Ler não comporta imperativo

Ler não comporta imperativo
A escritora de literatura infanto-juvenil Tatiana Belinky (Foto: Divulgação)


Certo homem de bom coração caminhava por uma estrada quando encontrou uma cobra que sofria de frio e a levou para casa. Após carregá-la junto ao peito e deixá-la perto do fogão, foi para o trabalho, com a promessa de que, quando voltasse, daria a ela um ratinho para o jantar. Para sua surpresa, ao regressar, o homem encontrou a cobra com a língua de fora, pronta para dar o bote. Diante da ameaça e de tamanha ingratidão, não hesitou e deu cabo do animal com uma paulada! Trata-se de uma paráfrase da fábula “O Homem e a Cobra”, escrita por Monteiro Lobato. Ao contá-la a Emília, Dona Benta aludia a Confúcio, filósofo chinês autor do seguinte provérbio: “Tratai os homens com bondade e os maus com justiça”, em oposição ao clássico “Fazer o bem, sem olhar a quem”. Atenta àquelas palavras, Emília bateu palmas e disse, eufórica: “Pois então Confúcio concorda comigo. Meu ditado é: ‘Para os maus, pau!’”.

“Ah, é assim, é? Então você é meu modelo para a vida.” Foi a decisão da pequena Tatiana, ao ler a mesma fábula. Até então, desejava ser bruxa: “Espera-se que a criança seja boazinha, mansinha, essas coisas. Eu até era, mas não o tempo todo também. Tenha dó! Então, de vez em quando eu queria ser bruxa e ser ruim”. Arrebatada, contudo, pela sagacidade da Emília, deixou de lado o sonho da bruxaria e encontrou na célebre personagem de Lobato o modelo definitivo para sua vida: “Eu me apaixonei pela Emília de cara. Com o perdão da Capitu, gosto muito dela, mas gosto mais da Emília, ela tem mais personalidade”.

É cercada de bonecas e bruxas que hoje a escritora Tatiana Belinky trabalha em sua casa, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. Aos 91 anos e após mais de 250 livros publicados, mantém-se em plena atividade e não cogita aposentadoria: “Nem pensar, nem pensar.” Sob a luz dos abajures e o olhar atento da boneca Emília, acomoda-se na poltrona verde do canto da sala, põe sobre o colo a escrivaninha – uma almofada coberta por um pedaço de madeira –, empunha a caneta e entrega-se à escrita. De onde vem tanta história? “Elas passam na minha frente e eu pego. Tudo dá samba.” Instada pelas crianças sobre como escrever, habitualmente responde com novas perguntas: “Quando vocês voltam da escola, não contam quando acontece alguma coisa? Isso não é uma historinha? Tudo dá uma história. Agora, o que precisa para isso? Usar o que a natureza deu a vocês: os olhos para ver e enxergar, e os ouvidos para ouvir e escutar. Prestem atenção em tudo que acontece. Sejam curiosos, xeretas, façam perguntas e não aceitem qualquer resposta boba”.

O grande número de livros publicados pode sugerir uma extensa carreira. O primeiro deles, contudo, intitulado Limeriques, data de 1987, quando tinha 66 anos. Não que a escrita literária fosse uma atividade recente. Ao contrário. Foi ainda menina em Riga, capital da Letônia, onde viveu dos dois aos dez anos, que se tornou súdita da “sua majestade, a palavra”. Influenciada pelos pais, aprendeu a ler aos quatro anos e, desde então, fez da palavra um prazeroso hábito de escrita e principalmente de leitura. “Eu nunca resolvi ser escritora, eu queria ser leitora. Era e sou até agora”, orgulha-se. Ocorre que o destino impõe suas peças e percalços e, posto a literatura ser para ela antes um exercício de prazer, não cabia tomá-la como uma obrigação, sob pena de negligenciar as etapas da vida. Tatiana viveu intensamente os períodos de filha, esposa e mãe. A escritora? Um presente do acaso.

