Nuestra America

Nuestra America
Cena do espetáculo 'Solidão' (Foto: Bob Sousa)

 

 

“É muito fácil fazer uma Austrália: pega meia dúzia de franceses, ingleses, irlandeses e italianos, joga numa ilha deserta, eles matam os índios e fazem uma Inglaterra de segunda, porra, ou de terceira, aquela merda. O Brasil precisa aprender que aquilo é uma merda, que o Canadá é uma merda, porque repete a Europa. É para ver que nós temos a aventura de fazer o gênero humano novo, a mestiçagem na carne e no espírito. Mestiço é que é bom”. Darcy Ribeiro, Mestiço é que é bom.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

O mais recente trabalho do grupo Folias – Solidão – é livremente inspirado no romance que o escritor colombiano Gabriel García Márquez (1928-2014) tentou sem sucesso escrever em 1946, aos dezoito anos de idade, e que se tornaria, mais tarde, um clássico da literatura latino-americana: Cem anos de solidão. Conforme declararia em 1982 – ano em que foi agraciado com o Prêmio Nobel – ao também jornalista e escritor Plinio Apuleyo Mendoza, na ocasião ele não “conseguiu armar uma estrutura contínua” da história, a cujo esboço deu o nome de La casa, concebendo somente “trechos soltos, dos quais ficaram alguns publicados nos jornais onde trabalhava na época”. Foi preciso que se passassem quase vinte anos para que o já autor de Ninguém escreve ao coronel (1958) e O veneno da madrugada (A má hora) (1961) retomasse o projeto, dedicando-se a ele “durante dezoito meses, todos os dias, das nove da manhã às três da tarde”, e o lançasse em 1967 com grande repercussão (a primeira edição se esgotou em quinze dias e em uma única cidade: Buenos Aires). Desde então, a obra – que está prestes a completar cinquenta anos – vem logrando enorme popularidade junto ao público leitor, já tendo sido traduzida, inclusive, para dezessete línguas.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

Com dramaturgia de Sergio Roveri e direção de Marco Antonio Rodrigues, Solidão é um espetáculo que mantém com o romance original de Gabriel García Márquez, para além da preservação de certos núcleos narrativos comuns, uma surpreendente relação de similaridade estilística e formal. Como todo grande criador que desconfia da crítica e até mesmo tripudia dela, o escritor colombiano imputou a sua obra mais conhecida a pecha, pura e simples, de um “testemunho poético” do mundo de sua infância, transcorrida, segundo ele próprio narrou em Cheiro de goiaba: conversas com Plinio Apuleyo Mendoza,  “numa casa grande, muito triste, com uma irmã que comia terra e uma avó que adivinhava o futuro, e numerosos parentes de nomes iguais que nunca fizeram muita distinção entre a felicidade e a demência”. Entretanto, em plena sintonia com a ideia de que cada autor é uma espécie de leitor surpreendido por aquilo que foi capaz de escrever, García Márquez – a despeito de afirmar para Mendoza que Cem anos de solidão “carece por completo de seriedade e está cheio de senhas para os amigos mais íntimos”, senhas estas “que só eles podem descobrir” – admite contraditoriamente para seu entrevistador a possibilidade de existirem na obra intenções mais complexas, “inconscientes”, traindo logo depois sua própria suposição desta “inconsciência”, ao reconhecer que a saga dos Buendía, paralelamente à recuperação poética de lembranças da infância, poderia também constituir uma versão da história da América Latina, “uma soma de esforços desmedidos e inúteis e de dramas condenados de antemão ao esquecimento”, a partir de cuja constatação conclui que “a peste do esquecimento também existe entre nós”.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

