A vulgaridade fascista

A vulgaridade fascista

 

 

Na primeira e única vez que tive o prazer de ver e ouvir o escritor e psicanalista Contardo Calligaris, algo muito particular que ele contou sobre sua história me chamou a atenção. Estávamos em novembro de 2017 no Café Filosófico, um programa televisivo promovido pela TV Cultura em parceria com o Instituto Cpfl de Campinas. A conferência tratava da reedição de seu livro Hello, Brasil!, publicado pela primeira vez em 1991. O livro se inscreve na tradição de escrita ensaística de interpretação do Brasil, não sem um viés autodeclarado – certa ingenuidade relativa – de alguém que experimentou o país, suas entranhas, a partir de uma matriz “estrangeira”, materializada na expressão que dá título ao livro, “Hello, Brasil!”.

Italiano radicado no Brasil, Calligaris se vestiu de um olhar deslocado pelo estranhamento de quem acaba de chegar. Essa perspectiva lançada sobre a matéria do vivido o permitiu compor um retrato ou imagem de conjunto, assim como favoreceu o trabalho de descrição de um registro profundo que traduz a lógica estrutural/estruturante de uma série de elementos que enformam as relações sociais no país e que são provenientes da nossa herança histórico-cultural.

Mas não é este trabalho de interpretação realizado por Calligaris que gostaria de destacar – o que levaria por si só um esforço de outra ordem. Antes, o que ficou em mim naquele instante de sua conferência e que agora, mais do que nunca, exige um esforço de entendimento e elaboração da minha parte, surgiu a partir de uma resposta dada por ele a uma pergunta feita por um dos ouvintes.

Calligaris foi perguntado se era capaz de enxergar alguma semelhança entre a vulgaridade italiana e a brasileira. A resposta o remeteu a um episódio de sua juventude, quando, sabendo do passado de resistência antifascista dos pais, Calligaris não conseguia entender (e aceitar!) por que haviam lutado contra o fascismo italiano não sendo eles militantes do partido comunista. Esta havia sido uma luta muito dura travada entre dois invernos numa região da Itália que fica a dois mil metros de altura. Ele não apenas não entendia, mas se indignava com o fato: para seu espírito fervoroso de jovem adepto do movimento comunista italiano aquilo não fazia o menor sentido. E a resposta do seu pai, que segundo Calligaris o intrigou por toda a vida, foi que o motivo fundamental da luta contra os fascistas na Itália deveu-se ao fato de que “eles [os fascistas] eram tão vulgares…”.

Calligaris identifica a expressão da vulgaridade italiana nas comédias do cinema dos anos 1960 e 1970, conhecidas como “commedia all’italiana”. Uma forma cômica que nos remete à pornochanchada brasileira e que se destaca por extrair o efeito cômico daquilo que há de pior nos personagens. Reconhecendo uma certa dificuldade em definir a vulgaridade em sua essência, seu sentido concreto, Calligaris tenta se aproximar dessa ideia lançando mão do que seria uma espécie de fenômeno de “cumplicidade de grupo”, ou seja, tudo aquilo que os sujeitos não fariam estando sozinhos, nos limites de seu foro íntimo, mas que se permitem fazer sem qualquer juízo na medida em que se sentem autorizados pelo grupo.

Portanto, a redução massificadora é uma das figuras privilegiadas do “ser vulgar”, consistindo num processo de rebaixamento da consciência crítica que levaria consigo a capacidade humana de instituição dos ideais de bem individual e coletivo. Um fenômeno psíquico que Freud de certo modo prenunciou na Alemanha pré-nazista, ao trabalhar o tema da identificação inconsciente com o líder das massas a partir do ensaio “A psicologia das massas e a análise do Eu”, publicado pela primeira vez em 1921.

A recusa radical da vulgaridade enquanto razão suficiente para a luta contra o fascismo intrigou profundamente o escritor e psicanalista. Como poderia a aversão à existência vulgar bastar-se a si mesma na justificativa da resistência política ao fascismo a ponto de dispensar a necessidade de uma racionalidade crítica resultante da explicação que eleva ao campo do embate político a lógica da reprodução material da vida e seus efeitos na correlação de forças e interesses econômicos/partidários?

No entanto, tal razão, assim expressa de um modo tão simples pelo pai de Calligaris, também nos dá elementos para pensar tendo em vista o período sombrio que vivemos no Brasil. Ela nos ajuda a entender as relações complexas entre estética e política, assim como as condições de possibilidade de um poder altamente destrutivo que realiza, enquanto modalidade de exercício do poder político, todas as suas apostas na infâmia, no grotesco e no ridículo de uma existência.

