Agonia e velhice na ficção e no Brasil

Agonia e velhice na ficção e no Brasil
O escritor Guy de Maupassant fotografado por Félix Nadar (Foto: Bibliothèque Nationale de Paris)

 

Uma das características da obra do escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893) é a de retratar a sociedade de sua época, dando ênfase a problemas da alma e da mente, o que muitas vezes faz com que seus escritos se contaminem do fantástico e do gótico, então muito apreciados. Esse é o caso de um dos seus contos mais conhecidos, O Horla, o qual narra a estranha história de uma peste que se espalha pela Europa trazida por uma embarcação brasileira, como descreve o protagonista do relato.

Nesse conto, o protagonista lembra que o olho “é um órgão tão elementar que mal consegue distinguir o que é indispensável à nossa existência”, e que não se acredita naquilo que não se vê; por isso, desconfia-se da peste que ele descreve e denomina Horla. Assim como o Horla, o novo coronavírus é algo que existe, embora não possa ser visto a olho nu, razão pela qual segue sendo questionado por alguns, principalmente no Brasil, como se não fosse uma ameaça real ou como se fosse uma fantasia ou um delírio de certas nações e cientistas. Nem por isso o Horla e o novo coronavírus deixam de sugar a vitalidade das pessoas, podendo levá-las, como é sabido, à morte.

A literatura fantástica e a literatura gótica vieram à tona no Brasil nesses tempos de pandemia e, de certa forma, ajudam a esclarecer a vida real do país. A atuação desconcertante do presidente da República, por exemplo, lembra muitas vezes o modo irracional de agir de alguns personagens desses contos assombrosos.

Voltando a Guy de Maupassant, o escritor publicou em 1885 “O velho” em uma antologia de contos intitulada Contos do dia e da noite, que pode ser lida em português na tradução de Gustavo de Azambuja Feix (L&PM Pocket). “O velho” narra a história de um moribundo ancião, que vive – ou vegeta – na casa da filha e do genro, ambos camponeses rudes, como fica claro para quem lê o conto. Sobre o velho, sabe-se apenas que seu “leito lembrava uma nódoa ligeiramente branca” no canto de um quarto sujo, e que, do leito onde agonizava, partia “um ruído regular, uma respiração difícil, arquejante, sibilante, um gorgolejo de água como o produzido por uma bomba quebrada”.

O genro, ao ver o sogro nessa situação – “a boca entreaberta deixava passar seu estertor ruidoso e duro” –, fala, depois de um longo silêncio: “– Só resta deixá ele morrê. Nós não pode fazê nada. Mesmo assim vai atrapalhá o trabalho da lavoura, já que o tempo tá bom e daria pra fazê a repicage amanhã”.

Essa frase do conto de Guy de Maupassant ecoou quando li que, em uma entrevista no programa de TV “Brasil Urgente”, da Rede Bandeirantes, São Paulo, no dia 8 de abril de 2020, o presidente teria afirmado que “cada família tem que botar o vovô e a vovó lá no canto e é isso. Evitar o contato com eles a menos de dois metros. E o resto tem que trabalhar, porque tá havendo uma destruição de empregos no Brasil”.

O presidente parece agir como o lavrador insensível do conto de Maupassant, o qual, sem condições econômicas e intelectuais para lutar pela vida do sogro, aceita sua morte sem nenhuma resistência e passa a se preocupar com questões que considera mais “pragmáticas”: o trabalho de “repicage”.

A mesma frase do escritor francês também reverberou quando li que o chefe da nação brasileira teria declarado em outra entrevista que “alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento”. E teria prosseguido, “nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”.

A lógica do presidente parece ser a mesma do lavrador de “O velho”. Assim como este, Bolsonaro encararia a morte como um problema que irá prejudicar o setor produtivo do país mesmo antes de ela acontecer. Assim como a do lavrador, sua preocupação é com a “repicage” da economia.

No conto de Maupassant, o casal apressa-se para organizar o sepultamento do velho, mesmo este estando vivo, pois ele deveria morrer em um dia apropriado, que não atrapalhasse ainda mais o trabalho do genro no campo. De modo que, quando o vizinho pergunta como está o pai da camponesa, ela responde, “– Quase batendo as botas. É sábado a imunação [sic], às sete, já que a repicage não pode esperá”.

Às vezes tem-se a impressão de que para o presidente brasileiro e seus seguidores, os velhos e as pessoas em grupo de risco deveriam também ter dia certo para morrer, talvez todos ao mesmo tempo para que a vida voltasse ao normal imediatamente. Pergunto-me se não seria esse o recado por trás da seguinte afirmação proferida no dia 29 de março: “Devemos tomar os devidos cuidados com os mais velhos, com as pessoas do grupo de risco. Agora, o emprego é essencial”; afinal, prossegue o líder, “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”.

O presidente permanece, ao fazer essas declarações, à cabeceira da cama do povo enquanto este adoece, assim como a filha e o genro ficaram à cabeceira da cama do velho agonizante do conto de Maupassant: “medindo-o com desconfiança, como se ele quisesse pregar uma peça de mau gosto, ou  enganá-los, contrariá-los de propósito. Culpavam-no sobretudo pelo tempo que os fazia perder”.

O ator Flavio Migliaccio, que se suicidou no último dia 4 de maio, aos 85 anos, parece ter aludido ao desprezo pelos velhos ao escrever em sua carta de despedida: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo […]. Cuidem das crianças de hoje”.

Mas o que o presidente entende de morte? Nada. Afinal, como ele mesmo disse: “Ô, cara, quem fala de… Eu não sou coveiro, tá certo?”. “E daí” se as mortes se multiplicam.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de Cem encontros ilustrados (Iluminuras) e Minha pequena Irlanda (Rafael Copetti Editor).


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