A ditadura civil-militar brasileira não é um fantasma

A ditadura civil-militar brasileira não é um fantasma
Soldados em manifestação no centro do Rio, 1968 (Arquivo Nacional, Correio da Manhã)

 

Por Alessandra Magalhães

A ditadura civil-militar brasileira não é um fantasma, como pensamos durante um bom tempo, porque ela ainda não morreu de fato. Ela está viva e andando por nosso país, de modo cada vez mais ostensivo. Por isso, acredito ser urgente que falemos sobre ela.

Fiz um esforço para trazer à tona o que restou de memória desse período na minha vida, já que nasci no governo do ditador Ernesto Geisel, que foi substituído no cargo pelo ditador João Figueiredo, quando eu tinha 1 ano e meio. O último presidente militar governou até eu completar sete anos. Durante a maior parte desse período, morei em Realengo, região periférica do Rio de Janeiro muito próxima à Vila Militar. Ainda me lembro de ver os soldados correndo na rua e entoando cantos cujas letras já não me recordo mais. Bem pequena ainda, gostava de correr para a janela e vê-los passar de camisetas brancas e shorts verdes, no ritmo ditado pelo compasso do canto.

Essas memórias me fazem refletir sobre o quanto ainda precisamos avançar na questão da construção da memória da ditadura no nosso país, quantas narrativas ainda estão por ser contadas. O silêncio imposto faz com que muitos pensem que a ditadura só atingiu pessoas que foram torturadas, mortas e desaparecidas, seus amigos e suas famílias. Isso é um equívoco. A ditadura atingiu todos nós, que deixamos de viver de modo livre, democrático, aberto e amplo. A ditadura estava entranhada em cada um dos programas de TV a que assistíamos, estava nos carros militares que víamos fechando ruas e no medo que nossos avós, pais ou nós mesmos sentíamos de falar livremente sobre qualquer coisa. A ditadura estava nas escolas e universidades, perseguindo estudantes e professores; nas fábricas, coibindo os movimentos operários; nos teatros e shows, censurando os artistas.

É fundamental, então, nos interrogarmos sobre como fazer para tornar viva a nossa memória de que esses tempos foram sombrios. A partir da minha experiência como leitora, professora e pesquisadora, acredito que a literatura pode ser um dos caminhos para que isso ocorra. Nesse sentido, a leitura do livro Setenta, do escritor Henrique Schneider, leva-nos a refletir sobre a construção dessa memória social. O romance, que ganhou o prêmio Paraná de Literatura em 2017, foi relançado pelas editoras Dublinense e Não Editora, em 2019.

O livro conta a história de Raul, que tinha acabado de terminar um relacionamento e resolveu sair sozinho na noite do dia dos namorados. O que acontece no meio do caminho faz com que ele nunca chegue ao seu destino final. Ele é preso, levado para a delegacia, sem entender muito bem o que estava acontecendo. O rapaz era uma pessoa comum, trabalhava em um banco, detestava os comunistas, morava ainda com a mãe e sempre andava na linha. Nos primeiros momentos da prisão, Raul pensava que tudo aquilo fora um grande engano. Bastava que falasse com os policiais para que tudo se esclarecesse. Os policiais eram a lei. E a lei era justa. Só que não foi bem assim o que aconteceu.

O autor gaúcho maneja a linguagem de uma maneira a deixar o tempo todo o clima de tensão no ar. Algumas cenas descrevem aquilo por que o personagem passou nesse período da prisão e a história também mostra o esforço de sua mãe para encontrá-lo. Só com a narrativa já bem adiantada é que nós leitores ficamos sabendo sobre os motivos da prisão de Raul e compreendemos, ao ler esse livro, que, de fato, todos estavam submetidos àquela opressão que o regime impunha. Independentemente do comportamento, os agentes da ditadura podiam fazer o que quisessem com qualquer um, ainda que fosse um “cidadão de bem”, como Raul era.

Os discursos que vem sendo promovidos por agentes do Estado nos mostram, portanto, a urgência de colocarmos em nossas rodas de conversa e em nossas leituras o tema da ditadura. Precisamos falar, refalar, narrar, lembrar, dizer, dizer e dizer para que consigamos enterrar de vez a falácia de que nesse período a vida por aqui era melhor.

Alessandra Magalhães é doutora em Literatura Comparada e professora da rede pública

 

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