A rebelião estudantil: para além do espetáculo

A rebelião estudantil: para além do espetáculo
Aforismo da geração de 1968: 'É proibido proibir' (Reprodução)

 

Já se tornou um lugar-comum dizer que 1968 ficou marcado na memória coletiva de muitos povos como um instante de profundas transformações sociais. Para os vietnamitas foi o ano da Ofensiva do Tet, o grande ataque desferido pelos norte-vietnamitas contra o exército estadunidense e que antecipou o fim da Guerra do Vietnã. Nos Estados Unidos, tratou-se de um tempo marcado pelos avanços do movimento pacifista, pelas ocupações de várias universidades e pelo assassinato de Martin Luther King – seguido da morte de 46 pessoas em Washington.

Para os franceses, 1968 indicou a hora das barricadas em Paris e da maior greve geral jamais ocorrida em um país capitalista avançado: 10 milhões de trabalhadores parados. Além disso, os estudantes e os jovens operários em greve criaram comitês conjuntos de mobilização e solidariedade em diferentes cidades, em uma aliança política que desafiou a “velha esquerda” francesa organizada no “maciço PCF-CGT” e abriu espaço para o advento de uma “nova esquerda” radical e antiburocrática.

Em 1968, o Brasil assistiu ao assassinato pela polícia do estudante Edson Luís de Lima Souto no restaurante “Calabouço”, no Rio. Seguiram-se a Passeata dos 100 mil, o fechamento da Faculdade de Filosofia da USP após o confronto entre estudantes dessa universidade e os do Mackenzie – na famosa “Batalha da Maria Antônia” – e a prisão de 1.200 estudantes que participavam clandestinamente do 30o. Congresso da UNE em Ibiúna.

Apesar das diferentes fontes da contestação – por certo, não havia uma razão unificada a incitar os acontecimentos – é possível reconhecer nesse ano um momento no qual, para lembrarmos Lênin, “os de baixo” – estudantes, operários, negros, gays, mulheres… – não queriam mais obedecer e “os de cima” não podiam mais dominar como antes. Estudantes mexicanos, japoneses, alemães, tcheco-eslovacos, poloneses, estadunidenses, franceses, brasileiros… atuaram como protagonistas nessa verdadeira onda mundial de revoltas que sacudiu o mundo.

Escrevendo vinte anos após 1968, o escritor francês Guy Debord protestou:

“O primeiro intuito da dominação espetacular era fazer sumir o conhecimento histórico geral, quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o passado recente. Uma evidência tão flagrante não precisa ser explicada. O espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de tudo conseguiu ser conhecido. O mais importante é o mais oculto. Há vinte anos nada é tão dissimulado com mentiras dirigidas quanto a história de maio de 1968. No entanto, lições úteis foram tiradas de alguns estudos desmistificados a respeito dessas jornadas e suas origens; mas é segredo de Estado.”

O dossiê que o leitor tem em mãos buscou resgatar, desafiando a ignorância e o esquecimento que lograram encarcerar a rebelião mundial estudantil no estreito terreno da crítica dos valores, parte da memória coletiva acerca do ano de 1968. Uma porção relacionada aos conflitos entre classes sociais, à luta anti-imperialista e à grande política. Além das análises sobre a origem daquelas manifestações, os ensaios aqui reunidos permitem também compreender suas implicações atuais. Pois, se é verdade que a onda mundial de rebeliões estudantis da década de 1960 não conseguiu instalar a imaginação no poder, é igualmente certo que 1968 inspirou um “novo movimento estudantil” radical e antiburocrático a desafiar um poder regressista. E ontem como hoje, o tendão da melhor força é a rebelião estudantil. Mas isso ainda é um segredo de Estado…


Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da USP e Diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic)

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