A ética, a linguagem e a guerra de audiência

A ética, a linguagem e a guerra de audiência

Por quem pensa e faz a TV brasileira
A Cult ouviu profissionais e estudiosos da comunicação com relação à ética, evolução da linguagem, guerra de audiência e o futuro do veículo com a possível entrada da TV digital e da criação de uma emissora federal. Abaixo, você acompanha depoimentos de Silvio de Abreu, Nelson Hoineff, Vladimir Safatle, Eugênio Bucci, Edney Silvestri e Marília Franco.

Silvio de Abreu

Existe hoje um grande acréscimo de qualidade na televisão brasileira em termos de produção, investimento financeiro, figurinos, cenários, mas um decréscimo em relação aos temas e às abordagens da dramaturgia televisiva de um modo geral. Não culpo a televisão por isso, acho que é um reflexo da sociedade na qual vivemos, não só no Brasil, mas em todo o mundo, onde valores morais, éticos, estéticos e culturais passam por uma enorme crise. No Brasil, com o ensino cada vez mais deficiente, estamos formando gerações que não se interessam por cultura e que desaprendem a pensar. A televisão e principalmente as novelas são espetáculos eminentemente populares, endereçados à grande massa que reluta muito em aceitar modificações ou a ter uma relação mais intelectual que emocional com o produto apresentado. As telenovelas brasileiras atuais pioraram no quesito dramatúrgico, porque são endereçadas principalmente a um público, em sua maioria, cada vez menos educado e sem interesses culturais. Vivemos na era do ter e não do ser e as novelas, que para mim refletem a sociedade que representam, seguem o mesmo caminho. O desafio maior de um autor é mudar esse quadro sem perder a audiência. Guerra de audiência sempre existiu, o que mais me preocupa nas batalhas travadas é que o inimigo nunca ataca com um produto de melhor qualidade, sempre apela para a baixaria e, nesse tiroteio, quem sai prejudicada é a qualidade da programação. Em meu trabalho, claro que me preocupo com a ética. Não quero passar o que para mim poderia ser um mau exemplo, nem ferir crenças ou desrespeitar o telespectador. Porém, muitas vezes, um possível mau exemplo pode servir para provocar o raciocínio do público para problemas mais sérios de ética no país, como foi o final de Bia Falcão em Belíssima.
Silvio de Abreu é autor de novelas como Pecado rasgado, Guerra dos sexos, Rainha da sucata, A próxima vítima, Torre de Babel e Belíssima


Nelson Hoineff

A teledramaturgia evolui por espasmos. A gente vê hoje momentos criativos conduzidos por realizadores como Luis Fernando Carvalho ou Guel Arraes – assim como via nos anos 1970 teleteatros montados por diretores como Antunes Filho. Mas a televisão também se pasteurizou, importou modelos estéticos do cinema ou definiu modelos narrativos para atingir a massa de espectadores e os exportou para o cinema, causando um desserviço a ambos os meios. Grandes criadores minguaram numa TV que em parte deixou de se reconhecer como um veículo autônomo. Há um momento da televisão brasileira – de gente como Jacy Campos, Carlos Alberto Loffler, Fernando Barbosa Lima – em que a televisão explorava de forma mais ampla suas possibilidades de expressão. Dos animadores que amplificavam esse específico televisivo – como Chacrinha, Jota Silvestre ou Blota Junior – só restou Silvio Santos, que é um dos maiores de todos os tempos no mundo inteiro, mas que não vai deixar sucessor. Do ponto de vista da linguagem, observa-se uma involução, porque – respeitadas as exceções – a televisão brasileira optou pela banalidade. A guerra de audiência entre as emissoras de televisão brasileira não é pela qualidade, mas pela busca de uma fatia da audiência que foi construída pelo que a televisão impregnou no público sobre suas próprias possibilidades. A televisão sugere ao seu público um repertório muitíssimo limitado. Um notável indicador disso, nesse momento, é o crescimento da Record. Ela não cresceu por oferecer ao público uma opção diferenciada, mas por conseguir clonar a Globo de uma maneira estupenda. Aliás, o público lê “Globo” como se fosse televisão assim como o consumidor lê “Durex” ou “Gilette” como se fosse fita adesiva ou lâmina de barbear. O resultado foi não apenas possibilitar o crescimento de um concorrente que conseguisse imitá-la, como também limitar suas próprias possibilidades de desenvolvimento lingüístico. O recente fracasso de audiência de uma ótima microssérie como A pedra do reino é prova disso.
Nelson Hoineff é diretor de televisão e criador do Instituto de Estudos de Televisão

Vladimir Safatle

Seria fácil levantar aqui casos inumeráveis de invasão de privacidade, falso moralismo, uso comercial de crianças, interferências em disputas religiosas, ausência de equidistância de batalhas eleitorais, utilização generalizada da lógica do espetáculo etc. em um setor regido por regras estritas de monopólio comercial. No entanto, a verdadeira questão que envolve toda a ética da comunicação de massa diz respeito à exigência de criação de espaços onde a diferença (política, religiosa, ideológica, cultural) não seja tratada de maneira estereotipada e espetacularizada. A esse respeito, a televisão, não só brasileira, mas mundial, aparece como o problema a ser combatido, e não como uma solução potencial. Veja a maneira com que a televisão norte-americana trata os árabes, a maneira com que a televisão italiana é politicamente controlada pelos interesses de Silvio Berlusconi, com que a televisão francesa foi acusada de inflar pautas que privilegiavam o candidato direitista Nicolas Sarkozy. Esses não são países periféricos, mas centrais. O que demonstra a gravidade do problema. A televisão ideal seria aquela que se auto-destruísse. Ela simplesmente não seria viável do ponto de vista econômico. Talvez seja por isso que os canais de televisão que têm alguma coisa interessante são TVs públicas como a BBC inglesa e a Arte franco-alemã. No entanto, é claro que isso nunca será generalizado. Nós nunca reformaremos a televisão. Não há razão para ter ilusões a esse respeito. Como dizia Stálin, o problema das classes dominantes (com seus grandes conglomerados midiáticos) é que elas não se matam.
Vladimir Pinheiro Safatle é filósofo e professor da USP

