Identidade e apropriação cultural

Identidade e apropriação cultural
(Foto: Alberto Henschel)

 

Especialistas afirmam que discussão é mais profunda: “Dizer que apropriação cultural se resume a usar ou não turbante, comer ou não sushi é, na melhor das hipóteses, uma grande desonestidade intelectual”

 

Turbante, dreadlocks, cocar, desenhos tradicionais. Símbolos culturais e estéticos que, se por um lado ajudam a compor o imaginário de nação miscigenada, também carregam seu valor simbólico de resistência dentro da comunidade na qual estão inseridos. No palco dos sincretismos, diversos atores e culturas se misturam, não sem provocar polêmica e discussões que muitas vezes não arranham mais que a superfície da questão.

Enquadra-se aí o debate sobre “apropriação cultural”, tema que vem dividindo opiniões desde que sites e jornais repercutiram o caso de uma garota branca que teria sido repreendida por duas mulheres negras porque usava um turbante.

A educadora e pesquisadora de dinâmicas raciais Suzane Jardim afirma que, toda vez que emerge, essa discussão é erroneamente deslocada para o âmbito do “purismo cultural”, na qual apenas os responsáveis pela criação de um determinado elemento teriam autorização de utilizá-lo.

Longe disso, o que está em jogo segunda ela é a forma como se dá a interação entre grupos historicamente marginalizados e seus antagonistas – relação que seria marcada por “preconceito, exclusão, etnocentrismo, poder e capitalismo”.

“Vemos a diferença sistêmica entre os que usam esses elementos como adorno e os que usam por princípio, religião ou resgate de uma identidade”, diz Jardim. “Quando falam em cultura, os negros se referem muito mais a resistência e racismo do que à origem dos elementos, propriamente”.

Pesquisadora e ex-Secretária Adjunta da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo, Juliana Borges afirma que “dizer que apropriação cultural se resume a usar ou não turbante, comer ou não sushi” é, na melhor das hipóteses, uma grande desonestidade intelectual, além de escancarar a face racista “ainda tão presente na sociedade brasileira”.

A discussão, primordialmente, tem a ver com questões estruturais e estruturantes da sociedade brasileira, segundo Borges, e passa pelo esvaziamento histórico e cultural de etnias sequestradas do continente africano para serem escravizadas por aqui.

Nesse contexto, símbolos como o turbante podem ser encarados como elos entre um povo e sua ancestralidade, suas origens perdidas. A crítica seria menos ao uso individual em si e mais a uma estrutura social que escrutina tradições de um povo enquanto aplaude as mesmas quando praticadas por outros.

A questão da “proibição do uso”, segundo Suzane Jardim, não encontra vulto material algum fora da internet. “O que existe são manifestações de incômodo que podem se manifestar contra um indivíduo – pois sabemos que há uma diferença no tratamento –, e isso acaba por se voltar contra o próprio negro, fortalecendo a imagem estereotipada de que são raivosos, vitimistas ou injustos com a população branca repleta de boas intenções”, afirma.

Mulheres da comunidade de Santa-Maria Tlahuitoltepec (Foto: Carina Pérez García)

Na indústria

A feminista negra Stephanie Ribeiro concorda que o debate não pode ser “problematizado” sob uma perspectiva individual. A crítica, segundo ela, deve ser sistêmica e estrutural.

Ela relembra, por exemplo, o episódio em que a estilista francesa Isabel Marant foi acusada de copiar um tipo de bordado feito há 600 anos pela comunidade mexicana Santa-Maria Tlahuitoltepec. Enquanto a estampa de Marant era comercializada por cerca de R$ 1.000, as túnicas tradicionais das mulheres de Oaxaca saíam por aproximadamente R$ 65.

“A enorme lucratividade adquirida pela estilista e sua marca nem chegará perto da comunidade, para quem a manutenção da sua identidade é mais que estética: é uma forma de resistência e resiliência”, afirma Ribeiro.  “Ao falar de apropriação cultural, estamos questionando um ramo dessa árvore do racismo estrutural que atinge diversos povos não-brancos, comumente criticados, perseguidos e massacrados por sua identidade.”

Para Suzane Jardim, a reprodução de símbolos culturais em escala industrial carrega o agravante de esvaziar os movimentos sociais: “Os símbolos estão lá. Podem até passar uma falsa mensagem de aceitação e de paz entre os povos, mas a exclusão do negro na hora do registro de sua própria história reforça uma ideologia já velha, na qual o Brasil é o país da miscigenação e do bom convívio entre as raças desde que o negro permaneça escondido e sem oportunidades reais dentro do sistema.”

Fiscalizar “quem está usando o quê” nunca foi um real foco da luta anti-racista, segundo Jardim. Esta continua focada do extermínio da juventude negra, no encarceramento em massa de sua população, na guerra às drogas e no acesso à Universidade, elenca Borges. No entanto, ela afirma que o caso da curitibana Thuane Cordeiro foi ilustrativo, já que evidenciou a maneira como as “dinâmicas da apropriação e da manutenção da desigualdade continuam sendo mantidas”.

“Grandes jornais e plataformas online o noticiaram assumindo a veracidade da história e o fazendo em tom de denúncia contra a atitude ‘radical’ dos negros brasileiros”, critica. “Mas casos de racismo envolvendo desconhecidos são denunciados diariamente sem tomar esse tipo de proporção.”

(2) Comentários

  1. Sinceramente, isso não acaba, no final de tudo, causando desunião, não?!

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