A escrita em primeira pessoa de Octavia Butler

A escrita em primeira pessoa de Octavia Butler
A escritora Octavia E. Butler, pioneira na ficção científica norte-americana (Divulgação)


“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”. É esta frase que abre o romance
Kindred – laços de sangue, de Octavia Estelle Butler. Conhecida como “a grande dama da ficção científica”, Butler foi a primeira autora mulher e negra a ganhar, ainda nos anos 1970, notoriedade no gênero que até hoje é predominantemente masculino – e branco. Kindred, seu quarto livro, foi o primeiro de sua autoria a ganhar versão brasileira (em outubro de 2017).

Publicado originalmente nos Estados Unidos em 1979, Kindred conta a história de Dana, uma jovem escritora negra que vive na Califórnia, nos anos 1970, e se vê súbita e inexplicavelmente transportada para uma fazenda escravista no sul dos Estados Unidos, pouco antes da Guerra de Secessão. Horrorizada, percebe que está na casa dos seus antepassados: Alice, uma escrava, e Rufus, o dono das terras. Dana entende, também, que sua missão ali é não só sobreviver em uma sociedade que a rejeita, como também garantir que seus bisavós, os filhos de Alice e Rufus, nasçam, para que ela mesma possa existir, no futuro.

Kindred, assim, descreve a escravidão de forma honesta: Butler não hesita, por exemplo, em chamar de estupro a relação entre Rufus e Alice. “Eu devia levá uma faca comigo e cortá a garganta daquele maldito”, diz a personagem quando descobre que o dono da fazenda quer ter relações sexuais com ela. O fato de a autora ser negra em um contexto de lutas antirracistas nos Estados Unidos é essencial para este efeito. 

Filha de um engraxate e de uma empregada doméstica, Butler nasceu em 1947, no auge da segregação racial nos Estados Unidos e, apesar de viver em uma comunidade “racialmente integrada”, em Pasadena, Califórnia, sempre testemunhou sua mãe ser tratada de forma desumana nas casas em que trabalhou. Mais velha, formou-se na Universidade da Califórnia e descobriu que as relações violentas e ambíguas entre negros e brancos, que ela experimentara durante a vida toda, tinham origens muito antigas, datando da escravidão.

É marcante o conjunto de sentimentos conflituosos da própria narradora ao tentar unir seus antepassados (já que sabia que suas ações iriam gerar mais violência para sua tataravó). São sentimentos contraditórios que a escravidão também suscitou, já que todos os discursos da época – seja religioso, político, científico ou social – tinham como objetivo justificar o injustificável; normalizar o que, na prática poderia ser chamado de tortura, assassinato e estupro.

“Está vendo como as pessoas são escravizadas com facilidade?”, questiona a narradora em um momento em que percebe ter se dobrado perante a crueldade dos brancos. Em outro momento, a protagonista passa por um grupo de crianças negras e percebe, com um choque, que elas brincam de imitar um leilão de escravos. “Até as brincadeiras que elas fazem as preparam para o futuro… E esse futuro virá, se elas entenderem ou não.”

Os exemplos da “normalização” da escravidão são muitos, mas o romance vai além das relações ambíguas entre senhores e escravizados, trazendo, com frequência, descrições nauseantes do que era aquela realidade – narrados, pela primeira vez na ficção científica, do ponto de vista de suas vítimas, sem idealizações: há, nas páginas de Kindred, relatos secos de surras de chicote, castigos, separação entre familiares, além da descrição da rotina torturante dos que trabalhavam nos campos, de mulheres espancadas durante o parto e outras formas de desumanização daqueles forçados à escravidão.

Atualidade

Apesar de pintar um quadro realista do sistema escravocrata, Butler não se limita a criticar o passado, e faz questão de apontar como as raízes da escravidão permaneceram intactas até a época em que escrevia, os anos 1970. Coloca em xeque, por exemplo, alguns dos estereótipos forjados no século 19, como o da “Mãe Preta” – cuja função na casa grande era semelhante à de uma governanta. “Ela havia feito a escolha mais segura, aceitando uma vida de escravidão por sentir medo”, narra Dana, referindo-se a uma “Mãe Preta”, Sarah. “Era o tipo de mulher que seria desdenhada durante a militante década de 1960”, continua.

Neste sentido, uma das passagens mais interessantes e críticas de Kindred é quando Rufus, o dono da fazenda, encontra um livro sobre a história da escravidão que Dana carregara consigo. Depois de chamar os escritos de “besteira abolicionista”, ele questiona: “Se a escravidão já foi abolida, então por que vocês ainda estão reclamando dela?” – um discurso que lembra a ideia de democracia racial amplamente disseminada no Brasil e em boa parte do mundo ocidental.

Na verdade, o contexto em que Butler escreveu também tinha o racismo como característica, ainda que de forma menos explícita. Quando informou à família seu desejo de ser escritora, aos 13 anos, uma tia lhe disse: “Querida, negros não podem ser escritores”.

A tia, claro, estava errada: mesmo sofrendo de dislexia e sendo foco de bullying dos colegas desde a escola até a faculdade, Butler publicaria, ao longo da vida, 14 livros de ficção, venceria os prêmios Nebula, Hugo e MacArthur Fellowship (alguns dos mais importantes da ficção científica) e entraria, pouco antes de morrer, em 2006, no Hall Internacional da Fama de Escritores Negros. Além disso, a Pasadena City College, onde Butler também estudou, criaria uma bolsa de estudos com seu nome. O próprio Kindred vendeu meio milhão de cópias no mundo inteiro, algo incomum para uma autora negra nos anos 1970.

Ainda assim, todo o racismo sofrido ao longo da vida marcou a escritora, que desde pequena desenvolveu um complexo de inferioridade, achando-se “feia e estúpida, desajeitada e socialmente incorrigível”, nas suas palavras. Ela morreu em 2006, durante um bloqueio criativo que a atacara depois de anos trabalhando na série de romances Parable, que também abordava racismo. Segundo a autora, mergulhar no universo da série a “deprimiu profundamente”.

Kindred resume essas vivências, trazendo também todo o estranhamento e a dor que a escravidão deveria causar, mas já não causa, por ser sempre retomada de forma fria e afastada, por olhares brancos. Como a própria autora afirmava, seu maior objetivo ao usar a ficção científica como gênero era fomentar a liberdade. “Deve haver algo muito básico de errado conosco se estamos falhando nisto”, disse, em uma entrevista à Motion Magazine.

(5) Comentários

  1. Trabalhei com essa autora no meu Mestrado em Literatura de Língua Inglesa na UERJ. Ela é notável por ser mulher e um meio extremamente masculino e mais notável ainda por ser negra.

  2. Que vergonha Cult. Usar de títulos genéricos para uma autora que tem nome e sobrenome. Octavia Butler.

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