Eugênio Bucci

É preciso cuidado na discussão em torno da ética na televisão. Facilmente ela descamba para um farisaísmo ou para o falso moralismo. Quando falamos em “ética de programas”, tratamos de algo indefinível. O que é um programa ético? Pode-se dizer que ético é aquele programa que respeita os direitos das minorias, que não agride a dignidade da pessoa humana, que se abre ao diálogo, mas… o que é isso exatamente? Atender os anunciantes é uma preocupação ética, não é? Parece-me que todas se esmeram em cumprir seus compromissos com os anunciantes. Respeitar o público também é. E, por incrível que pareça, no Brasil, o escárnio da programação comercial não é tão ultrajante. Recentemente, na Argentina, o assunto ganhou várias páginas nos principais jornais e revistas. Estavam escandalizados com striptease ao vivo, com o que consideravam avanços de sinal. Trata-se de um incômodo global, na verdade. Pessoalmente, não vejo nas emissoras do Brasil nenhuma atitude claramente fora do padrão de disputa por audiência, uma guerra comercial típica. O que aqui me chama a atenção é essa resistência dissimulada ao sistema de classificação indicativa, não pelos aspectos essenciais do projeto do Ministério da Justiça, mas porque simplesmente as emissoras não querem se adequar ao fuso horário. Insistem em passar em Rondônia, às sete da noite, um programa recomendado para depois das 21 horas, e que as próprias emissoras sabem que ele é recomendado para depois das nove. Tanto sabe que o exibem depois das nove em São Paulo e Rio. Por que essa resistência em se adequar ao fuso? Pior: por que criar cortinas de fumaça, alegando haver censura onde não existe censura – podem existir erros e desajustes, mas nunca censura –, por que não encarar o debate abertamente? Não há programação ideal no sentido da ética. A tensão sempre deve existir. Ela é própria da dinâmica lingüística, da dinâmica da cultura, da dinâmica dos costumes e da própria política. O ideal é que as pontes de diálogo subsistam. Também deve haver uma combinação de autorregulação e classificações indicativas vindas de entidades independentes para se avaliar a qualidade dos programas da televisão. Não é verdade que a autorregulação seja a única solução, nem é verdade que é a única prática adotada em países de tradição democrática mais longeva. Eu, pessoalmente, também não gosto da solução da classificação indicativa produzida pelo Estado. É melhor que isso fique a cargo de institutos autônomos, que podem até ser sustentados pelo Estado, mas com dirigentes autônomos, que cumpram mandatos. Depois, a classificação é indicativa – os organismos responsáveis por ela não podem ter poder de polícia nem impor sanções. Deve haver, ao menos em termos ideais, uma separação das coisas.
Eugênio Bucci é jornalista, escritor e ex-presidente da Radiobrás

 
Edney Silvestre

Uma TV do governo ou orientada pelo governo, para quem viveu durante a ditadura, é muito assustador. Franklin Martins é uma pessoa séria, evidentemente, mas não é uma TV do Franklin Martins. É a TV do governo federal. Então digamos que haja alguma situação que seja desfavorável aos poderosos do governo federal, esse é um assunto que poderá ser tratado nessa TV? Eu tenho perguntas e grandes dúvidas. Em 2007, pós-queda do Muro de Berlim e dissolução das repúblicas soviéticas, TV estatal? Eu vejo com cautela. É a melhor palavra que posso encontrar. Quero saber mais, mas, em princípio, cautela.
Edney Silvestri é escritor, jornalista e apresentador do programa Espaço aberto literatura, no canal Globo News

Marília Franco

Com relação à TV digital, o grande diferencial que sua tecnologia traz como potencial é o projeto de interatividade. Isso é um grande problema, na verdade, pois ninguém sabe direito ainda o que é e nem como desenvolver. O certo é que a interatividade mudará completamente o negócio da televisão e os canais comerciais estão tão organizados e estruturados na sua forma de arrecadação que não sabem como fazer, assim como os próprios anunciantes. Em quase todos os paí­ses em que a interatividade começou, foi através de serviço público. Então, ou você tem uma TV pública capaz de desenvolver essa pesquisa e experimento, ou os canais universitários poderiam desempenhar esse papel até pelo âmbito municipal que eles têm. Isso está bem longe de acontecer, pois as pessoas não têm idéia de como se produz conteúdo para a TV interativa. Por enquanto, a única certeza que temos é que, com a TV digital, teremos uma imagem ótima, o que já é motivo para as emissoras comerciais se preocuparem, porque a qualidade da captura é muito detalhada e a necessidade de ter cenografia, figurino, maquiagem e iluminação melhoradas é muito grande. Não será qualquer telão borrado que servirá de fundo. O projeto envolve mais custos para as emissoras e uma reformação da equipe técnica.
Marília da Silva Franco  é professora da ECA-USP e foi uma das fundadoras e criadoras da TV USP

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