Sakamoto, você não saka nada sobre antropofagia, por Beatriz Azevedo

Sakamoto, você não saka nada sobre antropofagia, por Beatriz Azevedo

Abaporu. Tarsila do Amaral, 1928.

A querida Beatriz Azevedo em um debate interessantíssimo e necessário sobre o sentido a presença da Antropofagia entre nós:

 

Sakamoto, você não saka nada sobre antropofagia, por Beatriz Azevedo

 

 

Leonardo Sakamoto errou feio no título de seu texto “O ódio à Marisa Letícia: É o Brasil antropofágico que pede passagem”. Com seu título infeliz, nos colocou a todos no mesmo saco daqueles que destilaram ódio a dona Marisa. Eu digo não!, Sakamoto. Faço aqui meu desagravo.

E revelo imenso susto pelo fato de um jornalista admirado por tantos seguidores, que tem contribuído para o debate social, muitas vezes com denúncias importantes, ter sido capaz de tamanha obscuridade. O meu tom é de perplexidade.

No século XVI, Michel de Montaigne já havia compreendido e iluminado a questão, desfazendo este equívoco que agora o jornalista vem propagar, em pleno século XXI.

Nos seus Ensaios, o filósofo francês acerta em cheio ao falar dos indígenas da América, tidos como “primitivos” em comparação com os europeus, ditos “civilizados”: “creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede, porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e espontaneamente produz. Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão, mas não em relação a nós, que os sobrepujamos em toda a espécie de barbárie”.

No extremo oposto da visão humanista e reveladora de Montaigne, o jornalista Sakamoto vê o pior na Antropofagia. Além de seu equívoco e do chavão surrado, usar a expressão “pede passagem” atesta o quão fora de tom Sakamoto está, inclusive do ponto de vista da linguagem, já que antropófago nenhum “pede passagem”. Coisa mais parnasiana, e colonizada, o seu “pede passagem”, tão antiquado que nem chegou a Chiquinha Gonzaga, “ó abre alas que eu quero passar, eu sou da lira, não posso negar!”.

De onde Leonardo tirou a péssima ideia de citar Oswald ao comentar sobre pessoas que destilam ódio via internet?!?? Que contrassenso! Reproduzo aqui seu texto literalmente, porque de “original” ele não tem nada: “Por enquanto, porém, vamos transformando uma interpretação literal do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em profecia cumprida.

”Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” O último a devorar o outro, por favor, apague a luz”.

Não satisfeito, Sakamoto ainda maltrata os ouvidos alheios com “enxames de semoventes”. Meu Zeus, Saka, até Olavo Bilac era menos parnasiano que você! Agora o imperdoável mesmo, Sakamoto, foi você ter colocado aji no moto na carne de Oswald de Andrade! O que é isso, chef?!?

 

Abaporu. Tarsila do Amaral, 1928.
Abaporu. Tarsila do Amaral, 1928.

 

Em primeiro lugar, o título da obra de Oswald de Andrade é Manifesto Antropófago. O “antropofágico” é por sua conta. Totalmente equivocada a pretensa “interpretação literal” do Manifesto de Oswald associando-a ao comportamento dos haters de internet. Sakamoto trocou as bolas, confundiu fascismo com antropofagia, duas visões de mundo totalmente antagônicas. Enquanto o fascista quer aniquilar o outro, o antropófago valoriza a alteridade.

Esse primeiro aforismo do Manifesto, ao contrário do que Sakamoto afirmou, alude aos Tupinambás, ao rito praticado em caráter cerimonial em Pindorama, essa terra toda que é dos indígenas, e que foi usurpada, colonizada, estuprada (a terra e as índias), pelos colonizadores europeus que aqui aportaram em 1500. Mais recentemente, esse território tem sido desmatado, corrompido por “empreitadas” Odebrechtianas, sem nenhum distanciamento Brechtiano, na imposição de um Belo Monstro aos nossos rios e matas, um Belo Monstro atual e futuro à base de alimentos transgênicos e catástrofes climáticas.

Os usurpadores de 1500, eles sim, uns haters coloniais, assassinando os ameríndios, que sofreram também um AVC, atentado vascular continental, e desde então encontram-se internados em estado grave e em coma induzido nessa UTI, unidade de tortura intensiva, chamada Brasil. Os usurpadores de agora, eles sim, uns haters de índios, de mulheres, de negros, de LGBTs.

