Aquela sensação de morte: “Andar barato”, de Ana Botner, e outros lançamentos

Aquela sensação de morte: “Andar barato”,  de Ana Botner, e outros lançamentos

 

No ensaio mais bonito de Arturo Carrera, “Mistério ritmo”, o poeta sugere um parentesco entre a escrita do poema e a caminhada, associando a descontinuidade de um texto às complexidades da estrada e aos acidentes de percurso. Alguns escritores, entre os quais Paul Valéry, sugerem que há mais afinidades da caminhada com a prosa, enquanto a poesia seria mais como um tipo de dança. Denise Levertov prefere pensar no poema como um zig-zag: as marchas e contramarchas de um bebê andando com a sua mãe.

Coleridge gostava de escrever enquanto cruzava um terreno acidentado ou uma mata emaranhada, enquanto Wordsworth preferia o oposto: aleias por onde a continuidade de seus versos não pudesse tropeçar ou ser interrompida. Bashô, depois de abandonar a casta dos samurais, faz voto de pobreza e caminha pelo Japão até o fim da vida, compondo, em trânsito, os seus haicais. Thoreau gostava tanto de andar, que escreveu Caminhando, onde afirma que não conseguiria viver sem andar pelo menos quatro horas por dia “através das matas, dos morros e dos campos, absolutamente livre de todos os compromissos terrenos”.

Robert Walser não parou de caminhar nem mesmo preso no manicômio de Herisau, gabando-se de suas façanhas pedestres. E não que quisesse encontrar alguma coisa especial no caminho. É dele a frase: “Não faz falta ver nada extraordinário. Já é muito o que se vê”. Morreu num dia de Natal, em meio a um de seus incontáveis passeios.

A lista poderia continuar indefinidamente (é um colecionismo sedutor), mas os exemplos servem apenas de preâmbulo à nossa conversa com o livro de estreia de Ana Botner, que desloca e recoloca, a partir do título, uma interrogação a respeito do vínculo possível entre o ritmo da escrita e a passagem pedestre pelo mundo, que constitui, im-propriamente, o andar da poesia.

Em uma primeira leitura, Andar barato pode ser identificado com o andar meio vadio (vagar, errar), uma peripatética inútil e suja pela cidade, contra certo fetiche flâneur da gira burguesa: “uma aventura barata/ (…) os dias e os próximos são iguais/ nossos heróis sentam em mesas baratas e sabem”. Ou isso mesmo: a inércia da “petite bourgeoisie deitada/ em concreto pedaços de BRT”, que precisa engolir, um dia depois do outro, a porcaria que (a) produz:

mas o trabalho é digno
o trabalho liberta
ando engolindo muita merda
esses dias o bom senso deles
mora na belle époque
acende o cigarro no trem
o estoque de gift
aquela sensação de morte
e a fumaça que segue
(p. 35)

Nem o submundo das bocas do lixo nem a imagem da família tradicional são vistas de fora. É por ali que se anda. A sensação de morte e o senso de ridículo a tudo atravessam. Botequins, esquinas, quartos, mesas de jantar, praças públicas, becos, linhas de trem em que a cidade é, ou pode ser, um faroeste questionável: “me pergunto se ainda há espaço/ para um épico/ um western” (p. 12), neste “wild west catumbi / bang bang dos aloprados” (p. 15), onde “sou cowboy vingo a morte/ do meu pai” (p. 47).

Mas os protagonistas deste roteiro em três atos não são sujeitos musculosos em cavalos selvagens. Ao contrário, a personagem que passa deixando uma sensação de morte em todos os poemas é a Fragilidade. Figura de um “poder um pouco mais introvertido” (p. 34), andando sobre um fio de vida. Mulher que, sem perder a expressão de menina vulnerável diante de um “destino [que] nos ama como um pai autoritário” (p. 34), vê nascer no seu rosto, com desconcerto, “alguns traços de velhas/ à beira da morte” (p. 26).

A Fragilidade se encontra com a presença renitente da morte, que chega tanto pela decadência material e moral da cidade, como da constatação do degredo no seu próprio corpo, a oscilação entre os desastres público e doméstico, paixão e trabalho, fabulação do encontro amoroso e (com)pulsão autodestrutiva. “Correr e correr e perder sempre, para você, para os outros e ir acumulando desastres e ir se acostumando com eles” (p. 34).

