Olgária Matos entre mito e história

Olgária Matos entre mito e história
A filósofa, professora e escritora Olgária Matos (Foto: Reprodução/ IEA USP)

 

Num dos fragmentos de Rua de mão única, aquele intitulado “Desempacotando a minha biblioteca”, Walter Benjamin conta-nos como chegou a sua coleção de livros: pesquisas em catálogos, encomendas comerciais, descobertas em livrarias, aliás inseparáveis de derivas viajantes que o levaram à conquista de cidades, heranças. Segue notando que o colecionador de obras envolve-as as “no círculo mágico” de uma “enciclopédia mágica”. Pondera que organizar uma prateleira de títulos é assimilar em termos próprios o legado das obras que aí se acomodam. E acrescenta que essa é “a maneira mais pertinente de formar uma biblioteca” e que, no sentido mais elevado, “essa é a atitude do “herdeiro”.

Na ocasião do lançamento desta nova reunião de textos da mais benjaminiana das pensadoras, Palíndromos filosóficos – entre mito e história, vale então perguntar como a filósofa Olgária Matos organiza sua estante de livros. E já que se sabe quanto Frankfurt complicou Marx ao implicá-lo, invertendo-lhe o prognóstico otimista acerca da marcha da história rumo à libertação final do homem, talvez caiba indagar também sobre a especial maneira como assume a dívida da filosofia a que refere sua tão insistente quanto briosa crítica à decadência do presente.

Ora, quem quer que se ponha a considerar as recorrências do texto de Olgária Matos, inclusive aquelas do texto oral desta incansável palestrante, todo ele percorrido pelos mesmos requintes de formulação aforística que reconhece na letra do texto dos expoentes a que se reporta, não pode não reparar em certo “círculo mágico” que é aí delineado pela pletora de suas reservas letradas. Mais que isso, por sua especial maneira de alinhar literatura e educação, até por saber, sendo uma leitora contumaz dos clássicos, que a paideia grega incluía Homero, por onde a literatura começa, cujos poemas estavam na ponta da língua de todos os cidadãos bem formados, até mesmo no século dos filósofos. Daí o séquito mito-poético de que Olgária se vale – evoluindo entre mito e história, como quer o subtítulo de seu novo livro – para ilustrar aquela sabedoria trágica acerca do humano que Nietzsche ensinou Frankfurt a considerar. Já que a tragédia grega radica na mitologia. Daí também Baudelaire, Proust, Valéry e Albert Camus – para ficarmos apenas em suas referências modernas e francesas mais insistentes e nesta comunidade principal de errantes -, a também serem chamados a homologar sua crítica ao mundo administrado.

De fato, enquanto herdeira que é da fina inteligência egressa do Instituto de Pesquisa Social, a filósofa não cessa de remeter infinitamente a questão da vida danificada às réplicas que lhe fizeram os escritores e os poetas. De tal sorte que se pode arriscar dizer que sua forma mais pertinente de se apropriar da herança é tomá-la pelo lado do sublime benjaminiano. Isto é: responder à catástrofe com linguagem e pensamento, à historicidade trágica, com as forças da criação. A exemplo do que faz o mais excêntrico membro do referido Instituto, Walter Benjamin, figura do filósofo “não sentado”, como diria Nietzsche, que não apenas tornou a literatura seu pré-texto, mas verteu sua filosofia numa escrita de estatura e perplexidade literárias. Assim sendo, para melhor compreendê-los, traduziu Proust e Baudelaire. Não apenas isso mas peregrinou aos lugares santos do romance proustiano, investigando inclusive os antros homossexuais que levam Em busca do tempo perdido para as margens perigosas da cidade. Tanto quanto mudou-se para Paris, instalando-se na Bibliothèque Nationale, para arquivar tudo o que a tradição escreveu sobre o último dos líricos possíveis na situação moderna, o autor de As Flores do mal. Tudo isso em meio aos preparativos do inacabado e inacabável O trabalho das passagens, imenso projeto existencial saído de uma primeira ideia em torno dos choques entre lirismo e capitalismo, envolvendo justamente Baudelaire.

Isso deixa entender a discreta esperança, para citá-la, que Olgária Matos deposita nos artistas da palavra que o seu exposé mobiliza, vendo-os dirigir ataques-surpresa à vida controlada, capazes de devolver a potência do sonho à atualidade desencantada. É no âmbito deste contrabalanço estético da cultura do pessimismo, de resto, que celebra Maio de 1968 como celebra: enquanto coisa poética. Considerando-se que aquilo que mais valoriza nessa conflagração social não sangrenta são as estocadas verbais, os golpes de estilo, as sentenças lapidares sobre os muros da cidade, as chamadas à reforma da realidade, como no manifesto de um moralista do século 17 transplantado para a República das Letras do Quartier Latin por nome Guy Debord. Enquanto que o professor Adorno, que está de volta à Alemanha à época do levante francês, se indispõe com os estudantes rebelados, falando agora de cátedra, por trás dos óculos sisudos.

