Marcel Proust, um poeta fin-de-siècle

Marcel Proust, um poeta fin-de-siècle
O escritor Marcel Proust em 1895 (Otto Wegener/ Reprodução)

 

A invulgar repercussão de Em busca do tempo perdido, já a partir da publicação do primeiro volume, No caminho de Swann, em 1913, condenou por longo tempo ao esquecimento o livro de estréia de Marcel Proust, Os prazeres e os dias (que será lançado em breve pela Editora do Brasil), volume em que o autor reunira, em 1896, aos 25 anos de idade, uma série de textos esparsos. Não foi uma entrada triunfal, apesar da edição bem cuidada: 1.500 exemplares, 50 dos quais fora do comércio, capa dura, papel de luxo, ilus­trações originais de Madeleine Lemaire e quatro partituras de peças para piano, especialmente compostas por Reynaldo Hahn. Edição não só bem cuidada, mas bem respaldada pelo prefácio de Anatole France, figura de grande prestígio na época, que chama a atenção para “o encanto raro e a graça fina”, “o maravilhoso espírito de observação”, “a inteligência ágil, penetrante e verdadeiramente sutil”, e outras qualidades do jovem escritor. Mas isso não foi suficiente para evitar que, durante anos, o editor, Calmann Lévy, se quei­xasse de não saber o que fazer com as centenas de exemplares encalhados em sua oficina.

A crítica, se não chegou a ser inteiramente negativa, não concedeu ao estreante a acolhida esperada. Paul Perret, por exemplo, escrevendo para o jornal La Liberté,  limitou-se a ironizar, a partir do título (que Proust tomou de empréstimo a Hesíodo, Os trabalhos e os dias): “Os quadros tão variados do senhor Marcel Proust desenham um mundo em que não se trabalha nem se sofre. Nada senão prazeres, que devem ser suficientes para realizar a travessia dos dias”. Léon Blum, igualmente irônico e dúbio, numa resenha para La Revue Blanche, de que Proust também era colaborador, dirige-se “afetuosa­mente mas não sem severidade” ao colega, para destacar “a destreza de pensamento que subjaz a esse livro gracioso e agradável” e conclui: “estréia tão feliz, tão fácil” – os mesmos adjetivos utilizados por Charles Maurras, com o acréscimo de “brilhante”, embora este outro crítico prossiga com elogios sinceros.

Mas tudo isso são delicadezas, comparadas ao azedume de Jean Lorrain, em artigo também de 1896, para Le Journal: “Qualquer um, hoje, se considera escritor e vem incomodar a imprensa e a opinião pública com sua pequena glória, a golpe de jantares, influências mundanas, pequenas intrigas de venta­rolas.(…) Todos os esnobes querem ser autores.(…) Os prazeres e os dias, do senhor Marcel Proust: melancolias graves, frouxidões elegíacas, pequenos nadas de elegância e sutileza, ternuras vãs, flertes inanes em estilo precioso e pretensioso”. O impacto foi tal que Proust, ofendido, mandou desafiar o crítico para um duelo. Testemunhas das duas partes determinaram que a arma fosse a pistola, um tiro para cada contendor. Na data aprazada, pequena platéia reunida nos arredores de Paris, dois tiros foram disparados, nenhum acertou o alvo. Mas não devemos concluir daí que o jovem escritor e seu crítico fossem indivíduos especialmente belicosos e com tão má pontaria. O mais provável é que tenham apenas dado cumprimento a um ritual.

Paris já era, então, a capital da moda, ou das modas, que logo se espalham por toda a Europa, e uma delas é justamente o duelo. (Uma boa fonte a respeito é France, fin-de-siècle, de Eugen Weber, Harvard University Press, 1986.) Era dessa forma que homens de bem, isto é, bem-nascidos e/ou bem-formados, resolviam suas divergências. Não se trata de belicosidade, mas de honra – atributo faltante à horda de burgueses e proletários, e de camponeses recém-atraídos pela metrópole, que por isso mesmo costumavam recorrer à vulga­ridade do murro e da paulada para decidir, na primeira viela escura, suas desavenças. O duelo público e legal é, então, um dos expedientes invocados pelo homem de bem, para distingui-lo da turba dos mal-nascidos e mal-formados. Como pertencer a esta última condição não agrada a ninguém, e como conseguir um padrinho e uma pistola, ou espada, não é tão difícil assim, todos passam a duelar – muitas vezes pro forma, simples encenação imposta pela elevada posição dos litigantes, sobretudo quando essa posição não pre­existe (nem sobrevive) ao litígio: é só um trunfo a ser supostamente con­quistado pelo recurso à “nobreza” do expediente. Se um dia chegou a ser conseqüência, o duelo foi também largamente utilizado como causa.

