‘Um país como o Brasil não pode ficar no limbo da não-cultura’

‘Um país como o Brasil não pode ficar no limbo da não-cultura’
O escritor angolano Ondjaki (Foto: Rui Gaudêncio)

Há sete anos vivendo no Rio de Janeiro, o autor angolano Ondjaki fala da recém-lançada edição brasileira de ‘O assobiador’ e da relação com o país

 

Com apenas 39 anos, o escritor angolano Ondjaki já tem atrás de si uma vasta produção literária: são 26 livros publicados entre romances, contos, poesias e peças de teatro. Uma dessas obras, a novela O assobiador, publicada originalmente em 2002, acaba de ganhar versão brasileira pela Editora Pallas.

Composta em 20 capítulos, ela retrata uma pequena aldeia de ares fantásticos, povoada por personagens peculiares, que é subitamente deslocada de sua rotina com a chegada de um forasteiro identificado como “o assobiador”. A edição brasileira ainda traz cartas trocadas entre o autor e a poeta angolana Ana Paula Tavares, além de diários de escrita de Ondjaki e de uma das personagens do livro, Dissoxi.

“Eu me sinto muitas vezes no impasse de pensar que tenho coisas pra dizer e não saber o formato certo de as dizer. Isso é uma aflição. Não é não ter o que dizer, é não encontrar a formulação literária certa para o fazer”, diz Ondjaki em entrevista à CULT durante o lançamento do livro no Madalena Centro de Estudos da Imagem, na última quarta (5).

Leia trechos da conversa, em que o autor fala sobre seu processo de escrita, os recentes acontecimentos políticos do país e sua relação com o Brasil: “O que me espantou primeiro aqui, e o que ainda me espanta, é de fato que o lugar do negro no Brasil não está pensado, não está previsto”.

CULT: Você escreve literatura infantil, adulta, teatro, poesia, roteiro, artes visuais. O que te move a se expressar de tantas formas?

Ondjaki: Eu parto sempre de uma ideia e a ideia depois é quem me diz pra que área devo ir. Há ideias que nascem prontas, outras pedem muito mais tempo – e por tempo também estou a falar de páginas, provavelmente um romance. Há ideias que morrem na partida, e que não vão para lado nenhum. A maturidade literária na realidade não é só o modo como escrevemos, mas é entender rapidamente para que direção é que vai a ideia, se serve ou não. Há histórias bem contadas e histórias menos bem contadas, mas qualquer uma pode ser contada.

Assobiador vem de alguma vivência particular sua?

Acho que me inspirei muito mais no universo literário. É obvio que nessa aldeia [do livro] há a rebita, uma dança típica de Luanda, mas é só uma reminiscência da influência, porque eu vejo essa história como um filme e por isso me parece surreal. Não é uma tentativa de retratar uma aldeia que exista. É uma aldeia cinematográfica. Eu vejo, por exemplo, KaLua [personagem do livro], que é meio maluco, e me lembro daquele maluquinho que havia no filme do Fellini, Amarcord [1973]. O caixeiro-viajante faz muito lembrar outro caixeiro-viajante de uma telenovela brasileira, que tinha uma mulher em cada cidade. São influências que confluíram e deram essa história.

É o que você deixa bem explícito usando uma epígrafe para cada um dos vinte episódios

As epígrafes são pequenas homenagens. Eu sempre vejo cada livro, ou a literatura, como um quintal. Um quintal aberto, quintal angolano, onde eu posso convidar pessoas. E portanto, no quintal do assobiador, tinha espaço para García Márquez, Ubaldo, Celan, Borges.

Como você percebe a produção literária africana escrita em língua portuguesa?

Eu conheço mal a realidade de outros países. Conheço um bocadinho da realidade editorial de Moçambique e de Angola. Mas tem acontecido, está ativa, aparecem novos escritores, às vezes. Há dificuldades econômicas. Nesse momento a Angola atravessa uma crise econômica que está relacionada com o petróleo, então afeta todos os setores. Inclusive o setor cultural do livro é um dos primeiros a ser cortado. Enfim, tem alguns bons escritores e muitos escritores medianos, como em qualquer lugar. Só que aqui [no Brasil] são 200 milhões, cujos medianos e os bons são sempre mais do que em um país como Angola, que tem 24 milhões de habitantes.

A perspectiva cultural difere muito entre os dois países?

