O mal de um professor de filosofia

O mal de um professor de filosofia
Thomas Mann em 1929 (Foto: BPK Berlin/Reprodução)

No capítulo 34 (continuação) de Doutor Fausto (1947), Thomas Mann compõe a imagem do círculo intelectual de Sixtus Kridwiss. O narrador, Serenus Zeitblom, assustado, aterrorizado e ao mesmo tempo encantado, assiste às tertúlias e, fortemente convencido das afinidades das ideias do grupo com a música de seu amigo Adrian Leverkühn, conta ter emagrecido 4,5 quilos no período em que as frequentou. O que haveria de comum nessas duas vanguardas, a crítico-cultural e a musical, seria seu caráter demoníaco.

Ambiguidade do demoníaco
O capítulo é uma montagem composta com base nos círculos conservadores do começo do século 20, muitos dos quais, não custa relembrar, alimentaram a ideologia nazista. Ali reverberam, por exemplo, os filósofos cósmicos Ludwig Klages e Alfred Schuler, que circundavam o círculo do poeta Stefan George, e o Grupo Filosófico, capitaneado por Oskar Goldberg. Como lema desses círculos, talvez se pudesse cunhar uma palavra de ordem como “libertemos o concreto do abstrato”. À maneira de emblema, a expressão de Oswald Spengler como que resume o problema: “Só o que assegura a solidez do futuro é a herança de nossos pais que carregamos no sangue: ideias sem palavras”. Paradoxalmente, foram gastas milhares de páginas procurando expressar tais “ideias sem palavras”.

Zeitblom, que se qualifica como homem de “natureza singela”, acredita que o círculo de Kridwiss, com sensibilidade, tomou o pulso da época. Só lamenta a frieza objetiva com que descreveram seu tempo e aderiram a ele. Essa ambivalência de Zeitblom, aterrorizado e encantado, se dá à mostra quase em cada frase do romance. Ambiguidade que não é apenas um traço peculiar do narrador, mas que também figura na estrutura do romance. O “erro teológico” que Zeitblom desfia na apresentação de sua própria Bildung (formação, educação, cultura) é um eixo disso. Diz o narrador, que é professor de filosofia: “Falando da cátedra de meu colégio, amiúde expliquei aos alunos do último ano que a cultura consiste propriamente na conjunção piedosa e ordenadora – quase que se poderia dizer: propiciatória – dos monstros da noite no culto dos deuses” (capítulo 2). O demoníaco não se confunde com o divino, sejam os deuses celestes ou ctônicos, e tampouco o culto é simplesmente idêntico à cultura. Em resumo, a ambiguidade do demoníaco arquiteta a atitude e a escrita do narrador, cúmplice do câncer que diagnostica.

Outro momento em que se averigua sua cumplicidade, mesmo que não intencional, é o capítulo 11, no qual fala dos estudos teológicos de Leverkühn. O estado da questão teológica dá-se por uma oposição. De um lado, a indecisão da chamada teologia liberal (os reais Ernst Troeltsch e Adolf von Harnack, por exemplo), cuja fragilidade se deve à incapacidade de ver e penetrar “no caráter demoníaco da existência humana”, na medida em que mancomuna com a “ideologia progressista burguesa” e transforma tudo, por assim dizer, em cultura. De outro, uma teologia que decididamente se deixa infiltrar pelas correntes irracionais da filosofia, o não teórico, o vital, a vontade, o instinto; numa só palavra, o demoníaco é tornado tema principal da teologia, a ponto de correr o perigo de se tornar uma demonologia. O humanismo propalado do praeceptor resguarda um fundo demoníaco que, ao longo do romance, coincide com sua superfície.

O sacrifício do intelecto
É certo que, ao escrever Doutor Fausto, Thomas Mann produziu uma paródia de uma voga da Alemanha do entreguerras: as populares biografias de grandes personagens, fartamente consumidas nas décadas de 1920 e 1930. Que se observe o tom kitsch, em que se fala dos Grandes, por exemplo, em Emil Ludwig e Stefan Zweig, escritores até hoje encontrados nos sebos brasileiros. A “erudição” de Zeitblom é em parte travejada por esse gosto pelas biografias de consumo que constrói a história como uma linha ininterrupta em que se acumulam ordenadamente os grandes heróis. Mas voltemos àquilo que Mann chamou de “um estranho aquário de criaturas de um período em seu fim”, ou seja, o círculo de Kridwiss.

Zeitblom dá duas imagens dessa roda da intelligentsia conservadora. Uma abstrata, outra concreta. De modo geral, a Primeira Guerra Mundial era tida como a base de “um novo sentimento da vida”, para o qual a república democrática não era a expressão adequada. Pelo contrário.