De fato, se é pelo olhar de perfeito estranhamento que voltam à modernidade factícia e tediosa que Baudelaire e Proust, seguidos de Valéry e Camus, alimentam a política de Olgária Matos, o senso de sua movimentação não estaria inteiramente descrito se não se ressalvasse que, enquanto um de seus ensinamentos assinala, com tais poetas, o advento da ruína, o outra estende, com eles, pontes que levam, por vias antissociais e clandestinas, da barbárie à civilização. Assim é que vamos surpreendê-la a comemorar, em Baudelaire, a lição de resistência que o dandismo e o spleen oferecem à multiplicação monótona do mesmo e à padronização da vida burguesa. Em Proust, a reconquista da coincidência entre tempo e experiência pela força do flash da memória afetiva. No Valéry dos diálogos socráticos, a réplica do tumulto interior à ciência controladora e descarnada, via certa conversa imaginária entre Sócrates e Fedro, em que vem à baila a lição do arquiteto Eupalinos no sentido de que toda engenharia, por mais matemática e impassível que seja, envolve emoção.

Em Camus, a imprevista fortuna de Sísifo que, só por conhecer a tristeza do vão trabalho de carregar eternamente um fardo nos ombros, pode saber algo do fardo da vida e nos deixar saber algo sobre como levar a vida de modo heroico.

Nomenclaturas recorrentes do vocabulário de Olgária Matos como “alumbramento”, “philia”, “paideia”, “savoir faire”, “savoir vivre”, e coisas de seu quadro imaginário como escolas de tradução, fraseado do maio francês, pátina do tempo, gemas da terra, falam por si sós dessa contrapartida da fineza em relação à devastação. Ou dessas barricadas do desejo, enfim. É todo um senso do colecionamento de joias bibliófilas para a elevação acima da existência banalizada e banal. Aquele mesmo colecionamento de que fala Benjamin e que, aliás, foi o que terminou por retê-lo, além da conta, na Europa, ao longo dos perigosos anos 1930, a perambular pelas galerias, qual flâneur baudelairiano.

Dir-se ia, em suma, que ali onde a Beleza foi injuriada – como resumiu Rimbaud, discípulo de Baudelaire horrorizado pelos empregos de um século manual e servil, que jura que nele não porá suas mãos de escritor, Olgária Matos a apanhou e a sentou no colo, continuando a revolta dos poetas malditos, um lustro depois, pela via contrária, a do culto do belo.

Mais formidável ainda é que, na esfera mágica que a poesia traça nos desenvolvimentos olgarianos, juntamente com os marginais sublimes da era das mercadorias, com seus temas desauratizados, entram os deuses e semideuses dos tempos mais olímpicos. Afinal, é o poeta quem lhes dá forma.

Perguntava-se Mallarmé, em Os deuses antigos, pequeno tratado mitológico para as salas de aula de sua época positivista se, acaso, algum espírito imbuído de preconceito acreditaria que as divindades já não têm mais lugar na terra. Contra tal prevenção respondia acenando com a poesia: “Se os símbolos míticos foram destituídos da personalidade fabulosa que lhes concedeu a Antiguidade, a leitura das mais belas páginas das glórias de nossas Letras mostra que nada morreu de tudo aquilo que foi um dia o culto espiritual da raça”.

Ora, a julgar pelas entidades míticas que estão no centro vivo de sua argumentação contra o mundo por demais iluminado, isto é, controlado, a mesma pergunta e a mesma resposta subjazem aos escritos de Olgária. Efetivamente, também para ela, lendas fazem todo o sentido, aqui e agora, na ágora moderna. Visivelmente, a embriaguez com que se cumpre o trato do mundo antigo com o cosmos, antes que a ciência venha a desenfeitiçá-lo, a interessa.

É assim que tira lições de moralidade máxima das histórias mais antigas. Por exemplo, daquele do Hércules do período do cativeiro na Lídia, que, apaixonado pela rainha Ônfale, a quem é condenado a servir como escravo, depõe suas armas de guerreiro, troca de papel com a amada, vestindo-se de mulher, e põe-se a fiar a seus pés, dionisiacamente andrógino, ajudando-a com seus bordados. Nesta surpreendente revirada da saga do lutador invencível em marido domesticado, ela ousa ver uma bela nota do mitógrafo sobre a lealdade, o compartilhamento dos destinos e a horizontalidade das relações.

É o mesmo ensinamento que encontra no gesto de Páris, o raptor de Helena, quando este se dispõe a um enfrentamento direto com Menelau, para evitar um derramamento de sangue, na situação de guerra que o rapto desencadeou. O que a leva a comemorar, ao mesmo tempo, a atitude de Heitor, o general das tropas troianas, que apoia a proposta de Páris, nisso apoiado por Agamêmnon, e pede aos aqueus que recolham suas flechas, em respeito ao ancião que veio parlamentar.

Em Olgária, apelar a tudo isso, indo e vindo, entre mito e história, é estilema, traço de estilo. Eis como entender o palíndromo, bela figura poética da dupla direção do sentido, no título destas novas benjaminianas.

Palíndromos filosóficos – entre mito e história, Olgária Matos, Editora da UNIFESP, 360 páginas, R$ 64,90

LEDA TENÓRIO DA MOTTA é professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pesquisadora do CNPq, tradutora e crítica literária

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