Impressões de 2013: vantagens e desvantagens das polarizações

Impressões de 2013: vantagens e desvantagens das polarizações
Cena do documentário, 'Junho – O mês que abalou o Brasil', de João Wainer (Reprodução)

 

 

Em abril de 1981 os filósofos Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Jacques Derrida (1930-2004) se encontraram para um debate no Goethe-Institut de Paris. A conversa tinha como tema as condições de possibilidade de qualquer conversa e acabou se tornando um embate entre dois modos bastante diferentes de pensar o diálogo: a hermenêutica x a desconstrução. Gadamer, um ex-aluno de Heidegger, já octagenário, fiel aos ideais do iluminismo, defendeu basicamente a tese de que a condição fundamental para qualquer troca verbal ou textual de ideias é a de que ambos os lados têm que ter a boa vontade de tentar entender um ao outro e uma sincera intenção de cada um na busca da verdade (Gadamer, Texto e interpretação, 1981). O jovem Derrida, herdeiro do pós-estruturalismo, colocou em dúvida a existência de uma “verdade final” para qualquer conversação e questionou o critério de sinceridade exigido por Gadamer.  A suposta universalidade da disponibilidade para o entendimento não seria apenas dificilmente atestável, mas também desviava a reflexão acerca das relações de poder subjacentes em qualquer tentativa de conversar com (ou sobre) o outro. Para Derrida existe sempre algo de político em qualquer tentativa de comunicação. O gesto de “entender o outro” está sempre atravessado, em maior ou menor grau, por uma “boa vontade de dominar o outro”.

Em junho deste ano completamos 5 anos das jornadas de 2013. Naquela época todos nós, tanto dentro e fora da comunidade acadêmica, observávamos os acontecimentos sem saber muito bem o que estava acontecendo. Por ocasião da efeméride os debates voltaram na forma de artigos, livros, depoimentos, eventos acadêmicos, rodas jornalísticas. Se por um lado as reflexões rememorativas são fundamentais em um ano eleitoral, por outro lado percebe-se uma espécie de guerra de interpretações, pois de todos os lados surgem tentativas de “explicar” as jornadas de 2013. É preciso sempre se perguntar, a cada caso, se as “explicações” estão comprometidas com um projeto de escuta ou de controle do outro.

As tentativas de “explicação” já aconteciam em 2013. Eu me lembro que na época estava terminando uma pesquisa de pós-doc na Universidade de Paris VIII, por coincidência com o tema “Formas do Niilismo no Brasil”, inspirada nas obras de Nietzsche e Flusser. Do Brasil eu recebi alguns e-mails de colegas, igualmente perplexos, perguntando-me quais eram minhas teorias para desvendar a complexidade das ruas. Evidentemente eu também não tinha a menor ideia. Mas me recordo, por exemplo, que um grupo de colegas do departamento de filosofia e de ciências sociais da UNIRIO, no auge da perplexidade, ainda nas primeiras semanas das jornadas de junho, resolveu propor um debate entre os professores e os estudantes. Lá longe de Paris eu saudei por e-mail a iniciativa e sugeri que fossem convidados para a mesa não apenas os professores da casa, mas representantes do movimento do passe livre e da mídia ninja, ambos protagonistas naquele instante. Infelizmente a minha sugestão foi rechaçada com o argumento de que uma universidade não precisa recorrer a convidados externos e que os professores, somente eles, estavam mais do que capacitados para “explicar” aos alunos o que estava acontecendo.  Me lembro também de colegas de outras universidades postando teorias e mais teorias sobre as manifestações, a maioria delas começando com a expressão “Daqui da minha janela posso ver que se trata disso ou daquilo”, sem nunca descer para ir ver de perto, sem se misturar com as pessoas nas vias públicas. As explicações nas mídias, na sua grande maioria, também pareciam vir de uma perspectiva de cima, de longe e de fora das ruas.

Passados cinco anos continuamos tendo que lidar com teorias de “explicapropriação”, se me permitem o neologismo. A esse respeito escutei algumas vezes durantes os recentes debates rememorativos a hipótese de que 2013 rompeu a unidade da sociedade brasileira e deixou como legado a mal-afamada polarização entre “coxinhas” e “mortadelas”. Considero difícil acreditar que em algum momento nos nossos pouco mais de 500 anos de história tenha existido alguma “unidade” coletiva. Nunca houve tal unidade e por isso mesmo penso que não deveríamos colocar como meta das nossas ações o ideal de “reconciliação nacional”, pois é impossível reunificar o que nunca foi uno. Talvez fosse melhor lutar para esgotar o campo do possível, qual seja, garantir que haja espaço para a convivência plural entre diferentes, especialmente das minorias. Minha impressão além disso é a de que as teorias sobre a polarização parecem desprezar que há uma assimetria fundamental entre os dois supostos polos: são desiguais não somente na quantidade, mas também na capacidade de mover recursos financeiros e, principalmente, de redistribuir informações através dos meios de comunicação de massa. Também não compartilho a opinião de que a divisão política, se houver, é algo somente a ser lamentado. Tenho as vezes a impressão de que evoluímos um pouco em alguns aspectos enquanto sociedade civil, ainda que ”com passos de formiga e sem vontade”, conforme a canção do Lulu Santos.