No que diz respeito à nascente carreira do autor, esses dois tiros perdidos no ar foram só mais um episódio, na seqüência do malogro da estréia, mas razão suficiente, quem sabe, para que ele só voltasse a público dezessete anos depois, com No caminho de Swann, que então lhe proporcionou a consagração almejada desde o início. Compreensível, portanto, que Proust adotasse, em relação ao primeiro livro, uma atitude oscilante. Em carta datada de 1921, ao crítico Paul Souday, ele é taxativo: “Não fale jamais, em seus artigos, de Os prazeres e os dias. Eu os renego”. Por volta de 1906, porém, ele afirmara: “Tenho a impressão, no geral, de não escrever tão bem como à época de Os prazeres e os dias”. E o juízo será retomado em 1918: “Os prazeres são mais bem escritos, ou menos mal, que Swann”. Tal oscilação fez que ele se recusasse a reeditar a coletânea, apesar da insistência de amigos e editores. Só aceitaria fazê-lo quando tivesse concluído À la recherche, mas veio a falecer em 1922, antes mesmo da publicação integral da obra, não chegando a ver a segunda edição de Os prazeres e os dias, em 1924. E talvez não se surpre­endesse com o fato de que, três anos depois, o livro outrora repudiado, mas secretamente amado, já tinha esgotado várias edições. A fortuna de Os pra­zeres e os dias, enfim, acabou sendo bem mais auspiciosa do que o fracasso da estréia permitiria imaginar.

Em 1912, André Gide havia cometido um erro editorial clamoroso, eco tardio de reações intolerantes como a de Jean Lorrain. Consultor da Gallimard, Gide recusou No caminho de Swann, não chegando sequer a ler o manuscrito, sob a alegação, como mais adiante confessou, de que o autor era “um esnobe, um diletante e um mundano”. Mas teve várias oportunidades de se penitenciar. Uma delas foi o número especial da Nouvelle Revue Française, de janeiro de 1923, dedicado a Proust. Em sua colaboração para o volume, na passagem em que se refere a Os prazeres e os dias, o escritor se recrimina por não ter reconhecido, na altura, “as qualidades desse livro delicado, aparecido em 1896. (…) Sim, tudo o que admiramos em Swann ou em Guermantes já aí se encontra, sutilmente e como que insidiosamente proposto”. O juízo confirma o que vinha sendo ventilado desde 1913 e decreta que o destino de Os prazeres e os dias é ser retroativamente venerado, como uma espécie de À la recherche em embrião.

A edição de 1896 abre com o elogio fúnebre de Willie Heath, amigo de Proust, que acabara de falecer, e prossegue por dez seções, de extensão e intuitos variados: contos breves, crônicas estilizadas, narrativas ou fragmentos de narrativas mais desenvolvidas. É o Proust prosador, já muito próximo daquele que conhecemos, a pesquisar incansavelmente umas variedades de estilo, e a experimentar cenários e entrechos, temas e atmosferas, tipos e situa­ções – caminhos da obra futura. Mas uma dessas seções, “Retratos de pintores e músicos”, é surpreendente: trata-se de oito poemas cuidadosamente metri­ficados e rimados. No entanto, como fazem parte do período logo conhecido como o do “primeiro Proust”, vale dizer, o do proto-romancista, nunca houve muito o que dizer de sua poesia, faceta virtualmente desconhecida, hoje, até mesmo de seus leitores mais fiéis.

O fato é que, entre 1890 e 1910, o futuro grande romancista versejou com alguma freqüência, tendo criado boa quantidade de versos de circunstância: dedicatórias ou agradecimentos; pastiches, galanteios e divertimentos; recados íntimos ou comentários bem humorados, mais ou menos bem metrificados, que acompanhavam algumas de suas cartas. (Proust, como se sabe, foi um missivista obcecado.) Mas nunca voltou a publicar poesia, dando a entender que, à exceção daqueles “Retratos de pintores e músicos”, não chegou a pôr nenhum empenho literário nessa produção, que se manteve praticamente inédita até 1982, quando foi enfim extraída da volumosa correspondência do autor, e de arquivos mantidos pelos herdeiros, e reunida sob o título Poèmes (volume organizado por Claude Francis e Fernande Gontier para a coleção “Cahiers Marcel Proust”, da Gallimard).  