Oswald, amoroso e utópico poeta, era em tudo o oposto disso: um lover. Um amante de Pindorama, defensor do Matriarcado, ousado e feminino, que escreveu: “esta noite tenho o coração menstruado. Sinto uma ternura nervosa, materna, feminina, que se desprega de mim como um jorro lento de sangue. Um sangue que diz tudo porque promete maternidades. Só um poeta é capaz de ser mulher assim”.

Ao afirmar que “só a antropofagia nos une”, Oswald procurava acordar esta consciência histórica e sagrada da sabedoria da terra, que Sakamoto provou ignorar, e pior, deturpou o sentido, afirmando exatamente o contrário do que disse Oswald de Andrade. Quando os índios devoravam os outros, a finalidade era acender a luz! E sem pedir “por favor”. Comer o outro é valorizar a alteridade, é sinal máximo de admiração e respeito.

Sakamoto, e qualquer pessoa, pode fazer leituras variadas da antropofagia, afinal essa filosofia mesma, e seu autor, inspiram a pluralidade e a liberdade. Mas uma coisa é fazer uma leitura livre, outra coisa completamente diferente é afirmar publicamente o OPOSTO do que o autor escreveu. Não se pode sair por aí dizendo impunemente que Nietzsche desejava a “vontade de impotência”, por exemplo, ou que Simone de Beauvoir defendia o patriarcado. Foi o que Leonardo Sakamoto fez com a filosofia que Oswald de Andrade desenvolveu durante 40 anos de produção intelectual, partindo do Manifesto Antropófago e chegando à tese “A Crise da Filosofia Messiânica”.  Como disse Augusto de Campos, a Antropofagia é “a única filosofia original do Brasil”.

O jornalista escorregou feio. Sobretudo em um país como o nosso, como Sakamoto bem disse, pouco educado e com déficit de formação. Neste contexto, vir a público reforçar preconceitos e disseminar uma ideia fajuta, é um desserviço total à educação, à cultura, ao pensamento.

O que mais me espanta é que este texto de Leonardo Sakamoto não é um exemplo único de citação equivocada da Antropofagia. Ele tem repetido, há mais de ano, estes golpes difamatórios na filosofia de Oswald e dos ameríndios. Em 13 de maio de 2016, o jornalista escreveu: “É mais fácil arrancar sinceridades sobre antropofagia da boca de políticos do que sobre CLT e Previdência.  Se bem que devorar o trabalhador enquanto ainda respira é antropofagia”.

Não, Sakamoto, isto não tem nada a ver com antropofagia, isso é capitalismo! E capitalismo é o exato oposto de Antropofagia. Ou você imagina que índios são capitalistas?!? Ou supõe que Oswald de Andrade, que propôs no Congresso da Lavoura que os latifundiários dividissem os lucros da terra, era defensor da exploração do trabalhador?!?

De onde você tirou essa ideia absurda?!? Fica evidente que Sakamoto nunca leu o Manifesto Antropófago. Ou pior, se leu, não entendeu. Cito aqui alguns aforismos para esclarecer sobre a posição de Oswald, que enaltece a vida tribal antes da colonização:

“Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

(…) A inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem”.

Não consigo nem imaginar como alguém consegue enxergar nos textos de Oswald o oposto do que o poeta escreveu, durante toda a vida! Como afirmou o professor da Unicamp, Eduardo Sterzi: “duvido que alguém consiga fazer uma leitura mais equivocada do Manifesto Antropófago”.

E Sakamoto não parou por aí, pasmem leitores! Em 17/11/2016 ele retornou ao erro, orgulhoso. Olha o que o jornalista teve a infâmia de publicar: “Pedem golpe militar, agridem jornalistas, matam o próprio filho. (…) Por enquanto, vamos transformando o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em profecia cumprida. ”Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”

Não, Sakamoto, a “profecia” de Oswald não era essa, absolutamente. A antropofagia que nos une, na utopia de Oswald, é a do Matriarcado de Pindorama, um território regido pelo feminino, tribal, coletivo, ancestral. Pindorama é o nome que os índios davam a seu território, “terra das palmeiras”, antes de ter sido usurpado à força pelos colonizadores. A Antropofagia que nos une socialmente, economicamente, filosoficamente, é a dos indígenas, afinal “já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro”. Ao contrário da associação perversa com o ódio atual, feita pro Sakamoto, a antropofagia destila alegria, afinal “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”.

Sakamoto repete parágrafos inteiros do texto de 2016 no recente artigo de 25 de janeiro de 2017, sobre o ódio a Marisa Letícia, pretendendo igualar a antropofagia às ações mais torpes da atualidade. Nos inclua fora dessa! Nossas homenagens à ex-primeira-dama recentemente falecida, todo respeito e carinho a seus familiares. Além de todos os motivos intelectuais que exponho neste artigo, tornou-se particularmente insuportável calar sobre esta associação infame, neste momento doloroso para todas as mulheres, historicamente difamadas.

Em 2016, tendo publicado já duas vezes, no mínimo, difamações sobre a antropofagia, observo que Leonardo Sakamoto não agregou ao final nenhuma “nota” de “desculpa pelas ofensas modernistas”, como o fez agora em 2017. E mesmo essa nota não resolve a questão; ela é insuficiente, pois o estrago já está feito desde o título em letras garrafais. Não se trata de “ofensa modernista”, trata-se de uma “leitura” de desrespeito, de deturpação, com a perigosa difusão e popularização de preconceito e desserviço à cultura e a educação.

Para piorar a situação, o ato difamatório do jornalista é recorrente e constante. Impunemente, Sakamoto vem repetindo esse bordão contra a antropofagia há tempos. Isso constitui uma verdadeira campanha de difamação. Isso é gravíssimo. Não se trata apenas de um erro epistemológico, mas sobretudo de uma injustiça política.

A Antropofagia não é só de Oswald de Andrade, ela é antes de tudo patrimônio imaterial dos povos indígenas das américas.

Até hoje, ela é um emblema capaz de inspirar artistas e intelectuais como Oswald, Pagu, Raul Bopp, Geraldo Ferraz, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Benedito Nunes, Antônio Candido, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Jorge Mautner, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Zé Celso Martinez Correa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tunga, Chico Science, Eduardo Viveiros de Castro, Jorge Schwartz, Aguilar, Verônica Stigger, Eduardo Sterzi, Alexandre Nodari, Ava Rocha, Negro Leo, o Teatro Oficina, e tantos outros.

Recentemente, as escritoras Tatiana Salem Levy e Marcia Tiburi, que também é filósofa, compreenderam profundamente a potência da Antropofagia e do Matriarcado de Pindorama, e reverberaram suas visões, aqui http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/07/1793991-antropofagismo-de-oswald-de-andrade-ainda-e-antidoto-para-a-colonizacao.shtml e ali http://www.valor.com.br/cultura/4627895/vamos-comer#

 

Sakamoto foi, no mínimo, leviano com Oswald de Andrade e todos nós.

Parece até que ele tinha uma boa intenção ao sagrar o estado de saúde de dona Marisa, e acusar o desrespeito dos haters. Mas, Sakamoto, de boas intenções o inferno está cheio! Como você acredita que poderia criticar o desrespeito dos outros, se você mesmo desrespeita totalmente a cognição, a semiótica, a poética, a metáfora, o autor e sua obra, desrespeita os sentidos e a inteligência do seu leitor?!?

Muito deselegante de sua parte acusar os outros de “idiotas que chamaram isso de justiça divina”, na sua vã tentativa de defender valores humanistas, capazes de “reconhecer no outro alguém que tem os mesmos direitos e sentimentos que nós”. Ora, Sakamoto, se você chama alguém de idiota, escrevendo num veículo de imprensa de abrangência nacional, você está se utilizando de um espaço privilegiado de poder de fala para diminuir os outros. Você pensa que é superior aos “idiotas” mas faz uma coisa dessas… tsc tsc tsc – êta vida besta! como diria Drummond.

 Em outro momento você acusa aqueles que “fazem isso vomitando argumentos de botequim sobre política e economia”. Olha o sujo falando do mal lavado, diria minha avó! Será que em seu texto você não “vomitou argumentos de botequim” usando a obra de um escritor que você não saka? Que indigestão foi essa, Sakamoto?!? Mas que mania de misturar alhos com bugalhos!