Numa descrição mais “fria” e objetiva, baseada em Tocqueville, da Revolução Francesa nasceram instituições livres e o poder absoluto. Mas a liberdade desmente a si mesma, uma vez que, para conter os inimigos, é necessário dominá-los. “De qualquer jeito, tudo tendia para a ditadura, para a violência”, diz Zeitblom, resumindo a primeira parte da imagem abstrata das reuniões e dando a deixa para a segunda parte, mais “quente”, baseada nas Reflexões sobre a Violência, de Georges Sorel. Só uma ideia é capaz de unir os povos, a de guerrear, e para tanto é necessário prover as massas de ficções míticas, de modo que se abandone a discurseira dos parlamentos e o que quer que se baseie na razão, na ciência, no direito, no indivíduo, na verdade. A força, a vida e a comunidade (a famigerada Gemeinschaft) estão separadas da verdade por um abismo. A comunidade exige de cada um que queira dela participar o sacrificium intellectus (sacrifício do intelecto), o que curiosamente parece um comentário de Hans Castorp, herói de outro romance de Mann, A Montanha Mágica (1924), que teve como desfecho uma educação para as trincheiras da Primeira Guerra.

A imagem concreta de Zeitblom é, por sua vez, a descrição de um jogo em que aqueles senhores – cientistas, eruditos e professores universitários – brincam. Fazem de conta que estão numa sessão de tribunal. Seu foco: “um daqueles mitos a serviço das massas”. Levantam-se os prós e os contras de tal “falsificação”, que é uma “crença formadora de comunidade”. A “justiça” pronuncia a sentença em prol do “fecundo falsum”. “Era um mundo antigo e moderno, revolucionariamente retrógrado.” Violência e poder não se dissociam, e ao pensamento cabe legitimar esse poder violento. Essa seria a diretriz do pensamento, ou como o nomeiam os frequentadores do círculo de Kridwiss, a diretriz da “pesquisa”. A abolição do abstrato se realizaria miticamente, violentamente, como ideias sem palavras, mesmo que para isso fosse necessária uma higienização nacional, racial e social. Antes, é necessário que se a faça. Abrem-se, assim, os campos de pesquisa e de extermínio: a ciência “concreta” da revolução conservadora.

Antes de continuarmos com a companhia do professor Zeitblom, lembremo-nos do que diz Schelling, autor da filosofia clássica alemã, sobre o demoníaco. Em 1810, nas Conferências Privadas de Stuttgart, fazendo um apanhado de seu pensamento filosófico para um grupo seleto de juristas e altos funcionários do Estado, Schelling dizia que o demoníaco “não é nem meramente espiritual nem meramente físico, mas o espiritual do físico e o físico do espiritual”. O demoníaco é precisamente o intermédio no homem. É o limiar entre a vida e a morte, lugar propriamente da ambiguidade e da indeterminação. É essa a instância em que permanece o professor Serenus Zeitblom, a instância da cultura entendida como “conjunção piedosa e ordenadora – quase que se poderia dizer: propiciatória – dos monstros da noite no culto dos deuses”.

A aula de Thomas Mann
Contam que o dramaturgo Bertolt Brecht, certa vez acusado de plagiar um antigo poeta francês, deu de ombros e respondeu: “Sou pouco atento às questões de propriedade privada”. Thomas Mann foi algumas vezes acusado do mesmo crime; a “culpa” é de sua técnica de trabalho: a montagem de citações. Junto com isso também vinha a acusação de frieza. Era como se dissessem: “Uma obra excessivamente talhada pela inteligência do autor”. Nem plágio nem frieza cabem inteiramente aqui.

A montagem de citações é um jogo do autor com sua escrita e ao mesmo tempo um recurso de distanciamento com o assunto de que trata. Também para o leitor o sistema irônico de citações é um mata-burro, impede a identificação com os narradores, personagens e temas, sem deixar de ser uma brincadeira divertida. Com Serenus Zeitblom, Mann prega uma peça em quem o pretenda ler sentimentalmente ou à espera de encontrar-se com grandes homens, ou alcançar a “profundidade” do mito, do humano etc. Antes de mais nada, ele ironiza e faz paródias, permitindo a si mesmo e a seus leitores que se conheçam por meio da “composição de citações”.

À maneira dos palhaços que andam sobre um barbante esticado no chão, ridicularizando os números circenses que desafiam a morte (andar sobre um arame a 20 metros de altura), Mann compôs um romance como Doutor Fausto. Traz à baila a solenidade de seu narrador, seu idioma escorreito que chega ao simples pedantismo. Ele faz ironicamente com que Zeitblom se exiba na composição. Não são os conteúdos pretensamente eruditos do narrador que ensinam algo, mas seu gesto de terror e encantamento, que só aparecem com força ao longo da linha de composição do autor.

A “ciência concreta” da revolução conservadora abre-se ao leitor sem que se exija acatamento. Não se participa dela nem se comunga das ideias sem palavras. Muito pelo contrário, é garantida a reserva de pensamento sem que se oficie uma religião da morte. O sacrificium intellectus não é necessário. Por meio da composição, o leitor alcança o conhecimento histórico de um período histórico, não é refém do demoníaco. A crítica irônica de Mann apresenta o círculo de Kridwiss como parente próximo do Ringverein, uma associação de criminosos que existiu na Alemanha do entreguerras. Talvez esteja aí a aula que deu Thomas Mann pela forma de seu romance. O fictício professor de filosofia Serenus Zeitblom foi incapaz de ministrá-la.

Deixe o seu comentário

TV Cult