O prefácio dessa edição é taxativo: “Os poemas deste volume nos fazem adentrar a familiaridade do homem e não do escritor”. Mas isso não se aplica às oito composições primitivamente incluídas em Os prazeres e os dias, pois aí se estampa, indefectível, não a familiaridade do homem, “em sua esponta­neidade”, como assevera o mesmo prefácio, mas a estudada fisionomia do escritor. A poesia de circunstância, que caracteriza a maior parte do volume, tem em si grande interesse, quando menos porque nos levaria a surpreender o escritor em sua intimidade, facultando o acesso ao rosto que ele exibiria quando não estivesse posando para o voyeurismo dos leitores ou para a posteridade – desde que “espontaneidade” não fosse, no caso, apenas outra espécie de pose. Seria, de qualquer modo, uma investigação proveitosa, mas preferi, neste artigo, concentrar a atenção na poesia intencionalmente “lite­rária” de Proust, esses preciosos retratos de artistas, meio escondidos, e por várias décadas esquecidos, no livro de estréia.

Digamos, de início, que os oito poemas, ainda que trabalhados e tratados com especial carinho pelo autor, não chegarão a entusiasmar o leitor mais exigente. Não que se trate de má poesia, nem medíocre ou canhestra, mas Proust comparece, aí, mais como versejador dedicado do que como poeta genuíno, embora a tentativa não fique nada a dever à média da versejação parnasiano-simbolista. O juízo severo decorre do fato inarredável: trata-se do autor de uma obra-prima, um dos marcos da modernidade, em matéria de prosa de ficção. Assim, não é fácil conceder-lhe que incursionasse pela poesia sem a “obrigação” de realizar, em versos, proeza semelhante. Desse ângulo, a conclusão é que o poeta está bem aquém do ficcionista. Ao contrário do promissor e instigante exercício empreendido nas demais seções de Os pra­zeres e os dias, os poemas não tiveram desdobramento significativo nem permitem que se veja neles nada além da aplicação bem comportada das lições e receitas dominantes na poesia das últimas décadas do século XIX: a disciplina parnasiana entremeada, aqui e ali, da atmosfera simbolista conven­cional, seja na musicalidade melodiosa, seja no gosto brumoso e nevoento dos crepúsculos.

Os poemas giram em torno de figuras (quatro pintores e quatro músicos) das quais Proust esboça os retratos artísticos, isto é, retratos compostos a partir das respectivas obras e não das biografias. Os modelos próximos são conhecidos: Théophile Gauthier, um dos expoentes do Parnasianismo, e Charles Baude­laire, que já haviam lidado com a afinidade e a cumplicidade entre poesia e música, poesia e pintura. A experiência gira em torno de lugares-comuns postos a circular pela estética pós-romântica: a entronização do belo como valor supremo, o sonho da fusão ou da correspondência de todas as artes. Mas vamos aos poemas, começando por uma rápida incursão por seus aspectos formais. (No final deixarei clara a razão de começar por aí.)

O metro utilizado regularmente nas oito composições é o alexandrino, com seu andamento solene e espraiado e sua elasticidade propícia aos longos períodos repletos de orações intercaladas: estrutura versificatória e estrutura sintática se casam, na direção do descritivismo sentencioso. Já a organização em estrofes é irregular, com predomínio do quarteto, de rimas cruzadas (abab) ou interpoladas (abba). É irregular, também, o esquema de rimas, sempre presentes, mas empregadas com grande liberdade: às vezes, rimam, em seqüência, três ou até quatro versos – como o martelo malhando a bigorna,  para usar um símile de gosto bilaquiano. Mas, ao contrário dos parnasianos ortodoxos, o jovem Proust não faz questão de rimas raras, satisfazendo-se, por vezes, com sonoridades fáceis como couleur/fleur (cor/flor), incertain/lointain (incerto/longínquo), flots/sanglots (ondas/queixumes), victoire/memoire (vitó­ria/memória) etc. O arsenal do poeta, de fato, no que se refere a engenho e inventividade de expressão, não está à altura da versatilidade do prosador. Mas o que pode nos interessar mais de perto nesses poemas talvez não esteja na esfera poética, explícita, e sim nos seus subjacentes liames estéticos: a escolha dos pintores e músicos, o teor dos retratos aí esboçados e certo temário recorrente, que o ficcionista-poeta extrai dos seus artistas, ou antes, dos motivos com que estes trabalham, em determinados quadros e peças musicais.

