Cannes 2024, dia 3: “Bird”, “Kinds of Kindness” e “L’Invasion”
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O cinema britânico sempre foi prodigioso em obras de forte observação social, e, na atualidade, talvez não haja ninguém capaz de se manter tão comprometido com essa tradição inglesa e, ao mesmo tempo, fiel à própria voz interior, como Andrea Arnold cinema britânico sempre foi prodigioso em obras de forte observação social, e, na atualidade, talvez não haja ninguém capaz de se manter tão comprometido com essa tradição inglesa e, ao mesmo tempo, fiel à própria voz interior, como Andrea Arnold. A diretora, que despontou justamente em um Festival de Cannes, com Fish Tank (2009), retorna agora ao evento com Bird, na disputa pela Palma de Ouro.
É a história da adolescente Bailey, filha de pai branco (Barry Keoghan) com mãe negra, que vive em uma cidadezinha pobre nas proximidades de Londres, em que a gravidez na adolescência é algo corriqueiro; o pai dela, por exemplo, passaria facilmente por um irmão só um pouco mais velho.
Bailey não gosta de ostentar roupas sensuais ou cabelos esvoaçantes como a maioria das garotas da sua idade; tem modos masculinos, mas sua sexualidade ou mesmo definição de gênero não são exatamente uma questão aqui. No filme, ela é uma jovem em busca de uma identidade, mas o faz sobretudo em uma procura de natureza mais existencial, nem que seja pela descoberta por algo que lhe cause algum gosto de viver ou que lhe permita se sentir de alguma forma viva. Talvez até útil.
Ela tem um fascínio especial por filmar aves com seu celular; gosta de vê-las em pleno vôo, altivas, e embora obviamente isso se trate de uma simbologia bastante batida para falar sobre o desejo de liberdade da menina, no filme, a questão é tratada com uma sensibilidade muito especial.
Bailey e as aves possuem uma ligação de força fundamentalmente mística, que ultrapassa qualquer tentativa de explicação lógica, e por grande parte do tempo Arnold consegue mostrar isso de maneira lírica pela textura das imagens e pela trilha sonora – em geral, não precisa de qualquer literalidade para transmitir essa noção. É uma mestra do cinema realista, mas também da imagem poética.
Desta vez a cineasta insere no filme um flerte com o realismo fantástico que traz resultados no mínimo discutíveis. Bailey conhece, em uma de suas andanças, um homem estranho (Franz Rogowski) e ainda mais perdido do que ela, que se autodenomina Bird (ave, em inglês). Não sabemos muita coisa sobre ele, mas o homem parece surgir como uma espécie de anjo da guarda plumado da menina – talvez. Inclusive, talvez seja meramente um devaneio da adolescente.
O filme é Arnold em sua força habitual e em seu humanismo indisfarçável apesar da dureza do ambiente em que seus personagens habitam. Mas há algo de desacertado nas inserções de elementos fantásticos no longa. É como se sobrassem no filme, que já tinha uma aura etérea sem a necessidade de a cineasta recorrer a eles. Se Bird não tivesse Bird, provavelmente seria uma pequena obra-prima.
Menos de um ano depois de seu enorme êxito na temporada de prêmios passada, com Pobres Criaturas – que lhe valeu desde uma indicação para o Oscar de melhor filme ao Leão de Ouro no último Festival de Veneza –, o cineasta grego Yorgos Lanthimos retorna com um novo trabalho, e mais uma vez na disputa pelo troféu máximo de um grande evento.
Em Kinds of Kindness ele volta a dirigir três atores que já comandou em seu longa anterior: Emma Stone, Willem Dafoe e Margaret Qualley. Desta vez, porém, faz um longa dividido em três partes, com histórias independentes, mas todas funcionando como contos macabros abordando temas afins. É um pouco difícil definir em que medida exatamente todas elas se concatenam, mas a servidão voluntária de uma pessoa a outra poderia ser citada como um (insólito) fio condutor de todos os episódios.
O filme é uma obra muito mais alinhada ao Lanthimos de O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) que ao de A Favorita (2018) e Pobres Criaturas, e isso significa dizer que seu novo trabalho deverá ter menos apelo diante do grande público. Mais importante ainda: significa também, em certa medida, um retrocesso artístico.
Porque o cineasta volta ao tipo de cinema de significado obscuro, muito mais afeito a extrair reações intensas a partir da facilidade de um tipo de choque que não permite (ou convida) a maiores reflexões. O primeiro conto é dirigido com extrema habilidade, e ainda que seja mais longo do que deveria, consegue envolver com facilidade o espectador do começo ao fim, ainda que não termine transmitindo lá grande significado. O segundo também prende o público, mas já com menor vigor.
O terceiro já é duro de encarar, e diante de toda a vacuidade espalhafatosa dos trechos anteriores, o espectador perde a confiança de que o cineasta talvez tenha um ponto com esse filme maneirista e descartável; em vez de esperar para um final que arremate a obra e costure os três episódios, no fim das contas o público aguarda apenas que o longa termine logo.
Vale destacar um filme exibido fora de competição: L’Invasion, do cineasta ucraniano Sergei Loznitsa, uma das vozes mais ativas contra a ofensiva militar da Rússia sobre a Ucrânia. O diretor (nascido na Bielorrússia, cidadão ucraniano, mas que mora há décadas na Alemanha) traz um panorama de seu país após a invasão promovida por Putin.
O foco é sobretudo em militares ou parentes e amigos de soldados que tentam levar a vida como podem desde o início da guerra. Há cenas de enterro de jovens que foram para o front; de soldados mutilados fazendo fisioterapia; de voluntários tentando ajudá-los em seus instantes fora da linha de combate. Em alguns momentos, o modo algo distanciado do diretor não esclarece direito algumas situações – há um trecho em que pessoas recolhem livros antigos e jogam para reciclagem de papel. A maior parte são obras da literatura russa, mas há também livros (em número bem menor) de alguns autores da Europa Ocidental, então o que parecia ser uma vontade ressentida de exterminar obras vindas do país agressor de repente ganha outro significado, mas o filme nunca deixa muito claro o motivo daquilo tudo.
No geral, o filme traz aquilo que é a tônica da obra documental de Loznitsa: as feições humanas falam mais do que qualquer didática narração em off seria capaz de dizer. Ele continua sendo um dos grandes documentaristas em atividade no mundo.
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema