‘O enigma das ondas’: três poemas de Rodrigo Garcia Lopes

‘O enigma das ondas’: três poemas de Rodrigo Garcia Lopes
O poeta Rodrigo Garcia Lopes, que lança 'O enigma das ondas' pela Iluminuras em agosto (Foto: Elisabeth Ghisleni)

 

 

Pandora

 

Pânico, pandemia, pandemônio:
é o inimigo invisível, é o novo demônio,
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.
Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.

Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.

É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.

 

Sextina: o Dia da Marmota

 

Vai estar frio, vai estar cinza, e vai durar para o resto da sua vida.
Phil Connors (Bill Murray), em Feitiço do tempo

O rádio-relógio dispara exatamente às seis
ao som de “I got you babe”. O DJ anuncia: “É hoje
o Dia da Marmota! Tá muito frio lá fora!”
Phil acorda e diz: “Mas isso não foi ontem?”
As saídas da cidade, bloqueadas. Voltou outra vez.
Na sexta, percebeu: era prisioneiro do presente.

Olhou-se no espelho; sim, estava ali, presente.
Ligou pros seus irmãos (eram em seis):
“Ninguém atende! É isso, acontece toda vez,
como previ!” Amanhã não estaria mais frio que hoje
e Rita não menos ou mais bela do que ontem.
Começou uma sextina para ela. Neve caía lá fora.

Às seis tocou o rádio-relógio que ele jogara fora:
“Mas que inferno este eterno presente!”
No quarto, tudo no mesmo lugar de ontem,
quando ao som de Sonny & Cher se levantou às seis
e diante do espelho perguntou: “Será diferente hoje?”
“Nasci de mim quando acordei. Tento outra vez?”

A previsão do tempo, como Phil, pirara de vez
e os festejos haviam atraído a multidão. Fora
do hotel, Rita disse a Phil que apenas hoje
era o Dia da Marmota e que um belo presente
seria fugir de Punxsutawney depois das seis,
“na mesma van branca que pegamos ontem”.

“A marmota viu a sombra antes de ontem,
ontem, hoje também. Vou dizer mais uma vez,
Sou imortal! Sou Deus!”. Foi quando seis
caipiras jogaram o homem do tempo pra fora
do café. Acreditava agora estar num mágico presente.
“Algo me diz que nada será como hoje”.

Só que não! Rita, a produtora, confirmou que hoje
era de novo dois de fevereiro. “Engraçado, ainda ontem
sonhei que era prisioneiro do presente”.
“Nietzsche chama isso de eterno retorno. Uma vez,
em Elko, aconteceu comigo. Você me deu o fora,
ontem”, disse Rita. “Não, amor, transamos umas seis”.

Vai, sextina, ontem não houve. Amor venceu mais uma vez.
Este presente é precioso e não se joga fora.
Phil deletou a sextina. Hoje, exatamente às seis.

 

O futuro mandou lembranças

 

O dia, velho cigano, se encerra,
levando seu ouro para a China.
A noite está fresca na retina.
Quem vai herdar nossa miséria?

A vida uma comédia, só que séria:
Praias tão vazias, páginas tão pálidas
de tanto mistério, de tanto serem lidas.
Quem vai herdar nossa miséria?

Amigos distantes, estas linhas aéreas,
Instantes que foram isso, nada, espuma,
vislumbres, madrugada, alguma lua.
Quem vai herdar nossa miséria?

Minha dor mora onde outros tiram férias.
O passado é um rio que não regressa
e o presente, essa falsa promessa:
Quem vai herdar nossa miséria?

Uma sílaba no ar ainda reverbera.
Dunas mudas, dorso negro de montanhas,
o céu, lápide ardósia nessa quase manhã.
Quem vai herdar nossa miséria?

 

O enigma das ondas, de Rodrigo Garcia Lopes, sai em agosto pela Iluminuras

 

RODRIGO GARCIA LOPES (Londrina, 1965) é poeta, compositor, romancista e tradutor. Publicou seis livros de poemas: Solarium (1994), visibilia (1996), Polivox (2001), Nômada (2004), Estúdio Realidade (2013) e Experiências Extraordinárias (2015).


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