A escolha dos pintores já revela a primeira surpresa: três holandeses (Antoine Van Dyck, 1599-1641; Albert Cuyp, 1620-1691; Paulus Potter, 1625-1654) e só um francês (Antoine Watteau, 1684-1721), delimitando um arco histórico que vai do início do Barroco ao Rococó. Comum aos quatro, a paisagem natural aparece, em Van Dyck, com uma dramaticidade que se intensifica em Cuyp e Potter, mas desaparece em Watteau, substituída pelo idílio campestre. O primeiro foi chamado “pintor de príncipes”, tal a quantidade de nobres que retratou; os outros dois holandeses são especialistas em paisagens com animais (Cuyp tem preferência por touros e cavalos); Watteau é pintor de delicadas cenas pastoris – e são essas, basicamente, as características desta­cadas nos poemas.

Os motivos pictóricos, enfim, parecem distantes do gosto estético vigente na época. O leque era amplo: Impressionismo, Pós-impressionismo, Expressio­nismo, Pontilhismo, Fauvismo etc. A julgar pelas escolhas, Proust parece alheio à pintura do seu tempo. Mas, se insistirmos por aí, estaremos incor­rendo na falácia retroativa, já mencionada, que nos levaria desta vez a indagar, equivocadamente: se nosso autor foi tão moderno e avançado em matéria literária, por que não haveria de fazer o mesmo, em matéria de pintura? Aparentemente, não fez. Seu gosto, nesse particular, é conservador; tais pintores talvez lhe interessem por outras razões, que não as da afinidade estética. Além do quê, Proust parece ter escolhido o que estava mais à mão.

Os quadros referidos nos poemas (“La promenade” e “Départ pour la prome­nade”, de Cuyp; “Prairie avec trois boeufs et trois moutons” e “Petite auberge ou Chevaux à la porte d’une chaumière”, de Potter; “L’indifférent” e “L’em­bar­quement pour Cythère”, de Watteau; “Charles 1er d’An­gle­terre” e “L’homme au pourpoint”, de Van Dyck) estavam quase todos expostos no Museu do Louvre, freqüentado por Proust desde os tempos de estudante no Liceu Condorcet e, depois, na Faculdade de Direito e na Escola Livre de Ciências Políticas, entre 1888 e 1894. E na composição dos poemas guiou-o também, com mão precisa, o pintor, romancista e crítico de arte Eugène Fromentin (1820-1876), autor de uma alentada introdução à arte, Maîtres d’autrefois, leitura obrigatória de toda uma geração, já que a maioria dos exemplos comentados no compêndio integrava o acervo do Louvre.

O poema dedicado a Cuyp, por exemplo, remete quer aos quadros aí referidos, quer ao comentário correspondente de Fromentin, que fala do “todo banhado pelo sol e envolvido nessas ondas douradas que são, por assim dizer, a cor habitual de seu [de Cuyp] espírito”. Mais adiante, o crítico alude à “atmosfera dourada de Cuyp e sua engenhosa tendência a colocar sob esse banho de luz e de ouro barcos, vilarejos, cavalos e cavaleiros”. Nos demais poemas, conti­nuam visíveis os ensinamentos de Fromentin.

Embora sejam retratos aparentemente impessoais, delineados a partir de impressões sugeridas por formas e cores, Proust parece estar à procura da “alma” dos artistas. Os elementos pictóricos realçados são os temas e motivos, logo associados a conteúdos. O resultado, em última instância, é uma série de retratos psicológicos e morais – todos, curiosamente, muito assemelhados, vibrando nos quatro o mesmo denominador comum: prazer de viver, melan­colia, resignação, altivez e orgulho, certo distanciamento aristocrático. O leitor não tem como escapar à conclusão: o retratado não será nem Watteau nem Van Dyck, nem Potter nem Cuyp, mas o próprio Proust. A não ser que estejamos, mais uma vez, projetando sobre esses poemas de juventude o conhe­cimento que temos da “alma” proustiana, tal como esta se nos oferece no romance.