O espetáculo grotesco encenado pela figura do “soberano infame” ocupou a reflexão do filósofo Michel Foucault na primeira aula de seu curso proferido em 1975 no Collège de France, intitulado Os anormais. No contexto da pesquisa dedicada a investigar a produção do “discurso verdadeiro” no campo da justiça penal, sua articulação com o saber psiquiátrico e seus efeitos de poder, o autor se interessou pelo modo de funcionamento – “tecnologia” ou “mecânica” – do poder proveniente de uma origem desqualificada, ridícula, infame e grotesca. Ele não poderia ser mais claro ao dizer que o “grotesco é um dos procedimentos essenciais à soberania arbitrária”. Como se o arbítrio soberano precisasse, a fim de elevar sua violência potencial, despir-se inteiramente das vestes civilizatórias responsáveis pela inscrição do poder no âmbito da política democrática.

O personagem político do soberano infame, capaz de nos fazer rir e ao mesmo tempo horrorizar, nos interessa aqui para pensarmos esse mecanismo de dominação caracterizado pela potencialização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz. A genealogia dessa figura do poder encontra no personagem de Pai Ubu, da peça Ubu Rei, de Alfred Jarry, um de seus momentos de grande destaque. Encenada pela primeira vez em dezembro de 1896 na França, Ubu Rei tornou-se desde a estreia um grande acontecimento no campo das artes; um acontecimento estético-político que ressoa em nossos dias. Personagem principal da peça de Jarry, Pai Ubu é uma figura odiosa que acaba por tornar-se rei de “um lugar qualquer”. Seus traços característicos são a truculência, a corrupção, a promoção da morte, o arbítrio, a bufonaria, a grosseria, a brutalidade e o despudor. Merdre!, a palavra que mais sai de sua boca.

Pai Ubu tornou-se então um modelo arquetípico de uma infinidade de projetos políticos autoritários, e aqui nos interessa especialmente a condição exemplar do representante brasileiro que ocupa atualmente a presidência do país. A descrição feita por Alfred Jarry dessa forma aberrante da política – e sua “tecnologia de poder” analisada por Foucault –  cai como uma luva na caracterização do nosso presidente. Suas ações, falas e posturas veiculadas diariamente em imagens produzidas tanto por ele mesmo quanto por uma infinidade de câmeras amadoras ávidas em registrar qualquer expressão do “mito”, fazem de sua pessoa um personagem ridículo. Estamos diante de uma construção estético-política, pois o personagem autoritário, infame, grotesco e ridículo, como nos diz Foucault, deve ser considerado “em sua realidade física, em seus trajes, em seu gesto, em seu corpo, em sua sexualidade, em sua maneira de ser”.

Por tudo isso, a função estética do grotesco – e seus efeitos de poder – deve nos alertar para a elaboração dos personagens da política. A irrupção do aspecto cômico em torno da manifestação grotesca produz no indivíduo incorporado às massas um efeito catártico: o riso provocado pela cena burlesca libera a carga afetiva até então retida pelas regras civilizadas do convívio social. No entanto, infinitamente pior do que o comediante que realiza o “trabalho sujo” num plano ficcional e nos faz rir, o político infame utiliza a imagem de pessoas politicamente vulneráveis, como opositores, minorias e setores marginalizados da população, como objetos privilegiados de seus truques indecentes. Como resultado, o conflito que é inerente à política e que deve ser regulado pelas instituições num contexto democrático passa a ser “resolvido” através da teatralização burlesca comandada pelo soberano arbitrário travestido de um grande palhaço.

Retomando o fio que nos liga à reflexão de Calligaris sobre a vulgarização e sua relação com formas degradantes dos laços sociais, podemos dizer que a vulgaridade constitui a própria força que impulsiona o exercício do poder autoritário. As imagens e as produções estéticas oriundas da massa que ganhou a alcunha de “gado”, seu fanatismo e entrega irrefletida aos anseios fascistas de um grupo político que capitaliza, entre outras coisas, os valores e as práticas da pior experiência política da história recente do país – a ditadura militar –, dão contorno e expressão ao espetáculo grotesco no Brasil contemporâneo.

Por outro lado, observa-se a atuação de um mecanismo que fomenta a identificação dos sujeitos com o líder autoritário a partir da promoção de um discurso que tenta justificar sua desqualificação ao dizer que “ele é como cada um de nós, age e fala como cada um de nós em nossa intimidade”. De modo semelhante ao que acontece no registro da comicidade, observa-se a atuação estratégica de um dispositivo que instrumentaliza o desejo inconsciente das massas. Desta vez, a identificação se dá com um agente que promove a desforra diante do que seria o maior dos desagravos promovidos pela vida em sociedade, qual seja, a contenção proibitiva de impulsos hostis e antissociais responsáveis pela produção de um permanente mal-estar.