Amadurecimento a duras penas

Nos idos da década de 1920, a situação no Leste Europeu não era das mais pacíficas. O exército soviético impunha sua força, guerras civis assolavam a região e terríveis progroms dizimavam comunidades judaicas. Em face daquele contexto nada favorável, especialmente para os judeus, a família Belinky deixou a Letônia e chegou ao Brasil no fim de 1929 a bordo de um transatlântico. Pai, mãe e três filhos – entre eles Tatiana, então com 10 anos – vieram morar na Rua Jaguaribe, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. A situação de fuga não permitiu trazer muitos pertences. Dos livros que tinha em Riga, ela trouxe apenas um volume com os contos de Turguêniev, que guarda até hoje. Ao cabo de poucos anos, as dificuldades financeiras somadas àquelas impostas pela adaptação à cultura local deram lugar a um relativo conforto. A mãe, cirurgiã-dentista formada em 1914, não demorou para conseguir emprego. O pai, poliglota (dominava alemão, russo, francês e inglês), fez da habilidade com idiomas o principal trunfo para se consolidar como representante comercial, tendo firmado contato com importantes empresas estrangeiras do ramo de celulose. Aumentada a renda da família, o destino seguinte foi um sobrado na Rua Itacolomi, em Higienópolis, onde viveram por 17 anos, entre as décadas de 1930 e 1940. Àquela época, Tatiana era estudante do Colégio Mackenzie e, como também tinha facilidade com línguas estrangeiras, tornou-se secretária do pai.

O ano de 1940 foi marcante em sua vida por sentimentos em tudo opostos. Em maio, casou-se com o estudante de medicina Júlio Gouveia em uma cerimônia reservada para familiares e amigos próximos. Após passar a lua de mel no Rio de Janeiro, o casal instalou-se em um apartamento no centro de São Paulo. Nove meses depois, coube ao destino reservar a Tatiana o primeiro grande choque de sua vida. No dia 7 de novembro, seu pai viajou às pressas para o Rio de Janeiro, a fim de resolver um imbróglio profissional. Solucionado o problema, telefonou no dia seguinte, já no aeroporto Santos Dumont, avisando à filha que o esperasse no aeroporto de São Paulo, pois chegaria em uma hora. Antes que a hora se completasse, o telefone tocou novamente e uma voz perguntava se o senhor Belinky havia tomado um voo da Vasp para São Paulo. Diante da afirmativa de Tatiana, a mesma voz comunicou: “O avião caiu no mar e morreram todos”. “Foi terrível. Meu primeiro grande choque foi perder meu pai quando eu tinha 21 anos e estava casada havia cinco meses”, rememora.

Não bastasse o abalo emocional, havia também o aspecto financeiro, pois a maior fonte de renda familiar provinha de seu pai. Por decisão da mãe, coube a Tatiana assumir os negócios, pois, como era secretária, era ela quem mais bem conhecia o ofício do pai. Ciente da responsabilidade, acatou a decisão e deixou o curso de filosofia da Faculdade de Filosofia de São Bento, no qual ingressara havia pouco. Esposa e arrimo de família, a maternidade foi a grande transformação posterior. Anos mais tarde, tornou-se mãe de dois filhos, o primeiro deles Ricardo, seguido de André.

Ao mestre Lobato

Naquela noite, as crianças já estavam dormindo quando o telefone tocou:
– Aí é da casa de Júlio Gouveia?
– É, quem quer falar com ele?
– Aqui é Monteiro Lobato.
– E eu sou o rei Jorge da Inglaterra! – ironizou Tatiana.
Sem conter o riso, aquela voz seca prosseguiu:
– Eu li o artigo dele e quero conhecer esse Júlio. Posso ir aí hoje à noite?
Envergonhada, naquele instante ela deixou de ser o rei Jorge. Não se tratava de um trote, mas sim do próprio Monteiro Lobato, autor do primeiro texto em português que ela havia lido – um folheto de propaganda do laboratório Fontoura, o qual trazia um conto do Jeca a fim de promover um remédio contra a ancilostomose. “E bem essa história caiu na minha mão. Mal sabia quanto eu teria a ver com Monteiro Lobato, muito mesmo.”

Além de médico psiquiatra, Júlio Gouveia tinha especial apreço pelas letras, principalmente pela literatura infantil. Havia pouco, a revista Literatura e Arte publicara um artigo de sua autoria sobre a obra de Monteiro Lobato, texto que chamou a atenção do próprio Lobato e o motivou a conhecer o “tal Júlio”. O escritor chegou às nove e a conversa se desenrolou por mais de duas horas.

Lobato não estaria vivo para ver sua obra-prima adaptada para a televisão pelas mãos de Júlio e Tatiana. No fim dos anos 1940, o casal começou despretensiosamente a promover apresentações teatrais de histórias infantis para um grupo de amigos. A empreitada foi tão bem-sucedida que o secretário da Cultura de São Paulo pediu para que ocupassem o teatro municipal.

O passo seguinte foi o convite da emissora TV Paulista para se apresentarem no Natal de 1951. Por fim, para coroar o sucesso, foi a vez de a TV Tupi convidar o casal para criar um programa semanal, nos moldes do que faziam nos palcos. “Quando pediram para fazer um teleteatro brasileiro para crianças, imediatamente pensamos em Monteiro Lobato.” Estreava a primeira adaptação do Sítio do Picapau Amarelo para TV. Ao longo de 12 anos, Tatiana escreveu mais de 1.500 roteiros. Ao marido, cabia a apresentação do programa, que logo se tornou um sucesso.

