A tragédia do passado que insiste em nos definir e atormentar

A tragédia do passado que insiste em nos definir e atormentar
(Foto: Domínio Público)

 

No momento em que o mundo ultrapassa o número de 13 milhões de casos de Covid-19, em um discurso emocionado, o presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS), indagou por que era tão difícil que entendêssemos que precisamos nos unir frente a um inimigo comum que estaria matando a todos. A indagação contundente do Dr. Tedros Ghebreyesus parece indicar que a pandemia em curso só adquiriu tal dimensão por não temos sido capazes de expressar o grau de solidariedade necessário para minimizar, talvez mesmo resolver, seus efeitos.

A OMS foi criada em 1948 sobre os escombros – e com base nos traumas –  da Segunda Guerra Mundial, talvez a maior crise humanitária da história. Associada ao projeto de reconstrução da ordem internacional liderado pela Organização das Nações Unidas (ONU), a OMS e demais agências multilaterais então criadas expressavam a crença na capacidade das diferentes sociedades humanas trabalharem juntas em prol do bem comum. Embora tenha desempenhado um papel fundamental na promoção da redução ou mesmo da eliminação de doenças endêmicas globais, como a varíola e o pólio, parece estar ficando dia mais claro que a falta de colaboração internacional, assim como doméstica, essencial para um melhor gerenciamento ou mesmo combate da Covid-19, não tem sido fácil de se encontrar.

De fato, ainda que vivamos a configuração humana global mais interconectada e interdependente da história, não temos sido capazes, enquanto humanidade enfrentando desafios comuns, de agir em um mesmo nível de coordenação coletiva. Pelo contrário, as respostas mais frequentes à pandemia têm sido dadas por autoridades nacionais via fechamento de fronteiras, muitas vezes com ações imbuídas – ou ao menos condutoras – de sentimentos xenofóbicos e mesmo racistas.

Muitos têm indagado se conseguiremos sair da crise atual melhores como seres humanos e sociedades, e se saberemos aprender as lições de uma pandemia em grande parte derivada da exaustão de nossos recursos naturais dado o excessivo grau de consumismo e individualismo atuais. A se considerar o comportamento de grandes partes das populações de alguns dos países mais importantes e populosos do mundo, como Estados Unidos e Brasil, as perspectivas não são animadoras.

De maneira similar às próprias dinâmicas do processo de globalização das últimas décadas, experiência que, por sua vez, acelerou e aprofundou tendências pré-existentes, a pandemia da Covid-19 revelou de maneira mais nítida e aguda traços humanos e sociais anteriores. Efetivamente, se alguns se prontificaram na linha de frente para atender aos pacientes que começaram a saturar nossas unidades de saúde, outros não só têm se recusado a usar máscaras em público, mas fazem questão de ressaltar que tal ato, por mais absurdo que seja, deriva de alguma liberdade individual de caráter inato inquestionável. Para além da irracionalidade demonstrada, tal atitude revela também um alto grau de egoísmo e, especialmente, no caso do Brasil – como demonstrado no vídeo dos não tão inocentes do Leblon -, de privilégios estruturalmente enraizados.

Não surpreende que esses fatos ocorram quando a sociedade brasileira vive sua mais significativa experiência de retrocesso não só da institucionalidade democrática, mas também da cultura cívica democrática que vinha sendo construída desde a transição da ditadura empresarial militar dos anos 1960 e 1970. Temos um país imerso em um crescente militarismo nos órgãos governamentais, em um processo de polarização definido por um alto grau de agressividade e mesmo pela demonização do adversário. Assim, a administração da pandemia se viu envolta em narrativas políticas anti-ciência na qual a mortes de milhares de co-cidadãos é vista como inevitável (“quer que faça o que?”, diz o grande líder), ou como algo que não mais nos choca como teria que chocar caso não estivéssemos tão anestesiados – ou embrutecidos – por tudo que vem ocorrendo.

De maneira similar ao que tem ocorrido no Brasil, temos visto em escala global a tentativa coordenada de muitos países – inclusive muitos adversários em outras questões, como Estados Unidos e China – de uma destruição sistemática da agenda global de direitos humanos promovida pelas agências de coordenação multilateral. Parte dessa agenda, a Declaração Universal do Direitos Humanos, também de 1948, postula a noção de uma humanidade comum onde o acesso à saúde dever ser garantido a todos. Se nem mesmo uma pandemia global consegue nos ajudar a resgatar a noção de uma coletividade comum, como garantir que a noção de uma humanidade partilhada seja viável?

Em uma de suas frases mais conhecidas, o escritor estadunidense William Faulkner disse que “o passado nunca está morto, que ele nem passou”. Estaríamos fadados a repetir as atrocidades do passado que queríamos superado quando organismos internacionais como a ONU e OMS foram criados? Que os que acreditam na construção de algo novo e melhor para o mundo pós-pandemia tenham forças para evitar que o peso atávico do passado continue a nos definir e atormentar.

Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver


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