A polarização parece-me mais mobilizadora do que a tranquilidade do “tanto faz”, recorrente em nossa cultura. Tenho uma lembrança mais antiga, de uma eleição também polarizada, entre Collor e Lula, em 1989. Me lembro claramente que na véspera do pleito peguei um ônibus rumo a Copacabana com um amigo alemão, estudante bolsista do DAAD (O CNPq germânico). A nossa frente sentaram-se duas adolescentes. Então uma disse para a outra, se o Lula ganhar vai ter um show maravilhoso no Aterro do Flamengo, com artistas como Chico, Caetano, Gil. Passados alguns momentos a amiga retrucou: – “E se o Collor ganhar?” A resposta foi rápida e surpreendente: – “Então, tanto faz, o importante é que vai ter outro show maravilhoso, com outros artistas igualmente geniais, só que na Barra da Tijuca”. Meu amigo alemão, que entendia muito bem português, ficou estupefato e me pediu explicações para o fenômeno. Como sempre eu não tinha nenhuma, mas retroativamente tenho a impressão que nossas lutas pela redemocratização sempre exigiram estratégias de resistência às posturas do “deixa pra lá” ou do “tô nem aí”, enfim, dos niilismos à brasileira.

A cultura do “tanto faz” persiste na tese bastante popular na atualidade de que todos os políticos, não importa de que partido, são corruptos. Essa atitude não apenas é sintoma de um embotamento da capacidade de perceber as nuances do mundo, como também revela uma compreensão muito restrita do que é política, como se fosse o privilégio de alguns privilegiados, em geral homens, brancos, héteros e religiosos e não uma tarefa de todos os cidadãos envolvidos. Precisamos ocupar a arena com mais mulheres, negros, jovens, pessoas “trans”, até mesmo com cientistas ou filósofos, enfim pluralizar a política. Mas algumas coisas mudaram também desde 2013, para melhor, ao meu ver. A intolerância diante da intolerância cresceu e se fortaleceu. Desenvolveu-se, por exemplo, uma consciência cada vez mais abrangente de que o assédio sexual, racial ou moral é inadmissível, em um lento, mas persistente processo de desnaturalização de certos hábitos culturais advindos do colonialismo. Os movimentos organizados em defesa dos direitos da diversidade vêm ganhando cada vez mais apoio e espaço. Além disso ficaram mais claras as consequências cotidianas das nossas escolhas políticas, seja a favor ou contra, seja ainda a de ficar em cima do muro, como se não tivéssemos nada a ver com isso. O problema com as consequências, como ensina Homer Simpson, é que elas sempre vêm depois.

Infelizmente as manifestações de rancor e as formas de repressão institucionais também tem aumentado sistematicamente. Mesmo assim tendo a preferir a polarização, por mais que ela afete dolorosamente nossos ambientes de trabalho e de família, do que os discursos apaziguadores, de que é preciso respeitar todas as opiniões. Discursos de ódio não são meras opiniões e há uma violência velada na suposição de que devemos aceitá-los como fazendo parte das regras do diálogo. As polarizações têm a vantagem de expor, ao invés de esconder, a ferida: a argumentação racional e dialógica é ineficaz frente a um discurso manipulador e autoritário, que só quer – seja por medo, ressentimento ou ganância – manter e ampliar seu status quo. Com fascista não tem conversa, só dissenso e embate (aliás é justamente essa a sabedoria do instigante livro de Marcia Tiburi, Como conversar com um fascista, de 2017).

Ainda temos muito que amadurecer enquanto sociedade, mas tenho a impressão, talvez de forma otimista, que a assustadora re-emergência das teorias e práticas conservadoras nos últimos cinco anos é uma reação desesperada, por isso mesmo violenta, de alguns grupos que temem perder suas posições hegemônicas de poder. É um sintoma de que “algo se perdeu, algo se quebrou, está se quebrando”, como pensou Caetano na lúcida canção Americanos, de 1991. A “boa vontade de entender” e, principalmente, “de se entender com” os outros não se realizará sem um enfrentamento direto e polarizador contra a “boa vontade de controlar”, dominar e reprimir o diferente. Se tivermos força para suportar as complexidades, tensões e dissensos mobilizados entre 2013 e 2018, então há ainda a chance de construir um outro e melhor país, mais plural, mais atento com as alteridades, mais auto-crítico.

Vila Isabel, Rio de Janeiro, inverno de 2018.


Charles Feitosa é doutor em filosofia pela Universidade de Freiburg. i.B./ Alemanha

(1) Comentário

  1. Genial. Fiquei pensando após ler se queria dominar ou entender o texto. Muito bom. Parabéns pela escrita.

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