Algo semelhante pode ocorrer com os retratos dos músicos, cuja escolha, aliás, talvez seja menos surpreendente: dois alemães (Christophe Willibold Gluck, 1714-1787; Robert Schumann, 1810-1856), um austríaco (Wolfgang Amadeus Mozart, 1756-1849) e um polonês (Frédéric Chopin, 1810-1849). O arco histórico se estende um pouco, chegando agora, com ênfase, ao apogeu do Romantismo, na vertente lírico-sentimental de Schumann e Chopin, tendo reforçado a presença clássica, com Mozart, e acrescentado a retumbância dramática da ópera de Gluck. O repertório continua conservador, e seria inútil insistir no mesmo ponto: a ausência de contemporâneos de Proust, como Debussy, Franck ou Fauré. Mais surpreendente seria a ausência de outras predileções proustianas, como Wagner e Beethoven, mais de uma vez men­cionados, com apreço, em À la recherche, ao lado dos demais. Se o acervo do Louvre e as lições de Fromentin guiaram a escolha dos pintores, a dos músicos parece ter seguido rumos variados, incluindo-se aí a influência de Reynaldo Hahn, um mozartiano apaixonado, grande amigo e confidente de Proust, a quem, aliás, vários dos poemas de circunstância são dedicados.

No caso da pintura, o figurativismo faculta ao poeta o apego a motivos, paisagens e até personagens, vale dizer: referências muito específicas (como os pombos, a água que tremula, o charco ou os cavaleiros, do poema dedicado a Cuyp), tomadas como estímulos para descrições que seguem no encalço daquele conteúdo moral-psicológico, em função do qual o propriamente pictórico é posto de lado. Mas, no caso da música, qual será o procedimento adotado? A resposta imediata seria: o poeta deve apegar-se às massas sonoras, aos timbres, ao andamento melódico, aos compassos e harmonias. Tais ingre­dientes estariam, para estes poemas, assim como formas e cores estão para os dedicados aos pintores. Mas Proust só tentou esse caminho, e assim mesmo parcialmente, no retrato do compositor polonês, “Chopin”.

A primeira parte do poema secciona os ritmos largos do alexandrino, pela multiplicação de cesuras – chegando ao seccionamento máximo no quarto verso, nervosa sucessão de acordes breves: “Rêve, aime, souffre, crie, apaise, charme ou berce” (literalmente: sonha, ama, sofre, grita, aquieta, encanta ou embala). O efeito busca sugerir, no plano verbal, uma harmonização entre­cortada, irisada e vibrátil, afim da arte de Chopin. Aqui, ao contrário do que ocorre nos poemas consagrados à pintura, estrutura musical e estrutura poe­mática se consorciam, em busca de correspondência e cumplicidade. Mas o procedimento é abandonado da metade do poema em diante, que recorre à biografia do compositor (o único caso, aliás, em que isso acontece). Já nos outros três retratos de músicos, Proust lança mão de um expediente menos ousado: o conteúdo, em vez da forma. O “conteúdo” da música? Bem, é que o jovem poeta recorre a um pequeno truque.

O poema inspirado em “Gluck” mescla alusões a personagens, cenários e entrechos de algumas óperas, como Alceste, Armida, Ifigênia em Aulide e Orfeu e Eurídice, e passa ao largo da música propriamente dita; para retratar “Schumann”, Proust cita explicitamente os títulos de várias peças: Noite sobre o Reno, O soldado, Meu jardim, Carnaval, Devaneio, e isso é tudo o que temos, aí, de schumanniano; no caso de “Mozart”, Proust recorre aos entre­chos e personagens (mas não às estruturas musicais) de óperas como As núpcias de Fígaro, D. Juan e A flauta mágica, para extrair daí as referências nas quais os versos se apóiam.

O leitor familiarizado com essas obras identificaria, a cada passo, ainda que os poemas não tivessem título, o “retrato” do seu compositor preferido. Mas não chegaria a ter, na construção do poema, o contraponto literário da composição musical, ou seja, a tentativa de fusão ou correspondência poesia-música, que o retrato de Chopin, pelo menos em parte, busca realizar.

Isso permite retomar a questão da “qualidade” bem como a do “enqua­dra­mento” estético desses poemas. No conjunto ressalta, aqui e ali, a impressão de artifício: depois de pronta a casa, os andaimes continuam à mostra. A impressão é mais forte nos retratos de músicos, menos persuasivos que os dos pintores, talvez porque, para Proust, o casamento entre significado e imagem visual seja mais viável que o consórcio som-significado. A julgar pelo con­junto dos oito retratos, a figuração pictórica é mais favorável à expo­sição ou sugestão de significados do que a estrutura musical. Por essa razão, quem sabe, é que a correspondência som-significado só tenha sido tentada em um dos retratos de músicos; nos outros três, a correspondência se dá entre poesia e “literatura”, isto é, entre os poemas e os títulos ou os libretos das obras musicais.

