A usina literária de Oswald de Andrade

A usina literária de Oswald de Andrade

Leia, a seguir, um depoimento do coordenador da Obra incompleta de Oswald de Andrade sobre o livro que será lançado pela editora Scipione, que publica no Brasil os volumes da Coleção Archivos – série da Unesco com edições críticas de clássicos da literatura latino-americana.

 Jorge Schwartz

Por que uma Obra incompleta no quadro de uma coleção de clássicos latino-americanos que apontam para a idéia da completude, da totalidade e da obra definitiva e acabada? A idéia de uma Obra incompleta é absolutamente fiel ao espírito de Oswald: fragmentário, imprevisível, multifacetado, em processo permanente de revisão das próprias idéias. Uma verdade usina literária. 

Privilegiamos neste volume o discurso modernista, em várias de suas vertentes: toda a poesia – ponta-de-lança  das vanguardas literárias -, os dois romances de ruptura (Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande) e textos diversos tendo como tema o ideário antropofágico. Na realidade, o que o leitor tem em mãos são três livros, que mantêm entre si uma relação de complementaridade: um de poesia, outro de ficção e um terceiro de discursos críticos (manifestos, textos de tese e de crítica). São estes os três textos que serviram de guia para a organização deste volume e que representam o que há de mais fecundo na obra de Oswald de Andrade. Embora não se circunscrevam a um limite temporal rígido, estes textos pertencem preponderantemente à década de 1920, época em que se define o perfil mais original de todas as vertentes da obra de Oswald de Andrade.

 Se por um lado foi quase impossível encontrar manuscritos da primeira poesia de Oswald de Andrade, a descoberta do caderno manuscrito do Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade, fragmentos do livro Oropa, França e Bahia e outros estados poéticos (dos quais dois desaparecidos), seis manuscritos do Cântico dos cânticos para flauta e violão, cinco manuscritos do “Canto do Pracinha Só”, quatro manuscritos de O escaravelho de ouro, alguns manuscritos dos Poemas esparsos e nada menos do que oito versões manuscritas do poema “atelier”, da poesia Pau Brasil, tudo isto significa uma verdadeira festa para o pesquisador. Estas versões revelam o verdadeiro  work in progress oswaldiano, o rigor construtivo do poema e as oscilações de quem procura a palavra certa até chegar À depurada forma certa definitiva. Cabe tam´bem destacar o surpreendente caso de O santeiro do mangue que, na época do início desta pesquisa, continuava sendo uma obra praticamente inédita. Foram afinal localizadas dezesseis versões manuscritas compostas entre 1935 e 1950. Como resultado de todas estas iniciativas, os leitores poderão conhecer a versão mais completa possível da obra poética de Oswald: os seis livros publicados, a poesia inédita, os poemas esparsos, os cotejos pertinentes à crítica genética e as notas aos textos.

A descoberta de dois manuscritos de Memórias sentimentais de João Miramar e de mais três de Serafim Ponte Grande provocou uma reestruturação do projeto inicial, que não poderia, de modo algum, prescindir dessa feliz contribuição. Mesmo que, por um lado, o volume ultrapasse os limites exclusivos da poesia, por outro enriqueceu-se com os dois romances mais extraordinários de Oswald produzidos durante a década de 1920 – e publicados no volume da Archives com variantes e notas de Maria Augusta Fonseca. A presença desses dois livros exigiu, além do aparato da crítica genética, a inclusão de novas solicitações de leituras de texto assim como a recuperação de material crítico sobre os romances no dossiê final deste volume. O registro de uma reescrita  permanente é notável e a idéia do acaso ou da improvisação no processo de composição do autor fica definitivamente abolido.

Dentro do ideário latino-americano da década de 20, pertence a Oswald de Andrade a resposta mais criativa à questão da descolonização da América e do Brasil. Ele abandona essas reflexões durante muitos anos para retomá-las com intensidade nas últimas décadas de sua vida. Infelizmente, não existem versões manuscritas dos manifestos. Em compensação estamos apresentando pela primeira vez um cotejo das três primeiras versões do Manifesto antropófago publicadas em vida do autor. Aos dois clássicos manifestos (Pau Brasil e Antropófago) e aos textos de tese (entre outros, A crise da filosofia messiânica e A marcha das utopias), acrescentamos dois textos que representam pequenas obras-rpimras da sátira política na literatura  brasileira. Embora compostas a oito anos de distância uma da outra, Antologia (assinada por João Miramar) e o praticamente inédito A retirada dos dez mil têm o mesmo alvo: o pensamento conservador de Plínio Salgado, nacionalista de direita que, em 1927, era porta-voz do grupo Verdamarelo (ou grupo da Anta) e, em 1935, por ocasião da publicação do segundo artigo, tornara-se o consagrado líder do partido integralista brasileiro, de tendência nazi-fascista.

Finalmente, o “Caderno de imagens” foi uma oportunidade excepcional dentro do marco desta coleção para oferecer aos leitores quarenta páginas representativas da riqueza do universo biográfico-visual de Oswald: retratos fotográficos, pinturas, caricaturas, imagens de família, amigos, mulher5es, viagens, manuscritos, capas de livros, pinturas da mão do próprio Oswald e rica iconografia da etapa “antropofágica”, assinada por Tarsila. O caderno fecha emblematicamente com O beijo, de Constantin Brancusi, dedicado ao casal.

Como toda edição crítica, temos plena consciência de que esta não é definitiva, apenas a última. Outros pesquisadores farão leituras diferenciadas, terão percepções diferentes dos textos, da explicação das variantes e, quem sabe, ainda seja descobertos manuscritos que não foram encontrados por esta equipe e que algum dia virão à luz. Nesse sentido, foram excluídos do volume os textos memorialísticos, a correspondência, o jornalismo, o teatro e os romances posteriores aos dois aqui apresentados. Não apenas é a exclusão que justifica a idéia de incompletude, e sim o caráter constitutivo de uma vida e de uma obra, da forma como o próprio Oswald as concebeu durante os seus momentos de paixão e de criação.

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