O dionisismo em “Sínthia” e as emoções inviris

O dionisismo em “Sínthia” e as emoções inviris
(Bob Sousa)

 

“Seja, então, a compaixão [éléos] certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou penoso, e atinge quem não o merece, mal que poderia esperar sofrer a própria pessoa ou um de seus parentes, e isso quando esse mal parece iminente, [ – ] com efeito é necessário que aquele que vai sentir compaixão esteja em tal situação que creia poder sofrer algum mal, ou ele próprio ou um de seus parentes, e um mal como tal como foi dito na definição…”

Aristóteles, Retórica, II, 8, 2. 

 

Na edição do mês de outubro passado do Encontro com o Espectador, projeto que os jornalistas Beth Néspoli e Valmir Santos estão realizando mensalmente no Ágora Teatro – cujo objetivo é promover a aproximação do público paulistano com diretores, dramaturgos, atores e demais realizadores da arte da cena –, Kiko Marques declarou que o estudo do mito de Dioniso serviu de base à criação de Sínthia (o espetáculo-tema daquele encontro), texto escrito por ele para ser encenado pela Velha Companhia, grupo nascido em 2003 na cidade de São Paulo do qual o autor e diretor é um dos fundadores.

Sínthia é um belíssimo drama que articula dois planos discursivos. Na linha de frente, a peça narra os acontecimentos que envolvem a vida de uma mãe de família da classe média carioca, Maria Aparecida (cuja figura foi livremente inspirada na mãe do próprio dramaturgo, já falecida), desde os primeiros anos de seu casamento com o policial militar Luiz Mário, marcados pela expectativa gerada em torno de sua quarta gravidez – depois de o casal ter gerado três meninos, a mãe deseja veementemente que nasça uma menina, a quem dará o nome com o qual a peça é batizada – até os anos de sua velhice, que flagram Maria Aparecida, viúva e com os quatro filhos homens (no lugar de Sínthia, acabou nascendo Vicente) “bem encaminhados na vida”, acometida por uma doença incurável. Como pano de fundo, o texto fala da vida política brasileira, tratando, de modo muito sinuoso, das atividades de repressão praticada pela ditadura militar vigente no país de 1964 a 1985 (das quais Luiz Mário participou, menos por propensão de caráter e convicção ideológica do que por estar exposto às circunstâncias – e por cujo envolvimento pagou um alto preço) e dos vestígios daquele regime autoritário na vida social do Brasil nos dias de hoje, seja pelo embrutecimento dos afetos pessoais mais primários, seja pela perda de perspectivas de um grande contingente de pessoas para quem o regime militar jamais olhou e que vive até hoje à margem de todo direito e de qualquer esperança.

Cena do espetáculo "Sínthia" - foto por Bob Sousa
Cena do espetáculo “Sínthia” – foto por Bob Sousa

 

O dionisismo em Synthia, tudo leva a crer, está implícito tanto no plano do conteúdo do espetáculo como no de sua forma. Dioniso é o deus do panteão grego marcado pela androginia e pela dualidade. Em relação ao primeiro aspecto, o fato de o mito do segundo Dioniso (filho de Sêmele) aludir à gestação da divindade na coxa de seu pai, Zeus, implica uma simbologia sexual e matriarcal, segundo os estudos helênicos. “Consoante o esquema clássico dos ritos iniciáticos”, diz o verbete sobre o deus no Dicionário mítico-etimológico organizado por Junito de Souza Brandão, “o mito quer significar que o detentor de um dos mais célebres cultos da Antiguidade grega recebeu sua educação iniciática ou ‘segunda gestação’ na coxa de um deus supremo, que pode, no caso em pauta, ser considerado como um andrógino inicial. Coxa, no duplo nascimento de Dioniso, seria um mero eufemismo para designar o ventre materno”. Já o segundo aspecto, o da natureza dual do deus, diz respeito ao aspecto feminino de Dioniso e à sua constante ambivalência entre os planos divino e humano – o que levou Eurípides a apresentá-lo em As bacantes “como deus no theologeîon, e como o estrangeiro lídio ‘com ar de mulher’ no palco, um e outro vestidos com o mesmo traje, ostentando a mesma máscara indiscerníveis e, contudo, distintos”, conforme aponta Jean-Pierre Vernant no ensaio “O Dioniso mascarado das Bacantes”, que integra o volume Mito e tragédia na Grécia Antiga, escrito por Vernant em parceria com Pierre Vidal-Naquet.