Por outro lado, ainda no capítulo da “qualidade”, se o leitor exigente, como lembrei antes, pode ficar decepcionado com a performance poética do grande romancista, esse mesmo leitor, no outro extremo, pode ficar maravilhado, bastando para isso que alinhe entre os admiradores incondicionais da arte proustiana, para os quais seria inconcebível ter saído da pena do escritor qualquer coisa menos que genial. Exageros à parte, quem sabe podemos chegar a um acordo, admitindo que os oito poemas, independentemente da análise que estou propondo, são admiráveis, em vários níveis.

Um dos motivos da admiração diz respeito a seu “enquadramento” estético. O arco his­tórico Barroco–Rococó–Romantismo na verdade não passa de refe­rência extrínseca, pouco relevante. A identidade estética desses textos, en­quanto realização poemática, é uma só, invariável, quer Proust esteja lidando com o barroquismo de Van Dyck, o neoclassicismo de Watteau ou o roman­tismo de Schumann. Esses poemas, na verdade, não têm nem almejam ter nada de barroco, nada de clássico, neoclássico ou romântico – a não ser que se entenda o peculiar ecletismo estético da virada do século XIX para o XX como mescla de todos esses estilos, mais alguns, não contemplados pelas escolhas de Proust, como o Realismo e o Naturalismo, além dos estilos pro­pria­mente “modernos”, como o Decadentismo, o Simbolismo, o Art nouveau e outros.

A constatação, óbvia, já foi feita: o jovem poeta, interessado em músicos e pintores, parece inteiramente alheio a seu tempo. Enquanto uma rumorosa revolução, artística e social, grassa em seu redor, Proust se refugia ou nas salas do Louvre e nas páginas de Fromentin, para tranqüilamente contemplar telas barrocas; ou nos recolhidos saraus de Madeleine Lemaire, e outros, para se dedicar à fruição de música romântica. Mas, nos oito exercícios poéticos resultantes, deixa entrever o seu auto-retrato… Talvez a relação entre esses poemas e seu tempo não seja tão óbvia quanto parece. Não há como resistir à tentação de observá-la mais de perto.

O período compreendido pela produção poética proustiana se estende de 1890 a 1910, quando um século morre e outro desponta: fin-de-siècle. De um lado, a avalanche de novidades que rapidamente vão definindo o perfil da vida “mo­derna”: o trem, o bonde, o ônibus, o metrô, os elevadores, o velocípede e o aeroplano (locomover-se a grandes distâncias, em fantásticas velocidades, passa a ser uma possibilidade para qualquer um, embora uma realidade só para poucos); o telégrafo, o telefone, o teatrofone, o gramofone, o fonógrafo, o celulóide, a fotografia e o cinematógrafo (ninguém mais está confinado à sua casa ou à sua vila: todos podem comunicar-se com o mundo); a eletricidade, a lâmpada elétrica (por fim, o banimento das trevas) e, claro, os relógios (a hora comum, a mesma hora à disposição de todos: o mundo sincronizado) – tudo isso apoteoticamente exibido na grande Exposição de 1900, de Paris.

De outro lado, no plano estético, outra avalanche, a das várias correntes contemporâneas, que se misturam e se precipitam, na mesma velocidade em que o mundo se transforma: Expressionismo, Pontilhismo, Cubismo, Fau­vismo, música atonal, Dodecafonismo, Futurismo, Dadaísmo; e de mistura com outras, vindas de longe, mas surpreendentemente ainda atuantes: Barroco, Classicismo, Rococó, Romantismo, Realismo, Naturalismo. Fin-de-siècle, em suma, é sinônimo de pressa, heterogeneidade e promiscuidade, sugerindo que o período é qualquer coisa como uma enorme e desgovernada estação ferro­viária aonde vão chegando várias composições que não deveriam estar ali, que já deveriam ter cumprido seu itinerário décadas ou séculos atrás, mas insistem em seguir adiante, misturando-se a outras, apenas prontas para zarpar. Os passageiros, atônitos, não sabem em que composição embarcar: se nas que estão partindo para o futuro, se nas que estão chegando do passado. Não sabem também, ao certo, se aquelas não poderão levar de volta a este, nem que rumo seguirão, para frente ou para trás, as locomotivas do passado. Não sabem tampouco se algumas ou todas não conduzirão a lugar nenhum. A sensação é de que o grande comboio da História perdeu o rumo pausado que conhecera até então, os caminhos se multiplicaram e todas as viagens se tor­naram possíveis, simultaneamente, em aceleração vertiginosa. Trata-se de uma convincente e perturbadora imagem do desconcerto do mundo, em suma, já impregnada da euforia semi-alucinatória que caracterizará as grandes con­quistas da vida “moderna” – em relação à qual, aliás, como afiança Marshall Berman, “dizer que está caindo aos pedaços é dizer que está viva e em boa forma”.