Depois Sakamoto continua sua crítica, dizendo que “não somos educados para a noção de limites”. No seu caso, é bem verdade, Sakamoto. Você passou dos limites com a religião dos Tupinambás, com a filosofia de um criador, deturpou a obra de um escritor e de centenas de artistas e pensadores.

Ao contrário da associação torpe feita por Sakamoto, o “Brasil Antropofágico” é aquele que pode nos trazer algum orgulho deste país.  Em primeiro lugar, o Brasil antropofágico é o Brasil indígena que preservou o que ainda temos de floresta, de rios, de rizoma vital. Tanto para “dentro” como para “fora” das fronteiras, a Antropofagia é respeitada enquanto prática e conceito, metáfora, arte, e valorizada tanto na Freie Universität Berlin, quanto no Musée du quai Branly, ou no Musée des lettres et manuscrits, em Paris, onde participei do festival Art Antropophagie Aujourd’hui.

Neste exato momento, no Malba de Buenos Aires acontece uma exposição sobre Antropofagia.  E lá está a obra de arte brasileira mais valorizada em toda nossa história, o quadro Abaporu de Tarsila do Amaral, não por acaso, marco da criação da…. Antropofagia. “Aba-poru”, no dicionário de Tupi Guarani de Montoya, quer dizer “antropófago”. Por estas e outras, o melhor do Brasil não é o brasileiro. Ao contrário do que pensa Sakamoto, o melhor do Brasil é a Antropofagia.

Mas olha só o Leonardo Sakamoto escrevendo empolado de novo: “Quando questionados, os semoventes carniceiros vociferam palavras de vingança, mostrando que desconhecem qualquer noção de Justiça”. Saka, deixa os pajés ouvirem você associando a antropofagia e os índios aos “semoventes carniceiros que desconhecem qualquer noção de Justiça”. Em qualquer tribo, você está frito! Quem avisa amigo é: praga de Xamã ninguém tira!

Espero não ter que vir aqui depois para te alertar sobre o que você escreveu sobre os outros – e desejo que você não tenha escrito sobre si mesmo: e há aqueles que não conseguem ser contestados e, incapazes de admitir ignorância sobre algo, usam a agressividade como saída”. Fica a dica.

Depois de ter publicado seu texto, talvez alertado por alguém, você adicionou a tal nota, uma emenda que ficou pior que o soneto. No caso, seu soneto parnasiano. Sua nota tenta aliviar o equivoco que você cometeu, e de novo, erra totalmente no tom, dizendo que “Oswald não se importaria”, e que a frase dele “caiu como uma luva” para seu texto.

Como assim Oswald não se importaria?!? Meu Zeus, Saka, escrever “caiu como uma luva”, que coisa mais parnasiana, colonizada e demodê! Vivemos em um país tropical, o AVC de dona Marisa aconteceu em pleno janeiro de 2017, um verão tórrido, e você vem falar em “cair como uma luva”! Mas que luva, fio!?! Você usa

luva no verão, mano?!?
Exatamente, Saka, caiu como uma luva!! Ou seja, não tem nada a ver! A luva do seu parnasianismo e do seu preconceito não permite a você sakar nem desnudar nem tocar sequer a pele, nem nunca alcançar Oswald de Andrade. O que o poeta sempre disse, e você não saka poco nem saka moto, é que “precisamos ouvir o homem nu”. Enquanto você fizer suas “interpretações literais do original”, superficialmente, vestido de luvas parnasianas, nunca vai sakar nada de Oswald de Andrade e da antropofagia.

Depois de ler seu texto, um banquete abundante de equívocos, a pergunta que não quer calar: o que foi que colocaram no seu sakê, Sakamoto?

 

Beatriz Azevedo

Poeta, compositora, atriz e diretora teatral. Autora de Antropofagia Palimpsesto Selvagem, Cosac Naify, 2016, e do disco antroPOPhagia ao vivo em Nova York, gravado no Lincoln Center (Biscoito Fino/Discmedi Europa 2015). Mestrado (USP) e Doutorado (Unicamp) sobre Antropofagia, Matriarcado de Pindorama e Oswald de Andrade.

 

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