Do ponto de vista da dramaturgia, a livre adaptação do romance empreendida por Sérgio Roveri é muito bem-sucedida, embora possa frustrar aquele tipo de espectador-leitor que espera sempre uma transposição literal do que ocorre nas páginas do livro para o palco do teatro. O dramaturgo selecionou dentre os muitos episódios da obra original somente aqueles que considerou essenciais, articulando-os à presença em cena de um narrador inexistente na trama original: o cigano Chema, vivido por Ailton Graça. Com um microfone na mão e dirigindo-se à plateia com um tom de voz intencionalmente rascante, exasperado, Chema – talvez um duplo do cigano Melquíades, cuja figura atravessa toda a narrativa do romance – configura-se como uma espécie de narrador-demiurgo, que se confunde com o princípio organizador do universo fabular e faz com que as personagens saltem da matéria caótica literária pré-existente e assumam sua plasticidade específica sobre o palco.(De tempos em tempos também, ele próprio atua como uma personagem periférica aos acontecimentos). A intenção é fazer com que este narrador oscile entre os registros da “epicidade pura” e da “dramaticidade plena”, de acordo com o que defende o dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra em Da literatura ao palco: dramaturgia de textos narrativos, e evidencie os dois níveis do material dramatúrgico: o da história, que aqui funciona mais como pré-texto, e o do discurso, sobre o qual o projeto de encenação de Marco Antonio Rodrigues atribui grande peso artístico e político. Chema faz despertar de entre os mortos algumas das figuras muito conhecidas da fictícia cidade de Macondo, entretanto elas não são invocadas para viverem propriamente sua inerência narrativa. Mais do que isso, o espetáculo está comprometido em estabelecer uma certa gramática do tempo em relação à qual aquelas personagens e as situações básicas em que estão mergulhadas funcionam como elementos e processos que constituem e caracterizam o sistema discursivo que se pretende alcançar.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

A encenação investe em duas linhas de força básicas. Em primeiro lugar, na instauração em cena da categoria do maravilhoso, do qual fazem parte não somente o próprio substrato narrativo como também a linguagem encarnada pela música, coreografia, cenários, figurinos, máscaras e adereços. Trata-se, a rigor, de um maravilhoso de densidade própria, que adere com muita inventividade à proposta, logo, nem um pouco preocupado em soar folclórico ou pitoresco, ou seja, exterior ao tipo de teatralidade que se pretende atingir. Desse modo, o trabalho de Sonia Goussinski e Rafael Faustino (composição e direção musical), Joana Mattei (movimento cênico), Sylvia Moreira (cenografia e figurino) e Carlos Francisco e Luís Carlos Rossi (máscaras e adereços) procura invocar o espírito de uma latinidade resistente às formas racionalistas da cultura europeia, de um lado, e essencialmente teatral, de outro, fazendo ecoar as “coisas que têm vida própria” presente na sábia preleção do cigano Melquíades logo nas primeiras páginas do livro. Assim, a talentosa equipe cuja criação amplificou o trabalho da dramaturgia e da direção nada mais faz do que despertar a alma secreta que existe em sons, melodias, harmonias, gestos, tecidos, cores, volumes e toda sorte de materiais utilizados em cena. A linguagem do maravilhoso, aqui, é a pura expressão poética de uma utopia projetada sobre uma parte do globo terrestre que há quinhentos anos procura dissimular sua estranheza e sua complexidade por meio de referenciais sedutoramente mágicos.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

Em segundo lugar, Solidão aposta em um tipo de enunciação barroca, não somente por seu apreço ao exagero e ao desequilíbrio, mas também pela propensão ao jogo e à inquirição do próprio fazer artístico, o que denuncia serem frágeis as fronteiras entre o real e o imaginário. Vale lembrar que o barroco elege o dilema, a contradição, o paradoxo, como um modo de “interpretar uma sociedade mergulhada em violentos contrastes sociais e brutais anacronismos econômicos”, nos lembra Irlemar Chiampi em O realismo maravilhoso, livro no qual a professora aposentada de literatura hispano-americana da USP relaciona forma literária e ideologia política. É o artificialismo da concepção geral que desobriga o espetáculo a mimetizar ipsis litteris os acontecimentos do livro. Em Solidão, alguma coisa necessariamente precisa seguir seu curso para além dos eventos narrados. E esse objeto inexpugnável diz respeito àquilo que escapa à inteligência de tipo científico da qual desconfia Marco Antonio Rodrigues no belo texto de sua autoria publicado no programa da peça. O extravagante trabalho do Folias fala de um tempo circular no qual se movem personagens incapazes de amar e que, por isso mesmo, estão condenadas à solidão. Solidão que, para García Marquez, “é o contrário da solidariedade”. Mas tange também os tempos recentes para nós nos quais uma antiga ideia de solidariedade se esgarçou a ponto de virar desfaçatez, e rapidamente, ódio.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

