Violência verbal e estupro simbólico – Jair Bolsonaro, Particularidade, Universalidade e Performatividade do estupro

Violência verbal e estupro simbólico – Jair Bolsonaro, Particularidade, Universalidade e Performatividade do estupro
Os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Maria do Rosário (PT-RS)

Diante de tantas questões sociais e políticas urgentes que compõem a constelação democrática cujo desenho sonhamos em completar, a questão Jair Bolsonaro é uma das mais graves e sérias. De sua punição depende o decisivo destino simbólico da política entre nós.

Jair Bolsonaro é a expressão estarrecedora do que só podemos denominar de antipolítica, aquela da violência que destrói o que pode haver de luminoso no poder, o seu sentido de potência, de ação conjunta com vistas a transformações justas e democráticas que contemplem o sentido de uma sociedade em que o respeito à singularidade e ao direito de existir estejam assegurados.

Jair Bolsonaro falou uma frase complexa do ponto de vista retórico: ele fez uma ameaça por negação. Não foi apenas grosseiro, o que é o de menos no folclore que ele constrói para si. Este folclore esconde um cinismo em seu pior sentido. Bolsonaro disse aquilo que não se deve pensar e não se deve dizer quando se tem respeito pelo outro. E o fez intuindo uma dupla ofensa que torna tudo o que ele disse pior ainda: ao afirmar (mais uma vez, pois já o tinha feito em 2003) que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela não merecia ser estuprada ele quis dizer que ela era indesejável e, portanto, “inestuprável”, mas que, caso fosse desejável, então seria estuprável. Logo, ele pretendia ofendê-la pressupondo que ela queria ser “desejável” para um homem e, no caso, ainda mais para um estuprador, mas que não tinha essa sorte, ou melhor, esse merecimento. O “merecimento” viria justamente de outras qualidades que ela não possuiria. Ela poderia pensar “sorte a minha”, ela poderia estar feliz por livrar-se de algo tão ruim, mas infelizmente, a questão não poderia se resolver continuando o jogo que se esconde atrás da piada.

Na infeliz frase de Bolsonaro não se vê apenas falta de decoro, grosseria e brutalidade verbal, muito menos se pode ver graça ou qualquer coisa que a amenize. O que também escandaliza na agressão é justamente o nexo com o universal nela implicado. Ao atacar a condição particular da deputada Maria do Rosário, ele apela retoricamente a um universal que não deveria ter sido implicado se ele quisesse apenas ofender a sua colega. A universalidade das mulheres supostamente desejáveis e ao mesmo tempo estupráveis. Do mesmo modo, a universalidade dos homens reduzidos a estupradores.

Na ofensa e na ameaça dirigida a Maria do Rosário todas as outras mulheres mereceriam o “estupro” caso se julgasse que fossem desejáveis. O “homem” seria o estuprador universal, aquele que tem a prerrogativa de decidir a quem estuprar a partir de seu julgamento estético. Bolsonaro é a exceção que não estupraria a maria do Rosário, mas estupraria a todas. Maria do Rosário, como ele, surge como exceção a uma lei, mas apenas no momento em que, por motivo de força maior, ele renuncia a ela.

Ao mesmo tempo, é provável que ele quisesse dizer outra coisa. Se fosse menos autoritário e grosseiro talvez tivesse querido dizer simplesmente “sexo”. Mas isso torna a questão ainda pior. O que transparece em seu discurso é que Jair Bolsonaro confunde sexo com estupro e, muito mais, parece fazer questão de confundir. Em sua fala há o famoso grito de quem apela à força (Adorno fala em seu “Elementos de Antisemitismo” sobre o urro dos nazistas). Ora, a palavra sexo causa mal estar entre conservadores. Em vez de falar em sexo, grita-se o estupro.

A palavra “estupro” no discurso de Bolsonaro é a expressão do poder, ou melhor, da violência, embutida no ato do sexo. Não haveria sexo com mulheres desejáveis (aspecto arbitrário, diga-se de passagem), mas estupro, porque com mulheres só se pode ter “estupro”. Ou seja, parece que o estupro na visão de Bolsonaro é a regra universal do sexo com mulheres.

Claro que poderíamos escolher não levar a sério o que diz Jair Bolsonaro. Mas por que escolher não levar a sério isso e levar a sério outras coisas? Quando Bolsonaro fala sério e quando não fala? Neste caso, me parece que deve ser colocado o problema: se um representante do povo não fala sério, nada do que ele diga deve ser levado a sério. Pergunto, com uma inocência que, espero, venha a nos ajudar a recuperar o mínimo de senso ético-político sem o qual estamos todos mortos como cidadãos: se alguém em sã consciência poderia votar em alguém como Jair Bolsonaro?

Há algo mais a dizer quanto ao jogo do desrespeito que Jair Bolsonaro vem propor. Ora, o deputado é um dos mais veemente sacerdotes do desrespeito na política brasileira. Mas é preciso não cair no jogo da falta de respeito que ele preconiza sem, ao mesmo tempo, não fingir que não o estamos notando. É diferente dizer que sabemos jogar esse jogo, mas não jogaremos.

No entanto, há que se avaliar no que consiste esse jogo. Ele move um imaginário que pode ser aplicado ao próprio Jair Bolsonaro e que vale a pena levar em conta para refletir sobre o cinismo na sua fala que se autonega no ato de se dizer, dizendo para ofender e desdizendo para livrar-se da responsabilidade do que disse. Poderíamos, nessa partida inútil, agir com desinibição moral total e questionar sua relação com sua própria mulher. Poderíamos questionar as monstruosidades possíveis que levaram à procriação de seus filhos. Alguém muito mais maldoso poderia dizer que seus filhos foram gerados como frutos de um estupro consentido. Que são péssimos políticos por isso, porque imitam o pai, diria o analista diabólico. O jogo sujo de Bolsonaro pode ficar ainda mais sujo e mais sujo e mais sujo, basta seguirmos a sua própria retórica. Mas não faremos isso, ainda que a simples imaginação pronunciada seja já um perigo de estar dizendo aquilo que não se deve dizer.

Certo é que o próprio Jair Bolsonaro é quem promove performativamente esse imaginário quando afirma o que afirmou. Sua fala tem dois efeitos performativos: estuprar Maria do Rosário simbolicamente pela agressão e, ao mesmo tempo, ao praticar a violência verbal como uma espécie de estupro simbólico, elevar sua fala particular à lei. A lei do estupro. Nesse sentido, a tese de que ele está incitando ao estupro, ao transformar o sexo em estupro, pode se valer do fato de que ele move o imaginário sexual entre homens e mulheres (respectivamente “estupradores” e “merecedoras”) em suas camadas mais profundas.  O que ele diz grotescamente pode levá-lo a ser cassado para desespero dos seus fãs e fiéis eleitores que, infelizmente, sentem-se justificados por ele.

Esse episódio que chocou o senso ético de muitos de nós nos últimos dias, infelizmente não escandalizou a todos. A devoção ao ódio (contra mulheres e contra todas as minorias) continua entre nós na defesa do indefensável.

A educação para o sentimento de alteridade (do outro como alguém que merece respeito, lugar, direitos) do qual é incapaz toda personalidade autoritária – da qual Jair Bolsonaro é um representante nefasto – precisa fazer parte do projeto democrático pelo qual estamos lutando como sociedade.

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