Vertigem será, com efeito, a palavra adequada para definir o espírito finis­secular: vertiginosa é a euforia diante do feérico espetáculo do novo que anuncia o radiante esplendor do nosso futuro; igualmente vertiginoso é o desespero diante da melancólica evanescência de tudo: qualquer conquista, qualquer avanço será imediatamente tragado, para ceder lugar a mais avanços e conquistas. E nada deixará rasto.

Não é tentador imaginar que esses oito retratos de pintores e músicos, com sua métrica refinada e seus motivos aristocráticos, representam uma sutil reação diante desse quadro desconcertante? Aparentemente alheio à vertigem, Proust estaria esboçando, nesses poemas, a postura de que não abrirá mão daí por diante: a melhor maneira de estar atento ao presente é transformá-lo em puro olhar e mergulhar, com ele, no passado – talvez por sentir, como o fará Drummond, anos mais tarde, que “o passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os olhos ainda cheios de presente. As linhas, cores e volumes de outrora, tão brutalmente distintos dos de hoje, ofendem, ma­chu­cam a nossa sensibilidade. (…) Enfim, depois de algum tempo o espanto, o susto, a dor se confundem e o espírito da gente se dissolve no passado” (Confissões de Minas, Americ-Editora, 1944). Esse voltar-se para o passado com os olhos carregados de presente não se deixa impressionar pelos avanços, em si, mas se concentra naquilo que fica ou pode ficar, depois que estes tiverem cumprido sua função: aquele quase-nada de permanente, que pode ser entrevisto no efêmero.

Para Proust, é tudo uma questão de olhar (“A verdadeira viagem não consiste em chegar a novas terras, mas em ver com outros olhos”), e de estilo. Para ele, a vertigem do presente se resolve no acentuado predomínio do ornamental e na voluptuosidade dos sentidos, com seu tanto de barroquismo art nouveau, do qual ele fixa a novidade da atração pela assimetria. Do ponto de vista estético, este item, o da assimetria, é decisivo, e está patente na estruturação estrófica dos oito poemas e, em particular, nas relações que aí guardam, entre si, a estrutura estrófica, o esquema de rimas e a estrutura sintática. Mas, che­gados aqui, talvez seja o momento de desistir desse largo e ilusório vôo rasante aos tempos de Marcel Proust fin-de-siècle, e retornar aos detalhes dos seus poemas. Para ser preciso, um só detalhe, o da assimetria, detectável nos seus expedientes versificatórios.

O retrato de Paulus Potter, por exemplo, assim como o  de Cuyp, é constituído de um só bloco de doze versos. Se houvesse simetria, poderíamos pensar numa sucessão de três quartetos, digamos, ou dois sextetos, ou outras com­binações, não na dependência de espaçamento maior entre determinados versos, mas enquanto divisões latentes no esquema de rimas. Este, no entanto (nos dois poemas), não conduz a nenhuma das partições possíveis e nem sempre coincide com a estrutura sintática. Jogo semelhante se reproduz nos demais poemas, reafirmando a assimetria como timbre forte das composições – exceto no retrato de Gluck, regular e uniforme, do início ao fim.

A sutileza está em que é uma assimetria discreta, sabiamente disfarçada pela regularidade do metro alexandrino. Fosse mais ostensiva, Proust talvez che­gasse ao verso livre, mais afim do gosto art-nouveau que, conforme sugeri, rege o seu “enquadramento” estético. Ou então, caso ele tivesse optado por regularidade estrófica e isomorfismo entre esquema de rimas e estrutura sintá­tica (simetria, em suma), aí sim poderíamos afirmar que esses poemas são inteiramente alheios ao seu tempo. O fato de o escritor cultivar seus pintores barrocos ou seus músicos românticos, no mesmo momento em que os mais destacados de seus contemporâneos, como Marinetti, preparam-se para derru­bar, a golpes de picareta, todos os museus do mundo, não quer necessa­riamente dizer que, em matéria de música ou pintura (ou literatura), Proust estivesse “desatualizado”. Seus poemas, de ar sereno e um tudo-nada irônico, parecem segredar: a vertigem aí fora? Modismos, nada além de modismos (“Moda é o que sai de moda”, como dirá Jean Cocteau), precioso tempo per­dido, antes mesmo de chegar a existir. (Theodore Zeldin, em France 1848-1945: Anxiety and hypocrisy, Oxford University Press, 1981, estabelece curio­sas relações entre reclusão, solipsismo, misoginia e (pre)conceitos de classe, no caso de Proust.) A reação do escritor, enfim, subentendida nesses poemas, talvez esteja insinuando que o espírito moderno mais consistente e duradouro só pôde ser forjado, exatamente naquele instante de vertigem entre dois séculos, graças à atenção paradoxalmente respeitosa e revolucionária conce­dida aos clássicos e à tradição.

