Libido não tem gênero

Libido não tem gênero
Antes que possamos dizer “eu sou”, todos experimentamos prazeres e sensações estritamente gender-free (Foto: WIN Initiative / Getty Images)

 

“Menino nasce menino, menina nasce menina.” Para gosto de uns, desgosto de outros, a análise lógica dessas sentenças – recém-re-lançadas como plataforma de governo – mostra-nos que elas são sempre verdadeiras, porque são tautológicas. O que é uma tautologia? Tautologia é uma sentença que, independentemente dos fatos, é sempre verdadeira. Mas que, por outro lado, não informa absolutamente nada sobre o real, assim como “uma mesa é uma mesa” ou “A = A”. A vida, contudo, tem a mania inconveniente de complicar a lógica.

Estamos agora nos confins do simbólico, ali onde as coisas ganham nomes. Mas as nomeações precedem o nascimento dos corpos. Na sala de ultrassom, a partir da evidência da ausência ou presença de um pedacinho de carne, o médico sentencia: “é menino!”, “é menina!” Nomeações encadeiam afetos, que encadeiam novas nomeações: José ou Maria. Ou José Maria ou Maria José. Ou ainda Dilma, Damares, Djalma, Dagmar etc. Uns mais ambíguos, outros menos. Sabemos o sexo do bebê, podemos marcar “x” nas fichas e nos cadastros, trata-se de uma primeira inscrição social. Temos, portanto, até agora, uma constatação da autoridade médica e a inscrição dessa constatação no dispositivo jurídico, que a fixa no registro civil. Mas, além disso, temos afetos agitando as expectativas, os medos, os desejos, os fantasmas dos pais, da família, da sociedade. Esses afetos também são registrados de alguma maneira, mas em outro lugar, mais precisamente naquilo que Freud chamou de inconsciente.

Quando dizemos “é menino”, “é menina”, deveríamos nos interrogar não apenas sobre o significado dos termos “menino” ou “menina”, já que o conteúdo semântico de uma palavra varia histórica e geograficamente, mas também sobre a força performativa do verbo “ser”: o que quer dizer “é”? Esse é o problema fundamental, pelo menos desde o debate Parmênides versus Heráclito. Quando dizemos que A “é” B, estabelecemos uma identidade fixa, um destino imutável, ou descrevemos um momento de um processo? É verdade que “uma mesa é uma mesa”, mas ela é também madeira, vidro, metal, plástico etc., e saímos da tautologia.

O que surpreende é que, no semipleno século 21, pelo menos na surreal, fictícia e longínqua República de Pindorama, uma tautologia daquele tipo possa se elevar à política de governo. Porém, a “comédia dell’arte” do núcleo patético-ideológico do governo central não se contenta com a tautologia, e acrescenta: “menino veste azul”, “menina veste rosa”, para os aplausos da claque. O que não surpreende aqui é o movimento de fundar a perspectiva heteronormativa (a prescrição dos costumes e dos papéis sociais de gênero metaforizados no rosa e no azul) na tautologia (linguística) e na autoridade médico-jurídica. Temos o conjunto homogêneo do que chamamos de matriz heteronormativa. O conjunto é consistente e, num certo sentido, apaziguador. Tudo faz sentido, e tudo que “foge à regra” é mera exceção, é patologia, numa palavra: não conta, não precisa contar, não pode contar. Não surpreende que no segundo dia de governo, a menção à população LGBT tenha sido sumariamente excluída das políticas e diretrizes destinadas à promoção dos direitos humanos, por meio da Medida Provisória 870/19.

E, então, a criança nasce. Já tem um nome, um registro civil, uma anatomia. Já sabemos seu sexo. Mas o que sabemos quando “sabemos o sexo do bebê?” Até agora, tudo o que sabemos é uma particularidade anatômica à qual damos um nome. Mas, como diz a sabedoria popular, o futuro a deus pertence… o que quer dizer que nada sabemos sobre ele. Eis que aquele corpo ainda desamparado, incapaz de garantir até mesmo a própria vida por suas próprias forças, já é capaz de experimentar prazeres e desprazeres, de afetar e de ser afetado pelo Outro, de satisfazer-se sem se submeter a finalidades ou a significados. A substância viva goza de uma maneira mais ou menos desordenada, causando espanto e deleite nos adultos: o rostinho de satisfação quase mística quando mama, a gargalhada deliciosa quando faz xixi no sofá logo depois de trocar a fralda, o alívio beatífico quando faz um cocozinho, a cumplicidade erótica dos olhares e o gozo sem sentido dos barulhos inarticulados, que fazem o adulto mais brutamontes emitir interjeições sem sentido naquela língua antes da língua que os bebês falam, e que o psicanalista Jacques Lacan chamou de “lalangue”. Os corpos gozam, afetam, experimentam, rejeitam, expelem, desejam. E querem mais. Repetem à exaustão. E ainda não falam, só balbuciam. O bebê humano não se contenta com a satisfação das necessidades biológicas, quer mais. Esse a mais, chamamos de pulsão. O que nos impulsiona em direção a um objeto qualquer não se reduz à necessidade biológica, nem à norma social. Por um lado, nossa fome se curva ao horário do almoço, nossas necessidades fisiológicas aos horários do recreio ou do intervalo, nossas energias psicossexuais se ajustam aos calendários, às geografias e paisagens urbanas. Nossa “natureza”, nosso corpo biológico, já não é tão natural assim. Por outro lado, nosso corpo pulsional “fura” as normas desde antes de podermos dizer “helicóptero”: criamos nossas próprias geografias, paisagens e calendários, irredutíveis que somos às injunções do Outro.

