Que o século 21 dê razão a Piva

Que o século 21 dê razão a Piva

Wilker Sousa

Que uma vida trepidante seja condição para se tornar um grande poeta, a história nos oferece inúmeros exemplos que desmontam tal premissa. Drummond, nosso poeta maior, foi um funcionário público exemplar e, até onde se sabe, sua biografia não rimou com excessos. Há casos, porém, nos quais seria impraticável imaginar a constituição da obra poética sem o desregramento do sujeito empírico, tal como ocorre com Roberto Piva, que nos deixou no último dia 3 de julho, aos 72 anos.

Desde o explosivo Paranoia, de 1963, Piva fez da experiência transgressora o alicerce de sua poesia, mantendo-se fiel a este princípio cristalizado na frase que tanto proferiu ao longo da vida: “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”. Homossexual e adepto da ingestão de alucinógenos, proclamava a sabedoria dionisíaca da embriaguez, “fazendo de seu comportamento desregrado também o modo de ser de sua linguagem”, como escreveu o crítico Davi Arrigucci Jr. no prefácio à mais recente edição de Paranoia (IMS, 2009). “Piva não era um poeta de fim de semana. Era um poeta intenso, em tempo integral. Para ele, a poesia não era um adereço intelectual. Era algo vital”, define o também poeta Ademir Assunção.

Somado à conduta dionisíaca estava o xamanismo, culto às forças da natureza que aprendeu ainda jovem com um empregado da fazenda de seu pai. Desde então, esta prática milenar tornou-se preponderante em sua vida, uma vez que a busca pelo sagrado primitivo pode ser tomada como símbolo de oposição aos ditames da civilização cristã, da qual era crítico ferino. Refugiava-se, então, em locais como Mairiporã, Ilha Comprida, Serra da Cantareira e Jarinu (todos no estado de São Paulo), onde realizava seus rituais xamânicos e escrevia muitos de seus poemas, como revelam as referências explícitas presentes em muitos deles. “A maioria de suas poesias foi escrita em locais que ele chamava lugares de poder, por terem uma vibração, um magnetismo que davam a ele a inspiração. (…) Eram lugares que ele tinha como mágicos”, comenta Gustavo Benini, companheiro de Piva nos últimos 15 anos.

[HTML1]

Embora indissociada da experiência imediata, sua poesia não se resume à materialização do instante. A serviço do êxtase e dos devaneios do poeta estão as muitas leituras em que se embebeu, influências que vão desde o surrealismo francês de André Breton, passando por Mario de Andrade e Paolo Pasolini, até os beats norte-americanos. “Ele jamais economizou citações e indicações de leitura no aparente delírio de seus poemas. Assim, em um país com 70 por cento de analfabetos funcionais, Piva navegou contra a corrente não só pela poesia supostamente hermética e pela conduta transgressiva, mas por apresentar-se como erudito e divulgar sua erudição”, afirma o poeta Claudio Willer. Podem-se ainda enumerar à exaustão outras referências, entre elas, Rimbaud e seu “desregramento de todos os sentidos”, a música (especialmente o jazz e a bossa nova), além do pessimismo de Nietzsche, cuja frase “De tudo o que se escreve, aprecio somente aquilo que é escrito com o próprio sangue” pode ser facilmente incluída entre aquelas que melhor definem a poética de Piva.

Consequências
O ímpeto para a provocação evidentemente não passaria imune junto a setores mais conservadores da sociedade nem tampouco contribuiria para a aceitação de sua poesia na universidade, a qual julgava ser “o túmulo da poesia”, conforme declarou à CULT em 2000. “Piva seguiu, rigorosamente, uma ética particular, pela conduta sempre coerente com sua rebelião. Assim contribuiu para retardar sua aceitação e para tornar mais difícil sua própria vida”, afirma Claudio Willer. Para Alcir Pécora, crítico e estudioso da obra de poeta, “a grandeza de Piva não está determinada ainda. Ela existe como ato na sua poesia, mas a determinação discursiva da sua natureza depende de estudos sérios a respeito dela, que não são muitos. (…) Ele tem uma torcida ruidosa e sinceramente devotada a ele, mas pouca gente disposta a perder o seu tempo estudando a sua obra”.

Ainda que a recente edição de sua obra completa tenha propiciado maior visibilidade à sua poesia, a falta de interlocução o afligia, como relata o escritor João Silvério Trevisan: “No hospital, pouco antes de morrer, Piva me perguntava, referindo-se aos leitores: ‘Você acha que eles nos amam?’. A ideia de não ser lido o atormentava, como de resto tantos de nós”. Resta-nos, então, tomar como proféticos seus versos escritos em 1984: “O século 21 me dará razão, por abandonar na linguagem & na ação a civilização cristã oriental & ocidental com sua tecnologia de extermínio & ferro velho, seus computadores de controle, sua moral, seus poetas babosos, seu câncer que-ninguém-descobre-a-causa (…)”.

Livro inédito?
Segundo o companheiro de Roberto Piva, Gustavo Benini, há aproximadamente dois anos o poeta manifestou o desejo de escrever um novo livro. Ele acredita que Piva já estava trabalhando no projeto e que, possivelmente, já haja material suficiente para a obra. “Acho que ele já tinha esse livro mais ou menos escrito. (…) Tenho que agrupar esse material.”

Mais
Paulistano nascido em 1937, Roberto Piva teve seus primeiros poemas publicados em 1961 na Antologia dos Novíssimos, organizada por Massao Ono. Dois anos mais tarde, saía seu primeiro livro, Paranoia. Em tudo oposto ao que vigorava na poesia daquele período – em especial ao movimento concreto –, Paranoia revelava influências do surrealismo e da geração beat, o que causou estranhamento junto a críticos mais conservadores. Os anos, porém, se encarregaram de fazer da obra um dos marcos da poesia brasileira do século 20.
Publicou ainda Piazzas (1964), Abra os Olhos e Diga Ah! (1975), Coxas (1979), 20 Poemas com Brócoli (1981), Quizumba (1983), Antologia Poética (1995) e Ciclones (1997). Sua obra completa foi reeditada em três volumes e publicada pela editora Globo entre 2005 e 2008. Faleceu no dia 3 de julho, aos 72 anos, em São Paulo, onde sempre morou.

Entrevista com Roberto Piva
Clique aqui e leia entrevista concedida por Roberto Piva à CULT em maio de 2000.

(2) Comentários

  1. Fui aluno do nosso querido mestre ROBERTO PIVA na escola OSWALDO CRUZ (São Paulo). Ele nos abriu as portas aos extraordinários poetas futuristas, assim como ao fascínio de Rimbaud e Baudelaire. Fiquei sabendo hoje da sua morte, o que demasiado me entristeceu. Que Brasil miserável que nem se digna a publicar com a devida ênfase a morte do seus maiores homens! Vá com Deus, amigo e mestre ROBERTO PIVA e não se esqueça jamais de que nós sempre o amamos…

  2. Roberto Piva,

    Meu amigo, me ajudou tanto, marcou minha adolescencia.
    Ele dizia que a poesia sempre sera uma arte minoritaria.
    O grande poeta, permanece na memoria de seus leitores, a a unica brecha, o infinito, aonde a imaginacao e a chave, que abre o ceu, e o ceu, nao tem limites.
    Gaviao Pinhe.

    Anselmo Varoli
    Chicago, Illinois

Deixe o seu comentário

TV Cult