Política de autores

Política de autores
Michelangelo Antonioni nas filmagens de Chung Kuo, China, 1972 (Foto: Reprodução/Photographic Archive of Rai Teche)

 

Em 1972, Michelangelo Antonioni decide partir para a China. Sua decisão foi motivada por um convite feito pelo governo do país e pela necessidade de espaço e tempo após a segunda experiência no mercado anglo-saxão, depois de ter assinado um contrato para a realização de três filmes – com distribuição internacional – para a Metro Goldwyn Mayer. Após Blow up, em 1966, recebido de maneira morna pela crítica (e essa tensa relação com os críticos ocupa um particular espaço em sua trajetória), Antonioni foi violentamente atacado por Zabriskie point (1970), especialmente nos Estados Unidos; ataques que o colocariam em defensiva não apenas em relação à imprensa, aos acadêmicos e aos colegas, mas, sobretudo, às expectativas de Hollywood diante de seu cinema, do cinema italiano, de um jovem cinema europeu. Antonioni devia ainda um filme para a indústria, Passageiro: Profissão repórter (1975), que seria realizado três anos após sua experiência chinesa. O tempo de espera, de reflexão, acontece, então, em diferentes partes do país, com as crianças que brincam em um parque, em uma cesariana, nos gestos da população. Seu filme é um retrato possível de uma nação em transformação, uma aproximação de 220 minutos entre o Ocidente e o maoísmo.

No ano de sua viagem, a China ocupava no imaginário ocidental um território entre o pânico, a euforia e a ignorância, um espaço, na verdade, que parece ser sempre o mesmo em diferentes momentos da história, como neste, agora. No final dos anos 1960, o maoísmo aparecia para uma jovem geração de intelectuais, artistas, estudantes e engajados de toda ordem como uma possibilidade, uma esperança entre a burocracia da então União Soviética e o imperialismo norte-americano. O maoísmo, como organização do Estado, da economia e da sociedade, se converteu em uma forma de romantismo político, uma moda, uma mercadoria para o consumo revolucionário. Antonioni pretendia um retrato da “misteriosa” China, uma brecha pela qual os olhos ocidentais pudessem espiar, mas tudo o que pôde apresentar – uma idéia repetida por ele em sua narração em off – foi só um filme. Mas não só. Antonioni apresentou também um instante de cinema.

Cinema e filmes não são a mesma coisa. O que Antonioni experimentava nos Estados Unidos é o fato de Hollywood manter como preocupação a realização de filmes, e, nesse processo, o cinema deve aparecer se houver os ingredientes certos para que a combustão aconteça: um cineasta (e não apenas um diretor), uma idéia, coragem e uma intenção, que podem produzir um mau cinema, mas, ainda, cinema.

O crítico, escritor e jornalista francês Serge Daney, morto em 1992, aos 48 anos, e que dirigiu a mítica revista Cahiers du cinéma durante seus anos politicamente mais radicais, dizia estar o cinema e os cineastas determinados por uma questão moral: “O que é um cineasta se não alguém que em certo momento diz a si mesmo: eu não tenho o direito de filmar isso, eu tenho o direito de filmar aquilo. Penso que é seu papel tomar essa decisão, algo que nenhum outro pode fazer”. Mas Daney (que atacou China afirmando ter Antonioni filmado o país para afastá-lo do observador, como em um zoológico) acreditava também ser o cinema, como toda arte, uma relação com a herança, uma expectativa infantil, um prazer, a defesa de alguma coisa diante de alguém. Aqui, na estratégica viagem de Antonioni à China, pouco mais de trinta anos após sua passagem, é da herança, da influência e do futuro que tudo se trata. O que aproxima Michelangelo Antonioni da China? O que a China percebe em Michelangelo Antonioni?

De início, um tempo, uma vocação, a vontade de entender o novo e o modo como a juventude se articula no mundo, um desejo urgente que aparece quando o cineasta toma distância da crise da burguesia italiana de esquerda, que marca sua assim chamada primeira fase. Antes de partir para a China, Antonioni havia tentado documentar, em Blow up e Zabriskie point, uma certa “situação” pela qual uma nova geração passava. Uma situação explosiva e revolucionária encoberta pela atmosfera de destruição e tédio. Uma destrutiva, tediosa e explosiva situação revolucionária, enfim. De sua fase italiana à aventura nos EUA, o que se mantém é a idéia do casal, a aproximação entre um homem e uma mulher como campo de trabalho, metáfora, exemplo ou condição-limite da vida contemporânea. Esse olhar dirigido ao aqui e agora, esse cinema “dos jovens” está presente não apenas em seu trabalho, mas em toda a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer, assim como nos mais diferentes movimentos de renovação do cinema do mesmo período, o final dos anos 1950 e meados dos 1960. Com Antonioni, esse interesse dá um passo além, é sua constante e presente escolha moral, e uma via de mão dupla: a juventude continua a se interessar muito por Antonioni e, se ele pertence ao jovens, seu novo momento aponta para o futuro.

Godard, ao menos desde as últimas duas décadas, tem-se firmado como um dos artistas fundamentais do século passado. Sua obra conseguiu contaminar o modo como hoje se faz arte, fotografia, literatura ou televisão. No caso do cinema, Godard está também em toda parte, mas sua gramática é tão fortemente marcada que tudo o que se aproxima de Godard se torna, quase automaticamente, Godard, enfraquecendo o que se encontra ao redor; nesse contexto, Antonioni enfrentou uma verdadeira travessia do deserto. Seu estilo passou a ser visto como maneirismo, sua preocupação existencial, afetação; suas imagens, o resquício de um cinema “contra-revolucionário” surgido após o brilhante neo-realismo italiano. Mas, claro, tudo sempre corre o risco de uma mudança repentina.

