O caçador e o jardineiro

O caçador e o jardineiro

Zygmunt Bauman é um dos pensadores que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo teve um histórico de vida que passou pela ocupação nazista no seu país durante a Segunda Guerra, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país, sob a direta influência da ex-União Soviética, pela crise e pelo desmoronamento do regime socialista. Vive hoje na Inglaterra, em tempos de grande mobilidade de populações na Europa.

Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de “modernidade líquida” para definir os tempos atuais, em vez do já batido termo “pós-modernidade”, que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico que um conceito.

Define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão (como sujeito de direitos) em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política.

Leia abaixo parte da entrevista concedida por Bauman à revista CULT.

CULT – Em Tempos Líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?
Zygmunt Bauman – Para que a utopia nasça, é preciso duas condições.
A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se readeque.
A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres humanos, podemos fazê-lo”. Essa crença está articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos e ter força e coragem para extirpá-los.
Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.

Por que se fala tanto hoje em “fim das utopias”?
Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”.
A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e a harmonia da concepção de Deus.
Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas ela depende da constante atenção e do esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de planta devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados.
Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de planta e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”.
É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.

Leia a íntegra desta entrevista na Edição Especial de Janeiro da Revista CULT

(4) Comentários

  1. Fantástica a forma como ele percebe o enredo dos dias atuais… de uma certa forma ele vai nos amarrando na narrativa até que nos vemos sufocados e à mercê de suas constatações… Com certeza vou me aprofundar na forma de pensar desse autor…

  2. BAUMAN PR UM MUNDO MELHOR: Zygmunt Bauman possui um daqueles dons da clara visão do pensamento em relação ao que o cerca. Contudo, sua voz deveria ser mais ouvida, já que vivemos um momento da humanidade em que o excesso de informação parece mais dificultar que auxiliar o desenvolvimento do ser humano. Antes o homem vivia seu cotidiano e procurava, dentro de sua comunidade, solucionar os problemas prementes, para depois ir aos poucos lapidando o que seria melhor, mais justo, equânime e igualitário para todos. Nesse mundo de modernidade líquida, em que tudo escorre tão rápido como surge, o que era novo há seis meses hoje é caduco, o ser humano perdeu-se na fantasia de que um mundo mais desenvolvido seria sinônimo de um mundo melhor, quando diversos (e velhos) males ainda o afligem, como a fome, miséria, falta de estrutura, condições de sobrevivência, trabalho, dignidade, educação. O lado morno do ser aflorou e fomos vivendo, assim, com os países ricos determinado o que seria bom ou não para o desenvolvimento deste planeta, das nações. Pelo que ele esclarece, as utopias são possíveis, sim (já o foram tantas vezes na História), mas depende da vontade, da força do espírito humano querer e da união de todos para que elas se realizem. Com o controle de todos, afinal, já tivemos tanta força numa Alemanha que se tornou uma ameaça mundial, na II Guerra, porque não agora essa força para o bem? Com o controle de todos para que num surja mais um “salvador da pátria” e seus seguidores, sim, vamos ter chances reais de sermos dignos de sermos, de fatos, seres humanos, na mais alta acepção da palavra.

  3. Descobri Bauman.Que metaforas fantasticamente ilustrativas dos tempos atuais. Com certeza, eu o lerei mais e mais.

  4. Se fosse possível ao homem natural alcançar por conta própria a Sabedoria (a verdadeira!), os grandes pensadores deste século já teriam compreendido, terminantemente, os problemas sócioeconômicos que nos afligem. Há muito não me deparava com idéias tão lúcidas quanto às de Bauman, mas é certo que, se o ser humano não reconhece a soberania de Deus, e que todas as coisas convergem Nele, jamais encontra a resposta para seus anseios.

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