Mas os poemas do livro também tratam de outro barato: a euforia, o embotamento, a cabeça chapada enquanto se atravessa a cidade, com o coração a mil. Se voltássemos ao ensaio de Arturo Carrera sobre o “Mistério ritmo”, poderíamos dizer que Ana inscreve a possibilidade sempre premente de uma arritmia no poema, o descompasso ou uma interrupção brusca entre a sístole e a diástole da escrita. E não que a poeta, em seu primeiro livro, não tenha tido maturidade para encontrar as melopeias,

é que
deixei meu amante
para viver com haldol
fenergan e gritos

(…)

e os gritos e os gritos
(p.20)

Talvez as poetas que mais se aproximem, ambas com projetos já bastante maduros, dessa escrita de estreia na fímbria da loucura, de Ana Botner, sejam a brasileira Liv Lagerblad (O cri§e; janelas abertas nº 3): “Eu queria ter um corpo ínfimo/ menor ainda do que é meu corpo mínimo/ o suficiente para desaparecer das vistas e viver/ em comunhão com os ácaros & barbeiros (…)” e a portuguesa Claudia R. Sampaio (A primeira urina da manhã; Já não me deito em pose de morrer): “tenho este ranger de dentes nocturno/ que acompanha o roer de unhas/ enquanto a vida se aquece no estômago (…)”.

Só que ambas sustentam uma linguagem mais visceral e de um lirismo mais metafórico. Ana demonstra (até aqui) uma vocação menos proliferante, com um tom de voz mais contido e um vocabulário mais econômico. Em suma, menos fascinada pelo dicionário e menos crédula na potência da própria dicção. O que não a impede de parecer às vezes com escritores de extração mais beat, como Leonardo Marona (Óleo das horas dormidas; Herói de Atari), em poemas como “antes éramos gatos” (p. 15) ou “malditos” (p. 40), mas os caminhos se bifurcam por razões semelhantes. De qualquer modo, se fizéssemos uma genealogia deste Andar barato, seria com poetas e poéticas da urgência.

O que torna mais bonito o livro da Ana é o fato de que ninguém, nenhum leitor vai ter de se perguntar sobre o porquê de ele ter sido escrito. Mesmo sem levantar a voz (ou principalmente por conseguir expressar uma angústia profunda com delicadeza), fica claro que os poemas foram escritos porque respondem a uma exigência. Toda escrita já é um pouco de saúde (como disse Nietzsche, até mesmo um bom livro escrito contra a vida).

Neste caso, a insurgência possível do corpo a um tempo narcótico, em que “a manhã é um aviso/ em madrugadas onde não se escovam os dentes onde se esquecem/ os banhos os passarinhos da manhã parecem piras alucinadas”. Quem já passou a madrugada nadando em pulsão de morte e paranoia, pode entender bem essa imagem dos pássaros infernais (que coincidem com os maus conselheiros de Dante, na vala oitava do Inferno) anunciando a claridade insuportável da manhã, com seus cidadãos exemplares saindo de casa para o trabalho, na qual o descanso, sobretudo o sono, ainda não é uma possibilidade.

(…) a manhã avisa que
ainda são tempos de paz e nada poderia ser pior a manhã
não poupa ninguém trabalhadores boêmios a mãe de uma criança
recém nascida a manhã cobre os ombros com responsabilidades talvez
escrotas mostra olheiras uma falta de decência pelos que estão apenas
tentando alguma coisa
(p.38)

Andar barato é um livro ambulatorial. E não apenas porque traça um itinerário entre infernos, mas porque a sua cumplicidade é com o transitório, com o que desaparece, o reino chamuscante do possível. Explicitamente contra o senso de normalidade burguesa e de um anticapitalismo romântico (ver “piegas”, p. 17), sabe muito bem que se constitui de contradições irresolvidas.