É aqui que a sexualidade começa a desestabilizar o arranjo médico-jurídico descrito acima. O processo de subjetivação da sexualidade ou, numa palavra, a sexuação é um processo complexo que combina, em arranjos radicalmente singulares e contingentes, elementos heterogêneos e frequentemente discordantes: componentes biológicos (anatômicos, cromossômicos, hormonais etc.); nomeações, prescrições e normas sociais (jurídicas, mítico-religiosas); conteúdos inconscientes vindos do Outro e experiências subjetivas de gozo, prazer, desprazer etc. Isso sem falar nas crescentes possibilidades de intervenção em nossos corpos que a ciência e a tecnologia médica oferecem. Talvez essa seja a variável mais espetacular do século 20 no que tange à sexualidade: tratamentos hormonais, cirurgias de redesignação, tudo isso não seria possível sem o avanço das tecnologias médicas que, diga-se de passagem, não são nem de esquerda, nem de direita. O problema é que o real da ciência é radicalmente sem sentido, não se submete a um telos normativo ou moral, o que incomoda muita gente e faz fremir aqueles que suspiram pela unidade do sentido. O real da ciência é difícil de suportar. Não por acaso, Jacques Lacan percebia, como um efeito colateral do avanço sem sentido da ciência, nada mais nada menos que o triunfo da religião, guardiã do sentido. As religiões secretam sentido. A ciência extrai sentido.

Então, a criança começa a crescer, e a ser outra coisa que aquilo que era. Mas ela não é uma mônada: seu contato, seu atrito com o Outro recortam seu corpo. Para dar um exemplo simples, a criança tem necessidades fisiológicas, certamente, de fome, de sede, de expelir excrementos, de amor etc. Mas o Outro tem pressa, a mãe, ou o pai, ou alguém diz: “só mais uma colher!”, “está na hora de almoçar!”, “tem que fazer xixi antes de sair!”, “respira fundo, força!”. E, então, a fonte pulsional se confunde com a demanda do Outro: o ritmo endógeno do corpo se deixa recortar, de bom ou de mau grado, por uma temporalidade exógena. No cerne do sujeito, um precipitado da demanda do Outro se confunde com minhas próprias necessidades, ativando processos fisiológicos: a pulsão se situa na fronteira entre o somático e o psíquico, o psíquico na fronteira da linguagem, a linguagem na fronteira do social, formando redes sutis e complexas, em camadas e linhas de fuga.

A “evidência” de que o menino nasce menino e a menina nasce menina se complica ainda mais quando percebemos que ambos, meninos e meninas, amam a mãe. O primeiro objeto de amor é quase sempre a mãe (ou, mais precisamente, aquele que encarna a função materna). Uma distinção importante começa a se estabelecer: uma coisa é o sexo designado no nascimento, outra coisa é o objeto de amor, ou aquilo que desejamos possuir (“a mamãe é só minha!”). Uma primeira clivagem se estabelece: alguma suposta harmonia natural de atração heterossexual rui imediatamente. Daqui em diante, diversas clivagens e antagonismos se inscrevem para o ser falante. Desde que fala, tem que dizer seu nome, tem que construir sua identidade. Estamos, portanto, diante de vários níveis e camadas diferentes de um longo processo de constituição e de assunção da sexualidade.

O que continua sendo inquietante – e que tem implicações clínicas e ontológicas maiores – é a noção de que o sexo é algo intrinsecamente errático e opaco, algo problemático e disruptivo para nossas identidades, mais do que uma matéria lisa e macia pronta a ser esculpida sem resistência por nossa imaginação e arbítrio (sonho da ciência), mais do que um espelho que reflita uma harmonia natural de atração heterossexual pré-estabelecida (delírio da religião).