Em termos de conteúdo, então, Sínthia trata desta menina tão esperada pela mãe, que, contrariando todas as expectativas da família, não vem, dando lugar ao nascimento de Vicente, o filho caçula de Maria Aparecida que, muito mais tarde, já em plena vida madura, renascerá (justamente em uma festa de Natal) como uma Synthia inesperada, contrária agora não mais às expectativas e, sim, à previsibilidade da instituição familiar. Família, cumpre notar, cujo par central outrora inverteu os polos de gênero, cabendo à mãe assumir a máscara repressora e machista que nunca se ajustou direito à face do pai, enquanto este enlouquece muito provavelmente por não ter sabido lidar com sua sensibilidade feminina (afeita aos trabalhos manuais como a costura, por exemplo) diante da violência despótica de um Estado repressor em cujas fileiras ele passivamente acabou se inscrevendo. O fato é que a androginia e a dualidade de Vicente/Sínthia talvez não tivessem sido expressadas, não fosse a estreita ligação que o professor de violino estabelece com Conrado, o aluno por quem ele nutre um afeto todo especial – ambíguo, inclassificável, complexo. O mesmo aluno que – Evoé, Dioniso! – surge em sua primeira cena na peça travestido de mulher.

Cena do espetáculo "Sínthia" - foto por Bob Sousa
Cena do espetáculo “Sínthia” – foto por Bob Sousa

 

Entretanto, é no plano da forma que a peça e o envolvente espetáculo encenado a partir dela exploram o dionisismo com força e expressividade incomuns. Dioniso é tanto o deus da ilusão teatral quanto a divindade da religião cívica, e ambas as esferas articulam as experiências da empatia, da compaixão e do medo, de um lado; e da violência e da tragédia, de outro – todas presentes na urdidura formal de Sínthia. Ao chegar metamorfoseado à casa materna ao final do espetáculo, Vicente-Sínthia-Dioniso apresenta-se como um outro que é ele mesmo, chocando seus três irmãos-Penteu, que não compreendem o que veem (“O que [Penteu] vê é a reprodução idêntica do mesmo seguida da reprodução do mesmo em outro. São duas características importantes da linguagem artística, capaz de mimetizar o aparente e de reinventá-lo em outra forma, que Penteu, com sua visão estreita, não percebe”, afirma Trajano Vieira na introdução de sua tradução de As bacantes). Por meio da metamorfose, Vicente-Sínthia é pura invenção, assumindo uma forma inovadora que a anacrônica instituição familiar não está disposta a reconhecer, por absoluta insensibilidade poética. (Não é demais lembrar que o travestido Vicente-Dioniso corresponde integralmente ao instrumentista Vicente-Orfeu, o poeta, músico e cantor célebre das lendas gregas cujo lirismo simboliza a contrariedade das normas do senso comum). Afinal, anos e anos de embrutecimento vivido seja no plano doméstico, seja no plano social levam à reação conservadora mais radical contra qualquer informação inédita.

No texto que assina no programa do espetáculo, Kiko Marques descreve os eventos que aproximam o enredo de Sínthia da vida de sua própria família, acentuando, entretanto, o que na peça é fruto de invenção: “Já homem feito, numa noite de natal, sentado em uma poltrona, imaginei como seria se eu, que fui morar em outra cidade (exílios) num dos meus regressos não regressasse. E, em meu lugar, chegasse a Cíntia. (…) E se isso acontecesse por compaixão? (…) Utopia de um mundo melhor? Se, como no poema do Drummond (…), o feminino ali se infiltrasse com a consciente função da redenção e da infinita compaixão pelos homens?”. Pois é também do sentimento trágico da compaixão de que trata Sínthia. Compaixão entendida como uma noção política de inequívoco elo social. (Para Philippe Lacoue-Labarthe, a tragédia grega constitui uma política da emoção, que explora a compaixão e o medo mais como conceitos políticos do que como psicológicos). Embora não se confunda propriamente com eles, a compaixão está ligada à empatia que sentimos por nossos semelhantes e ao medo de que o mal que os esteja acometendo possa vir a nos atingir também. Dramaticamente, Sínthia está assentada não somente sobre o sentimento de compaixão que o filho mais novo de Maria Aparecida demonstra ao retornar a casa justamente para cuidar de sua mãe, como também sobre a mesma emoção que nós, espectadores, somos convidados a experimentar diante de uma mulher tão derruída pela vida, a quem o câncer causticamente serve de última corrosão, e de seu marido, um homem comum, admirador do lirismo agreste de Geraldo Vandré, que se deixa enovelar pateticamente (não nos esqueçamos do encadeamento entre empático, simpático, patético e trágico) pela espiral do totalitarismo e da banalidade do mal.