A literatura infantil naturalmente ganhava espaço em sua vida, paralelamente ao trabalho de tradução. Foi ela quem pela primeira vez no Brasil traduziu Tchekhov diretamente do russo. “A contribuição de Tatiana como intelectual de vanguarda deve ser destacada. Por meio de traduções impecáveis, divulgou incansavelmente obras fortes da literatura europeia”, destaca a também escritora Heloísa Prieto. Em meados dos anos 1970, veio o convite para escrever uma coluna de crítica literária infantil na imprensa, função que desempenhou durante três anos na Folha de S.Paulo e quatro n’O Estado de S. Paulo. “Eles chamavam de crítica, mas não era porque eu nunca fui crítica, imagina, que pretensão. Crítica é coisa séria. Mas eu disse ‘posso fazer’, escrever um comentário, uma opinião sobre uma peça de teatro, sobre um livro, isso eu posso fazer. Chamem como quiser.”

A vida não se resume à moral da história

Avessa a maniqueísmos que inundam muitas das histórias infantis, prefere a agudeza de Monteiro Lobato à simples busca pela moral da história. “Quando cheguei ao Brasil, eu tinha lido Dostoiévski, Tchekhov e poetas alemães. O que é que tem? Criança tem cabeça, é muito inteligente, deem uma chance a ela, não lhe cortem as asas! Que é o que fazem. É a bendita moral da história. E atrapalham tudo, estragam tudo. Assustam a criança, a afastam do livro. É uma coisa muito tola.” Ela tampouco se preocupa com a faixa etária: “Eu não sei o que é isso”, enfatiza.

Aliás, o verbo “preocupar-se” não parece ser dos mais usados por ela. As benesses que a vida lhe trouxe, ela acredita serem fruto do acaso: “Eu diria que tenho certa sorte, porque as coisas sempre me procuraram, eu não fui atrás de nada, as coisas vieram atrás de mim”. A mais recente glória foi o ingresso na Academia Paulista de Letras, a convite da própria instituição: “Era a última coisa que me passava pela cabeça. Eu recebi muitas medalhas, homenagens, não posso me queixar, mas na Academia eu nunca pensei”.

A longevidade também impõe seu preço. O marido Júlio e o filho André são hoje retratos em preto e branco espalhados pela casa, mas a voz não fica embargada ao falar deles. Recorda-se com entusiasmo das peripécias do filho (“ele dizia coisas incríveis, era muito inteligente”), e é capaz de descrever com minúcias a personalidade e o tipo físico de Júlio Gouveia. A despeito das perdas irreparáveis, o mesmo passar dos anos encarregou-se de presenteá-la com cinco netos e quatro bisnetos, com os quais conversa horas a fio. E não seria surpresa se dali saísse a inspiração para uma nova história, pois “Tatiana Belinky prossegue sua faina de semeadora da alegria de viver em comunhão com os outros. Com seus sucessivos livros e sua alegre e fecunda palavra literária, continua a ajudar os que chegam a se autodescobrir, com a fraternal relação eu-outro. E, nessa relação existencial, encontrar seus verdadeiros caminhos na vida”, analisa a crítica literária Nelly Novaes Coelho.

Na tentativa de fazer um elogio à escritora, certa vez alguém disse que ela era “uma pessoa que fez a nossa cabeça”. Tão logo ouviu o “elogio”, propôs a correção: “Pelo amor de Deus, eu nunca quis fazer a cabeça de ninguém. Pelo contrário, eu queria ajudar a abrir a cabeça dessas crianças. Ajudá-las a fazer a sua própria, a usar os olhos, os ouvidos e o nariz para absorver, entender e começar a pensar; abrir tudo, inclusive a boca para pôr no trombone”. Tatiana não é dada a imperativos. Presente desde a infância, a literatura não foi para ela uma imposição, mas sim uma descoberta. Quando busca definir seu modo de vida, costuma valer-se de uma frase do escritor francês Daniel Pennac: “O verbo ler não comporta imperativo, assim como o verbo amar e o verbo sonhar”.

(2) Comentários

  1. Como é gostoso ler coisas semelhantes a que meus avós mentalizavam, meus ancestrais vieram da Letônia e estabeleceram-se em Curitiba -Pr.
    A escritora tem comportamentos que ao ler seus comentários muito me lembram as maneiras de ser de meus avós, fez muito bem para mim encontrar uma leitura com tamanha semelhança.
    grato
    Frank

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