O fascismo capitaliza o mal-estar (o medo, a insegurança, o ódio e a intolerância) e oferece em troca, na condição de um alívio provisório, o espetáculo midiático operado por um grande circo de bufões e criminosos que flertam com a violação da lei e dos mais básicos ideais humanitários. Da produção incessante de notícias falsas destinadas à criação imaginária de inimigos da nação – e de sua execução social através de linchamentos simbólicos – até a veiculação triunfante da imagem de um deputado rasgando uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco assassinada no Rio de Janeiro, incontáveis exemplos desse show bizarro se repetem o tempo todo no país.

A tribo de fanáticos se vê armada pela máquina clandestina governamental destinada a produzir uma imagem distorcida da realidade. Uma produção inflacionada pelo negacionismo sistemático, mentiras calculadas e confusões conceituais, como a que inverte os significados de liberdade e ditadura. A realidade negada deve ser destruída em prol de um mundo recriado sob o fundo paranoico da luta incessante do bem contra o mal. Assim, assistimos a cada dia no Brasil a destruição de nossas bases civilizacionais que já são tão frágeis e precárias desde a sua fundação. E a consequente autorização do que há de pior em cada um potencializa, ao mesmo tempo, a forma vulgar da “cumplicidade de grupo”, segundo a fórmula precisa de Contardo Calligaris. Enfim, estaríamos diante de um processo de colonização da esfera pública pela via de uma intensa produção de diferentes expressões da vulgaridade massificada.

O antídoto a esse estado de coisas, ao contrário do que alguns gostariam de imaginar, não consiste no esvaziamento de espaços capazes de abrigar a vida coletiva em suas múltiplas possibilidades. Podemos dizer que a lógica política neoliberal se encarregou dessa tarefa num âmbito mundial e seus efeitos são nefastos. As respostas individuais a esta crise, ainda que não sejam inteiramente cooptadas pelo discurso fascista que anula a potência criativa que habita o coração dos laços sociais (o estar-e-pensar juntos, o compartir e o desfrute do sensual, como sugere o filósofo italiano Franco Berardi), continuarão estéreis e quase tão problemáticas quanto a adesão massiva aos traços identificatórios do líder político.

E agora, para onde vamos? Essa pergunta deve incitar os espíritos desejosos de mudança e fazer avançar como esboço de resposta possível um reinvestimento da política na melhor acepção da palavra. Faz-se necessária a reconstrução da política enquanto ação coletiva, na qual o desenvolvimento individual, a liberdade e a felicidade pública se inscrevem nos projetos de reconstrução da vida comum. Esta é uma reflexão que a obra da filósofa Hannah Arendt nos deixou como legado, tornando-se uma tarefa urgente em nossos dias. No sentido de um modo de viver totalmente contrário aos fenômenos massificadores, a ação política deve enfrentar de frente a ligação limitada que une o projeto soberano do líder carismático com as aspirações dos indivíduos submissos à sua vontade.

Arendt nos lembra que o poder tirânico se caracteriza pela exclusão dos sujeitos da esfera pública na mesma medida em que a sua inclusão nas massas politizadas restringe-se a um modo de vida restritivo: privados da capacidade de sustentar e debater em espaços públicos os sonhos, ideias e projetos de futuro, ou seja, de construir um mundo novo a partir de uma realidade comum, compartilhada, os integrantes das massas apenas fornecem a energia afetiva – o corpo – que faz funcionar a máquina delirante do fascismo.

A história nos diz que a incorporação dos sujeitos na massa, enquanto oferece a conquista de um sentido de existir destinado a fazer frente à desolação e à perda dos registros da experiência característicos da modernidade, é a pior saída. A simples reunião de pessoas cujo único solo comum é o traço que os liga à imagem do poder (“ele é como cada um de nós”) se torna uma presa fácil, uma espécie de matéria indiferente sobre a qual incide a propaganda política ideológica e suas promessas míticas de fuga do mundo e recriação de um novo corpo social significativo e purificado.

A política, nas bases de uma recriação de um espaço comum, onde importam as ações e o estatuto da palavra na sua plena condição de fiadora do pacto social, torna-se então o único caminho a partir do qual é possível reinventar os meios de lutar contra a vulgaridade que nos fala Calligaris. Ao mesmo tempo em que precisamos reconhecer que nunca estivemos tão longe disso, resta o sentimento de que vale a pena tentar.

Leia mais:

‘O que é fascismo?’, por Vladimir Safatle

‘Como conversar com um fascista, três anos depois’, por Marcia Tiburi

 

João Paulo Ayub Fonseca é psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).

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