado por uma estética de mitificação do líder, de empoderamento dos brutos e de fidelização da base.

 

II- Empoderamento e apavoramento

 

Dentre os abundantes exemplos da estética bolsonarista, como o uso da bandeira brasileira, a trollagem dos alvos políticos, a linguagem truculenta e ameaçadora, a masculinidade jovem coletiva da motociata, os signos de ordem e obediência militar, há um especialmente significativo: o gesto da arminha. Geralmente, um símbolo contém significados racionalizados, interpretados dentro de sua comunidade de uso, e sentidos não ditos, segredados ou inconscientes.

A arminha é um sinal de adesão ao líder e de camaradagem com o grupo, que ostenta a pauta do armamento dos amigos e abate dos criminosos. Inicialmente, esses criminosos são assaltantes e traficantes, mas incluem também comunistas, e os comunistas compreendem toda a esquerda, e a esquerda abrange todo o liberalismo democrata social, que por sua vez, é identificada com o sistema. No pequeno símbolo, o estímulo à violentação de todos os adversários, que se tornam inimigos de uma lógica de guerra militarizada, é concentrado. A apropriação da imagem da arma na mão busca costurar a ideia de virilidade, justiça e poder; além de se ligar a um modo de vida neoliberal que prega individualismo, autoconservação e competitividade. No simples gesto, que é educativo até para a candura de uma criança, toda uma rede de sentidos autoritários se condensa.

A disposição dos símbolos facilita para a base a apropriação dos signos de poder. Ela se sente poderosa com o gesto bélico de humilhar os supostos criminosos, pecadores, vagabundos e comunistas. Logo, a estética da violência serve para ser bela a bolsonaristas e pavorosa para progressistas, especialmente os mais vulneráveis, que são muitos: pobres, negros, mulheres, LGBT+, militantes, professores, servidores públicos. Ela é um dispositivo de empoderamento de uns e apavoramento de outros.

Dentro da teoria estética, pode surpreender que o medo real seja visto como sentimento estético. O que define o sentimento estético é o distanciamento da situação concreta de perigo. O medo suscitado pelas narrativas góticas de terror, por exemplo, existe justamente porque não há razão objetiva para tal. O leitor ou espectador frui de sua situação de segurança para experimentar um pavor puramente ficcional. Ele se permite deixar levar pelo horror, sabendo desde sempre que tudo não passa de uma suspensão da descrença. Não deixa de ser terapêutico: a experiência de terror injustificado torna possível um ensaio de autocontrole de medos de fato existentes.

Numa situação real de perigo, por exemplo, num assalto, o sentimento do medo não é estético. Ele irrompe para tornar o sujeito alerta e reagir imediatamente. Em situações passadas, consideradas “normais”, essa oposição faz sentido: medo estético e medo real. Contudo, não vivemos numa sociedade tradicional desse tipo. Vivemos, repito, numa sociedade marcada pela conjunção de enorme estímulo midiático com insegurança pública.

 

III- Império maniqueísta

 

Dentro desse inédito contexto histórico, tem-se, ao mesmo tempo, o distanciamento do espectador em sua tela digital, que consome notícias, memes, vídeos, discursos, ideologias e, por outro lado, o mergulho numa politização interativa pública de seu cotidiano, em que seus valores e estilo de vida estão em jogo. Além do mais, as plataformas que ganham dinheiro com propaganda estimulam de diversas maneiras manifestações de ódio, feitas para depreciar, silenciar ou cancelar indivíduos, de qualquer forma, o objetivo é mantê-los em conflito uns com os outros pois eles, destarte, se engajam mais. Isso significa que há uma sorte de guerra tribal permanente, em que elementos estéticos estão amalgamados com políticos, comerciais e morais.

A mistura de distanciamento digital e risco real confunde, pois isso nunca antes existiu na história. O fato é que os bolsonaristas assumiram com sucesso a lógica da condenação moral nessa nova midiosfera. A moral sempre foi usada para a opressão do mais fraco. Porém, na extrema-direita atual, ela se torna uma moral propositalmente agressiva, feita integralmente para intimidar e aniquilar, na arena da mídia e da rede social. É por isso que eles investem tanto na moralização dos conflitos políticos, pois é nesse território que sabem se movimentar, enquanto reacionários próximos de uma população majoritariamente conservadora. A heroificação moral do homem de bem e a demonização do comunista constituem o dualismo fundamental no qual navegam instigando a base e intimidando inimigos.

Bolsonaro recruta sempre a seu favor o pequeno opressor para proporcionar a ele o gozo do diminuto poder que, por sua vez, alimenta o implacável poder dos grandes opressores, esses invulneráveis. Se o governo é incompetente em todas as áreas e cria voluntariamente um caos institucional, ele busca, assim, re-hierarquizar a sociedade com tal divisão entre pequenos e grandes opressores, que atacam os liberais progressistas e os marginais.

Estabelecendo tal quadro, sua incompetência governamental depende da oposição entre amigo e inimigo. Tanto o ressentimento contra os competentes quanto a destruição perpetrada por uma incompetência voluntária faz do ataque aos inimigos sua razão de ser. Por isso vivem num modo de ser acusador: ele otimiza o teor opressivo da moral e se regozija de um imaginário do homem bom, justo e corajoso sendo estratégico, oportunista e perverso.

Todo o circo de horrores volta sempre para o mesmo lugar: a instigação do maniqueísmo moral, que instaura um inabalável dualismo social, sempre em estado de guerra. Sabe-se que o presidente teve diversas oportunidades de aumentar sua popularidade com medidas de união nacional, como contra a Covid, mas preferiu acirrar uma base negacionista. Tal sacrifício de popularidade ocorre porque seu mais rigoroso propósito está em fidelizar o pequeno opressor com o grande opressor.

Assim ele desdobra uma hierarquia neofascista na sociedade que se harmoniza com a concepção militar de fundo, o que resulta numa coerente arquitetura populista da ordem social. A operação massiva de fidelização da base com presença constante de agressões ao outro reforça a convicção moral com o diário aparecimento numa nova treta.

O sujeito da base se sente partícipe de uma grande aventura cósmica em que o messias combate o mal nas altas esferas e o sujeito o combate nas pequenas, oprimindo os próximos, menores que ele. Essa aventura da macropolítica que cria vínculo absorvente com o micropolítico é uma espécie de second life bolsonarista. Portanto, a estética está totalmente interligada à guerra quente do espetáculo midiático e digital.

 

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.

 

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