Às vezes pode reconhecer um desejo de duração e que, em algum lugar, “ela pensa em uma casa”, nessa “pira de ser careta” e “falar coisas como/ eu sou sua/ você é meu” (p. 29). Para logo em seguida reformular: “Eu correndo/ Para o mundo/ Ele pensando/ Em uma casa” (p. 45). Afinal, o reconhecimento de “que tudo um dia se perde e aqui não seria diferente” (p. 33) e a previsão de “que meus amigos – apenas/ os que têm coragem – durarão menos” (p. 51). Então

é mais fácil contar
com tudo que é passageiro
o que é frágil
e não tem nada apenas
os fanáticos que se queimam
em possibilidades
(p.24)

No fim do percurso, mesmo que a Fragilidade siga sozinha, com seus pulmões desgastados (p. 11), num périplo de aventuras baratas pela cidade, entre “os gatos abandonados/ e os gatos que vivem em bandos” (p. 50), Andar barato é um livro de amor. Na sua coleção de desastres e personagens débeis, signos da impermanência, há alguma coisa que sobrevive, apesar de tudo. E que dá a tudo algum sentido. Mesmo diante da vida mais miserável, reduzida à territorialidade do seu próprio corpo, a Fragilidade parece nos dizer que abandonar-se à aventura é abandonar-se também ao amor, sabendo que algo em nós fica para trás, faltando.

“No amor nós fazemos, a cada vez, a experiência da nossa incapacidade de amar, de ir para além da aventura e dos eventos – e, todavia, é precisamente essa incapacidade que é o impulso que nos impele ao amor”, escreve Giorgio Agamben, no ensaio A Aventura. A saciedade não faz parte da natureza do amor, porque nela os amantes perderiam o seu segredo. O amor – farmácia de contradições – só tem como existir na manutenção da sua abertura, sua fragilitas, ali onde não pode ser (e, portanto, já foi) completamente atendido. A falta, aquela sensação de morte, é um pressuposto não apenas da aventura, mas também do amor.

e tudo foi aceito
mesmo quando vieram
porrando com a força
de dois punhos duros
em um pescoço
magro mesmo quando
em forma de destino
dos inválidos e assustados
mesmo quando a noite
tomou conta de tudo
virou três da tarde
quatro da tarde
dez da manhã
mesmo quando
foram cuspidos catarros
carnes estragadas palavras
ditas com toda a verdade
de um segundo e
com toda a mentira
dos segundos seguintes
mesmo quando espíritos
de carne e osso resmungavam
com bafos insuportáveis sobre
a merda que tudo seria amanhã
mesmo quando perdi no bingo
no par ou ímpar nas cartas
tudo foi aceito
menos
…………perder
……………………no amor
(pp. 27-28)

Marcelo Reis de Mello é poeta, professor e crítico. Atualmente coordena a área de literatura da Coart UERJ. Publicou, entre outros, José mergulha para sempre na piscina azul (Garupa, 2020, finalista do Prêmio Jabuti).


por Redação

Livro de poesia de estreia do escritor gaúcho, que também é diplomata e tradutor. Em 74 poemas, Albino Ernesto Poli Junior versa sobre temas caros ao ser humano, como o amor, a vida e a morte. No verbo que intitula a obra, definido como “usar de evasivas ou subterfúgios; procurar rodeios”, já encontramos o tom dos poemas: seus temas não estão definidos de antemão, mas se constroem à medida que o poeta se aproxima deles, em contemplação “sem régua e compasso”, mas que abarca os próprios rodeios e fendas que explora em torno de suas construções poéticas. Como escrito na orelha da obra, “as andanças do poeta nos levam longe, no inesperado da linguagem”.

Romance estruturado em 17 diálogos, em que o personagem principal, Newton, conversa com diversas figuras e tipos sociais, como o “Promotor”, o “Filho”, o “Professor”, a “Juíza”, a “Faxina” etc. Figura insurgente que procura o anonimato, Newton sempre procura convencer seus interlocutores sobre a validade de suas opções de vida e questiona o “crime” que é atribuído a seus atos. Como escreve Marilene Felinto na orelha da obra, Luís Francisco Carvalho Filho “faz com grandeza o que a arte deve fazer: revelar a essência da realidade perdida no entorpecimento da existência do indivíduo encarcerado”. E o encarcerado, aqui, não se restringe apenas à esfera criminal: seja “pelo aparato policial-burocrático, pelo cerco institucional e, nesta era da informação, controlado até a náusea pela indexação de seu nome e sua subjetividade nos buscadores-invasadores eletrônicos”, complementa Felinto.


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