Na década de 1930, Freud escreveu que “a maioria dos homens também está muito aquém do ideal masculino, e que todos os indivíduos humanos, em razão de sua constituição bissexual e da herança cruzada, reúnem em si características masculinas e femininas, de maneira que a pura masculinidade e a pura feminilidade são construções teóricas de conteúdo incerto”. Para a psicanálise, o processo de assunção da sexualidade envolve a disposição bissexual constitutiva, a polimorfia pulsional, o caráter neutro em termos de gênero da libido e a incidência singular da significação fálica para a organização genital infantil. A combinação desses elementos heterogêneos culminaria na inexistência de gêneros masculino ou feminino puros. Além disso, o “patriarcal” Freud representava o interesse mútuo entre homens e mulheres como o resultado complexo de acontecimentos contingentes, de arranjos precários e de transições difíceis.

Nesse sentido, para a psicanálise, no fundo de cada um de nós, antes de nos decidirmos e construirmos nossas identidades e nossas escolhas objetais, a disposição bissexual constitutiva do ser humano deixa suas marcas. Antes que cada um possa dizer algo acerca de seu lugar nas coordenadas de que dispomos, antes que possamos dizer “eu sou”, todos experimentamos prazeres e sensações estritamente gender-free, que marcam nossos corpos indelevelmente. Não é isso o que Freud quer dizer quando diz que o inconsciente é sexual?

Freud insistiu teimosamente durante quase três décadas acerca do caráter masculino da libido. Mas, ao fim e ao cabo, e muito provavelmente como efeito do trabalho das psicanalistas mulheres, cedeu quanto a esse ponto, chegando a falar de uma libido neutra em termo de gênero. Com efeito, na conferência de 1933, “A feminilidade”, lemos: “Só existe uma libido, que está a serviço tanto da função sexual masculina quanto da feminina. A ela própria não podemos atribuir nenhum sexo”.

Aquela disposição bissexual originária dos seres falantes deixa resíduos inconscientes, na medida em que uma das correntes é, com maior ou menor intensidade, recalcada em favor da corrente oposta. Até certo ponto, em sociedades orientadas pelo falicismo, esse recalcado feminino de alguma forma se encontra “assentado”, depositado numa superfície supostamente firme, mas que se quebra como a superfície de um lago gelado. Avanços vertiginosos da ciência e da técnica, assim como conquistas jurídicas, políticas e sociais de grupos não hegemônicos não raro culminam em trincas e rachaduras, que alguns se apressam em querer soldar. O que havia sido recalcado retorna, de uma maneira ou de outra, vestido de impulsos regressivos e obscurantistas. Ou, de outro modo, como explicar que homens héteros, que ostentam todas as insígnias da virilidade e gozam de todos os privilégios, possam se sentir “oprimidos” por minorias que lhes impõe uma “agenda gayzista” ou pela “tirania feminazi”? Mas não apenas isso. O real insuportável que permanece desmentido também regressa, sob forma fetichizada, não simbolizada, de mitos redentores, dando ensejo a refluxo de matiz conservador. A questão estrutural da insuficiência de nosso saber para dar conta do gozo sem sentido do corpo (ninguém, por razões estruturais, sabe o que fazer com o excedente pulsional) é, em calculada estultice, lida como circunstância contingente, histórica, localizável e, portanto, remediável. A boa e velha política do avestruz.

Se a modernidade começa com o desencanto e a liquidação de mitos, nossa era se desencanta do desencanto e desmistifica a própria desmistificação. Mas o preço disso não é o declínio das crenças e das ilusões. Ao contrário, o que caracteriza esse particular obscurantismo redivivo é a ausência de metaforização, a literalidade de crenças. O filósofo esloveno Slavoj Žižek faz uma observação precisa a esse respeito. Quando os talibãs destruíram monumentos milenares de Buda nas montanhas do Afeganistão, o que choca não é o desrespeito ao patrimônio histórico mundial, mas a maneira pela qual a religião é levada “tão a sério”, sem nenhum tipo de mediação simbólica mínima. Não por acaso, um suposto kit gay e uma delirante mamadeira faliforme tenham sido determinantes no autoengano de uma parcela da população que ainda acredita em fantasmas messiânicos orientados pelo falo. Aprisionados por uma verdade que se sabe fake, fascinados por um mito que se sabe falácia, os desencantados pelo desencanto acabam oprimidos por sua própria opressão.

Gilson Iannini é doutor em Filosofia pela USP, professor do Departamento de Psicologia da UFMG, editor da coleção Obras incompletas de Sigmund Freud (Autêntica)


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