Em entrevista à revista semanal francesa Les Inrockuptibles, em maio de 2004, Godard (o personagem central em diferentes acontecimentos centrais) falava sobre a crise do cinema, a inexistência de uma crítica cinematográfica hoje e a saudade de suas conversas com Serge Daney. E, ainda, sobre Antonioni. Para Godard, Antonioni é hoje a mais visível influência em uma nova geração de cineastas. Uma influência percebida no tempo do diretor francês François Ozon (Oito mulheres, Swimming pool) ou no norte-americano Gus Van Sant (Elefante, Gerry). E a palavra aproximação é a que melhor define essas relações entre Antonioni e os outros, mas Godard falava de um cinema e de cineastas que não se contentavam apenas em apanhar o que melhor lhes conviesse no imenso armazém da cultura. Seu comentário se dirigia àqueles que utilizavam o “método” Antonioni quase como uma explicação para a existência, para a sociedade, para a política e as formas de afetividade que se formam e se fortalecem com o tempo – pessoal e histórico.  Godard, o autor de A chinesa, falava, em última análise, da China. De todas as Chinas.

Nas imensas crises pela quais passa, de maneira cíclica, o cinema como arte e indústria, a salvação e a renovação surgem de lugares imprevisíveis, e um discurso constante é ser Hong Kong a última fronteira para o rejuvenescimento hollywoodiano. Diferentes nomes e tendências têm atravessado a fronteira para mostrar ao público norte-americano (logo, de todo o planeta) como reinventar a ação e o drama para a massa. Antonioni não está presente entre esses talentosos nomes. O método antonioniano sobrevive no olhar daqueles que ficaram, se fortalece em Hou Hsiao-hsien, Wong Kar-wai, Edward Yang ou Tsai Ming-liang.

Do grupo, Hou Hsiao-hsien é o mestre. Nascido na China em 1947 (sua família imigrou para Taiwan no ano seguinte), ele tem construído uma obra que o coloca em uma curiosa posição: ser o maior cineasta chinês vivo e ter seus filmes exibidos para reduzidas platéias no Ocidente. Hsiao-hsien, como em Goodbye South, Goodbye (1996) ou Millennium Mambo (2001) – seu mais recente trabalho, Three Times, foi exibido no festival de Cannes deste ano –, segue um dos mandamentos de Antonioni: filmar uma história íntima em meio a um acontecimento histórico ou social maior, no qual o tempo e o espaço urbano servem como comentários dramáticos do enredo que está sendo contado. Seus personagens, uma inquieta juventude taiwanesa, são movidos (como em A aventura ou Blow up) por forças que permanecem misteriosas aos olhos do espectador. São, de certa maneira, “emanações” que podem ser criticamente lidas das mais diferentes formas. Um cinema do qual Edward Yang está próximo.

Wong Kar-wai assume uma outra posição, mais vibrante, e incorpora em seu cinema algo perceptível no método Antonioni, mas que neste se encontrava em um lugar mais discreto. Kar-wai assume os casais, o desajuste diante da história, o tédio juvenil, mas coloca à frente uma certa necessidade do efeito. Onde Antonioni age de maneira sutil, o diretor de Amores expressos (1994), Amor à flor da pele (2000) ou 2046 elabora o “sensacional”, o humor e a fixação amorosa e muitas vezes se rende sem culpa a toda forma de maneirismo, como se fosse tão possível quanto necessário celebrá-lo; uma leitura que serve também para Tsai Ming-liang. Mas onde Wong Kar-wai é alegremente flamboyant, Ming-liang é apenas teatral.

De Michelangelo Antonioni há a possibilidade de estar nascendo (diante de um cenário de crise único porque violento, opressivo porque incontrolável) uma outra possibilidade para o cinema, no instante no qual não apenas os filmes, mas todo tipo de imagem é reduzido com rapidez alucinante a uma forma de mercadoria e diversão barata; um momento em que cineastas se eximem da tarefa de fazer cinema e uma suposta crítica, quando não silencia em nome de um período dourado do passado, da tradição e do classicismo, passa a defender publicamente um cinema indigente em nome de sua própria indigência. Em Antonioni está Hou Hsiao-hsien, Wong Kar-wai, Edward Yang, Tsai Ming-liang e muitos outros, como o genial tailandês (agora estamos apenas próximos do mundo chinês) Apichatpong Weerasethakul, autor de Blissfully yours (2002) e Tropical malady (2004), seus mais comentados trabalhos –  que evidenciam uma atração pelo universo de “emanações”, não mais na metrópole e na indústria, mas, agora, em plena selva. “Você pode arrancar a pele do tigre, mas não os ossos”, diz o diretor italiano em seu filme sobre a China, comentando a dificuldade em entender uma nação e uma cultura que permaneciam, a seus olhos, um enigma. Não se pode também roubar de Michelangelo Antonioni o que o cinema e a cultura lhe devem. E isso não é mistério algum.

Antonioni
Nascido na cidade de Ferrara em 1912, um centro histórico da pintura italiana, o diretor Michelangelo Antonioni é um dos maiores cineastas da história do cinema. Antonioni estudou Economia na cidade de Bolonha, mas se dirigiu rapidamente para o cinema. Apesar de definir a si mesmo como um intelectual marxista, sua obra promove uma abertura no restrito território do neo-realismo italiano. Suas preocupações não são apenas sociais, como os problemas da classe trabalhadora, mas, sobretudo, metafísicas. Seu olhar se volta para a elite urbana italiana e a juventude. Entre seus principais trabalhos estão: As amigas (1955), A aventura (1960), A noite (1961), O eclipse (1962), Deserto vermelho (1964), Blow up  (1966), Passageiro: profissão repórter (1965), China (documentário, 1972).

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