Escrever? Viver? Exercícios de estilo, diria Proust, mas a um só tempo distantes e apaixonados, no encalço, quem sabe, de algo menos precário que a brilhante esteira de frivolidades resultante da estupidez pretensiosa ou da iconoclastia gratuita – como podemos ler em seus intrigantes retratos de pintores e músicos.

O ensaio acima integra o livro inédito O desconcerto do mundo (Coleção Ensaios Transversais, Editora Escrituras, tel. 11/5082-4190), que será lançado no início de 2002

Leia a seguir, em tradução de Carlos Felipe Moisés, dois poemas que integram a seção “Retratos de pintores e músicos” de Os prazeres e os dias:

ALBERT CUYP

 Cuyp, soleil déclinant dissous dans l’air limpide
Qu’un vol de ramiers gris trouble comme de l’eau,
Moitier d’or, nimbe au front d’un boeuf ou d’un bouleau,
Encens bleu des beaux jours fumant sur le coteau,
Ou marais de clarté stagnant dans le ciel vide.
Des cavaliers sonr prêts, plume rose au chapeau,
Paume au côté; l’air vif qui fait rose leur peau,
Enfle légerement leurs fines boucles blondes,
Et, tentés par les champs ardents, les fraîches ondes,
Sans troubler par leur trot les boeufs dont le troupeau
Rêve dans un brouillard d’or pâle et de repos,
Ils partent respirer ces minutes profondes.

ALBERT CUYP

Cuyp, sol poente, os pombos revoam, o céu
Tremula como água e a umidade de ouro
Rola da bétula, auréola à frente do touro,
Resina azul da tarde fumegante, agouro
Do charco inerte sob o límpido ouropel.
Cavaleiros a postos, plumas rosa-ouro,
As mãos do lado: o ar vivaz é um sorvedouro
A inflamar seus finos cachos anelados;
Sem perturbar o avanço do nimbado touro,
As frescas ondas vagam em campos raiados,
E partem, nevoeiro, rumo ao nascedouro
Onde vão aspirar uns minutos dourados.

CHOPIN

 Chopin, mer de soupirs, de larmes, de sanglots
Q’un vol de papillons sans se poser traverse
Jouant sur la tristesse ou dansant sur les flots.
Rêve, aime, souffre, crie, apaise, charme ou berce,
Toujours tu fais courir entre chaque douleur
L’oubli vertigineux et doux de ton caprice
Comme les papillons volent de fleur en fleur;
De ton chagrin alors ta joie est la complice:
L’ardeur du tourbillon accroît la soif de pleurs.
De la lune et des eaux pâle et doux camarade,
Prince du désespoir ou grand seigneur trahi,
Tu t’exaltes encor, plus beau d’être pâli,
Du soleil inondant ta chambre de malade
Qui pleure à lui sourire et souffre de le voir
Sourire du regret et larmes de l’Espoir!

CHOPIN

Chopin, mar de soluços, lágrimas, suspiros,
Que um vôo de ágeis borboletas atravessa,
A brincar com a tristeza, a apascentar seus giros.
Seduz, aquieta, sofre, agita, grita, apressa,
Ama ou embala, e faz rolar em meio às dores
O doce olvido do capricho teu, fugaz,
Como as borboletas embriagadas de flores:
Tua alegria é cúmplice da dor tenaz,
O alado torvelinho amaina os dissabores.
Das águas e da lua meigo confidente,
Príncipe da aflição ou grão-senhor traído,
Quanto mais pálido mais belo, entretido
Com o sol a inundar teu quarto de doente,
Tu te exaltas com a luz, a bem-aventurança
Da luz que chora o seu sorriso de Esperança.


CARLOS FELIPE MOISÉS é poeta, crítico literário, autor dos livros de poemas Subsolo (Massao Ohno) e Lição de casa (Nankin Editorial) e tradutor de Tudo o que é sólido desmancha no ar (Cia das Letras), de Marshal Berman, e O poder do mito (Palas Atena), de Joseph Campbell.

 

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