O ethos barroco do espetáculo aponta para o otimismo trágico e transgressivo da subjetividade latino-americana, postulado por Boaventura de Souza Santos. Para o sociólogo português, o projeto da Nuestra America “é uma forma de ser e de viver permanentemente em trânsito e na transitoriedade, cruzando fronteiras, criando espaços de fronteira, habituada ao risco – com o qual viveu durante longos anos, muito antes de o Norte global ter inventado a ‘sociedade de risco’ (Beck, 1992) –, habituada a viver com um nível baixo de estabilização das expectativas causado pelas brutais desigualdades sociais e pela arbitrariedade da colonialidade do poder”. Todos as personagens de Solidão encarnam muitíssimo bem esse otimismo trágico e transgressivo no palco, por onde elas transitam desterradas, como que insufladas constantemente pela cúmbia, a dança que as faz oscilar entre a felicidade e a demência, a vertigem e o desespero. A esse respeito, vale registrar o alto rendimento do talentoso grupo de intérpretes que dá vida a esses personagens. Ailton Graça, Bete Dorgam, Clarissa Moser, Joana Mattei, Lui Seixas, Nani de Oliveira, Pedro Lopes, Rafael Faustino, Rafaela Penteado, Rodrigo Scarpelli, Simoni Boer e Suzana Aragão, seja em seus momentos individuais, seja na composição dos conjuntos (de que a encenação se vale constantemente), lançam-se a um verdadeiro exercício da liberdade em cena, quase sempre extremado e exuberante, mas jamais vaidoso ou inconsequente.

Cena do espetáculo “Solidão” (Foto: Bob Sousa)

Sintonizada com os tempos que correm, Solidão dá plasticidade a uma experiência dolorosa, porque lúcida dos entraves aos avanços e às conquistas, mas crê – como sói à arte do teatro – na possibilidade de superação. “A subjetividade e a sociabilidade da Nuestra America não se sentem à vontade com o pensamento institucionalizado e legalista, mas sentem-se à vontade com o pensamento utópico”, defende Boaventura de Souza Santos, para quem a utopia compreende a “exploração, pela imaginação, de novos modos de possibilidade humana e de estilos de vontade fundada na recusa em aceitar a necessidade da realidade existente apenas porque existe e na antecipação de algo radicalmente melhor pelo qual vale a pena lutar e a qual sente ter pleno direito”. Maravilhoso, barroco e utopia se entrelaçam em cena e se integram como linguagens desdenhosas do progresso e da modernidade acachapante que canibaliza o continente. É nesse registro que é executada por Rafael Faustino a canção “Reis do agronegócio”, com letra de Carlos Rennó e melodia de Chico César. Sustentando uma das mais belas cenas do espetáculo, a canção exerce um pungente contraste com a chegada ao clã da aldeã forasteira que se alimenta de terra.

Por que o continente latino-americano é mais hábil em tramar o apocalipse do que tecer utopias parece constituir a demanda final do espetáculo. Enquanto no livro, a partir da decifração da epígrafe dos pergaminhos de Melquíades – “O primeiro da estirpe está sendo amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas” –, o ciclo se fecha e o narrador e a narrativa se aniquilam a si mesmos, no estranho e complexo espetáculo dirigido por Marco Antonio Rodrigues, os sonhos de futuro parem indissociáveis dos medos e dos temores. “Hoje em dia” – afirma o filósofo romeno Emil Cioran, em História e utopia –“reconciliados com o terrível, assistimos a uma contaminação da utopia pelo apocalipse: a ‘nova terra’ que nos anunciam adquire cada vez mais a figura de um novo inferno. Mas, este inferno, nós o aguardamos, consideramos mesmo um dever precipitar sua chegada. Os dois gêneros, o utópico e o apocalíptico, que nos pareciam tão dessemelhantes, se interpenetram, influenciam um ao outro, para formar um terceiro, maravilhosamente apto para refletir a espécie de realidade que nos ameaça e à qual, entretanto, diremos sim, um sim correto e sem ilusão”. Solidão talvez seja a maneira que os artistas do Folias encontraram de demonstrar seu trágico otimismo ante a fatalidade.

Solidão
Onde: Galpão do Folias (Rua Ana Cintra, 213 – Santa Cecília)
Quando: Sextas e sábados, às 21h; domingos, às 18h. Até 23 de abril.
Quanto: R$ 40,00 (inteira), R$ 20,00 (meia) e R$ 10,00 (morador da região com comprovante)

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