Agora vocês estão com um problema muito maior do que todos os problemas que tiveram antes. Primeiro, vivem sob um governo eleito por meio de um golpe, por mais que eles não queiram ouvir, por mais que não queiram saber, e não estou falando tecnicamente – tecnicamente as coisas podem ter sido feitas da maneira da lei. Além disso, além de serem uma cambada de golpistas, digamos, já se notou que a cultura não é uma prioridade, e isso vai dar problemas. Um país como esse, que tem uma tendência cultural viva e cotidiana, muito forte, não pode ficar no limbo da não-cultura. Mas isso é a opinião de uma pessoa que não é brasileira.

Como foi sua experiência nesses sete anos vivendo no Rio?

Foi bom, foram anos de aprendizagem. Eu realmente cresci e nasci em Angola, fiz universidade em Portugal, depois voltei para Angola e vivo cá desde 2009. Estar imerso, seja em uma esquina de outro lugar por sete anos, claro que permite observar certos códigos. Eu só encaro a viagem e a deslocação enquanto enriquecimento pessoal e enquanto via de diminuição de preconceito. Para mim, estar na terra do outro, na casa do outro, na rua do outro, é uma oportunidade para me confrontar com os meus preconceitos a partir daí, é isto que eu tento fazer. O Rio de Janeiro é uma cidade interessante, que gostam de dizer que é maravilhosa – é obvio que geograficamente  -, mas é uma cidade com problemas gravíssimos. E o Brasil é um país com um problema gravíssimo chamado racismo, que ainda por cima há quem diga que não existe. Existe, e é o grande mal de todos os males.

E como encara o problema do racismo no Brasil?

O que me espantou primeiro aqui, e o que ainda me espanta, é de fato que o lugar do negro no Brasil não está pensado, não está previsto. Não vale a pena virem com conversa de que está tudo democraticamente igual porque não é. Posso te dar exemplos muito gritantes e imediatamente. Quantos governadores negros vocês têm? Quantos reitores da universidade negros vocês têm? Quantos atores negros, no total, vocês têm? Não estou a dizer que não tem nenhum, estou a indagar quantos proporcionalmente à realidade do país. E veja a publicidade na televisão, ou na revista, quantas pessoas negras têm? A partir daí, quando a pessoa responder a essas perguntas, vai chegar à gravidade do problema. Em relação ao Brasil real, porque o Brasil real é outro, não é o da Globo, não é o das revistas. Mas as coisas estão começando a se enquadrar de outra maneira agora. O Brasil vai ter que se repensar enquanto país e certamente vai ter que repensar o seu poder judicial. Não é possível que o poder judicial tenha assistido a esses processos, demitindo-se, praticamente, do seu papel judicial. O juiz é um homem, mas o juiz tem uma profissão, um juiz, em princípio, acho que não deveria prescindir de sua ética. Essa profissão tem uma ética que deveria andar lado a lado, não a 20 mil quilômetros de distância. Não é possível certas coisas que aconteceram aqui e que não foram impedidas por nenhum juiz veio, ao contrário, foram apoiadas. É uma preocupação nacional. E há uma tendência para se ignorar todas as questões relacionadas com a desigualdade social, para crer e fazer parecer que todas as medidas anteriores eram erradas, o que não existe em nenhuma parte, nenhum governo, e os brasileiros vão ter que pensar muito bem nas próximas eleições em quem é que vão votar, se houver eleições. Acho delicado estar como estrangeiro a dar tantas opiniões, mas, enfim, há coisas que são evidentes que não posso deixar de dizer, não é? Independente de ser estrangeiro ou não.

Em Angola você costuma participar mais ativamente da política?

Não, eu não sou uma pessoa muita política, eu nem sou um escritor muito político. É mais fácil assim, em uma entrevista, abordar os temas políticos, porque às vezes é impossível não abordar a realidade social de qualquer país. Nós, como escritores, acabamos por ser figuras públicas. Eu gostaria muito de ser escritor sem ser figura pública, mas hoje em dia é quase impossível. As pessoas querem ver tudo, querem saber de tudo. Às vezes me perguntam sobre Angola e eu preciso dizer ‘eu não sei’. E elas não entendem muito bem, se perguntam ‘mas como você é angolano e não sabe?’. Bom, há um monte de coisas sobre Angola que eu não sei, há um monte de coisas sobre o Brasil que eu também não sei. Essa coisa do cidadão escritor ou ator ou cantor como embaixador do país, me inclua fora dessa. Porque eu não sou embaixador, sou escritor, a minha missão é de escrever, não de explicar Angola. Não tenho obrigação, por ser angolano, de explicar Angola a ninguém. E mais, se eu oferecer uma explicação, é apenas uma explicação no meio de 24 milhões de explicações, porque somos 24 milhões.

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