Cena do espetáculo "Sínthia" - foto por Bob Sousa
Cena do espetáculo “Sínthia” – foto por Bob Sousa

 

No plano da realização artística do espetáculo, a empatia cultivada pelos espectadores em relação às figuras tão atraentes que ele vê desfilarem no palco nasce do fascinante trabalho de interpretação dos atores, sobretudo o do trio composto por Denise Weinberg (Maria Aparecida adulta), Alejandra Sampaio (Maria Aparecida jovem) e Henrique Schafer (Luiz Mário). Trata-se de três intérpretes que fazem o registro naturalista de seu trabalho estar a serviço de uma emoção que constantemente transcende do plano da introspecção individual para a esfera da psicologia social, levando-nos a experimentar – sempre pela via da empatia que demonstramos por eles – uma emoção de natureza ética). Os outros seis atores em cena também demonstram total afinação com a proposta da encenação, destacando-se a delicadeza com que Kiko Marques constrói seu ambivalente personagem.

Saindo da esfera do drama e tangendo hostes mais propriamente trágicas, Sínthia também fala da absoluta falta de compaixão com que os irmãos de Vicente o tratam após sua transformação. Ausência esta que vem marcando o mundo da hipertrofia do masculino, com sua propensão à beligerância e à intolerância. “A tragédia, a mais viril das formas de arte”, adverte Terry Eagleton em Doce violência: a ideia do trágico, “começou como uma atividade bastante afeminada. Uma das diversas razões pelas quais Platão a desterra de sua república ideal como o principal exemplo de arte irracional é porque ela nos permite satisfazer emoções perigosamente inviris, como compaixão e medo, por exemplo”.  Assim, é do coquetel de empatia, compaixão e medo que se serve o espetáculo da Velha Companhia, projetando o drama íntimo de uma família sobre um painel sociopolítico de dimensões trágicas, de envergadura bem mais ampla.

Cena do espetáculo "Sínthia" - foto por Bob Sousa
Cena do espetáculo “Sínthia” – foto por Bob Sousa

 

“Se o amor é uma lei, então a diferença entre sentimento privado e obrigação pública se desmantela, e a compaixão é empurrada para além da arena privada, chegando ao domínio político”, nos lembra ainda Eagleton. Sínthia adverte, então, para a tragédia de toda uma sociedade, de todo um país, que aniquila os portadores da informação inédita, da diferença, da contrariedade. À imagem de Vicente-Dioniso-Orfeu despedaçado no núcleo familiar corresponde à aniquilação de Conrado, igualmente discípulo de Orfeu, também despedaçado por seus irmãos, só que em âmbito social, e adverte para o traumático e angustiante processo de rompimento das velhas solidariedades fraternais que vimos presenciando no Brasil dos últimos anos. O interesse que sentimos por personagens tão reais, tão próximos de nós constitui uma ameaça às virtudes masculinas da força bruta e da disciplina reguladora que alguns de nossos patrícios pretendem nos impingir sob a tutela da lei. É contra essas mesmas virtudes que nós, espectadores de teatro – essa arte tão fluida, compassiva e transgênera –, devemos opor resistência. Sempre.

Cena do espetáculo "Sínthia" - foto por Bob Sousa
Cena do espetáculo “Sínthia” – foto por Bob Sousa

 

SÍNTHIA
ONDE: Espaço Os Fofos Encenam (Rua Adoniram Barbosa, 151 – Bela Vista)
QUANDO: Sábados, domingos e segundas, às 20h. Até 14 de novembro.
QUANTO: R$ 40,00
INFO: (11) 3101-6640

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