Entre o amor veemente e o ódio cego

Entre o amor veemente e o ódio cego
(Bob Sousa)

 

“Que eles pensem sempre, sempre, que as pessoas que têm direito à vingança sobrevivem a ela”. (Fala final da protagonista do Caso Especial n. 12: Medeia, de Oduvaldo Vianna Filho, com direção de Fábio Sabag).

Gota d’água [a seco], dirigida por Rafael Gomes, com Laila Garin e Alejandro Claveaux nos respectivos papeis dos protagonistas Joana e Jasão, é uma adaptação (a cargo do próprio diretor) de Gota d’água: uma tragédia brasileira, a peça musical que Chico Buarque e Paulo Pontes, inspirados em concepção dramatúrgica de Oduvaldo Vianna Filho, criaram em 1975 para ser estrelada por Bibi Ferreira. Dois anos antes, Vianinha havia escrito o episódio Medeia para a série Caso Especial da Rede Globo de Televisão (exibido no dia 14 de fevereiro de 1973), uma transposição da tragédia homônima de Eurípides para o subúrbio da capital do Rio de Janeiro na década de 1970, com Fernanda Montenegro e Milton Moraes nos papeis de Joana e Jasão, respectivamente. Vale lembrar que a Medeia de Eurípides foi apresentada pela primeira vez no concurso das Grandes Dionísias de 431 a.C. (no qual obteve o terceiro lugar), realizado na cidade de Atenas às vésperas da deflagração da guerra do Peloponeso. Considerada o primeiro drama burguês da história da literatura dramática (o amor ferido de uma mulher por seu ex-marido, amor este transformado em ódio e vingança executada em âmbito doméstico, é a grande matéria da qual a peça extrai toda sua densidade) e usufruindo da condição de um dos textos mais conhecidos do repertório teatral grego, a obra rendeu em 1969 uma belíssima adaptação cinematográfica realizada por Pier Paolo Pasolini, que convidou a cantora Maria Callas para assumir o papel da feiticeira da Cólquida.

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Pois bem, ainda que esteja escudada pelo adjunto adverbial de modo “a seco”, que remete à ideia de sóbrio, despojado, a encenação de Rafael Gomes, ora em cartaz no Teatro FAAP em São Paulo, evoca uma série de elementos complexos que estão na base não somente da própria narrativa que envolve a personagem mítica disposta a concretizar uma vingança terrível, mas também dos recursos artísticos de que o teatro e a música podem se servir para recontar tal história. Se a Joana de Gota d’água é uma Medeia brasileira moderna, nada melhor do que procurar suas raízes mais remotas. O nome próprio Medeia, segundo o Dicionário mítico-etimológico, de Junito de Souza Brandão, provém do verbo “medesthai”, cuja raiz “med” reúne uma espantosa ambiguidade em termos etimológicos. “Medesthai” pode implicar tanto as ações de planejar e projetar (donde esta mulher seria hábil em “planejar uma vingança” contra aquele que a traiu ou “arquitetar um projeto” para executá-la) quanto as noções de medida ou moderação (que serviriam curiosamente como forças antípodas à energia incontida que anima a personagem). Já o nome Joana com o qual Chico Buarque e Paulo Pontes batizaram a Medeia brasileira de Vianinha advém do grego “Ioana”, cuja origem é a forma hebraica “hôhanan”, que significa “Iahweh é benigno” – de onde se pode extrair nova ambivalência. Assim, a protagonista de Gota d’água é, a um só tempo, imoderada e contida; benfazeja e maligna.

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Outro dado narrativo relevante diz respeito ao ponto de vista político por meio do qual tanto Eurípides quanto Vianinha, Chico Buarque e Paulo Pontes tratam a protagonista. A heroína é vítima de um homem que, sem pensar em outra coisa que não seja sua sede de poder, abandona a ela mesma e a seus filhos à própria sorte. Toda crítica ao sistema patriarcal em Eurípides, ampliada pelos três dramaturgos brasileiros ao nível do sistema econômico espoliador dos mais humildes, se dá por intermédio da psicologia da exposição, por meio da qual Medeia e Jasão chegam até nós como indivíduos que “pretendem justificar suas paixões”, na feliz acepção de Otto Maria Carpeaux. Retórica e lirismo irmanam assim Medeia e Joana, ambas e Jasão, reduzindo os quase 2.500 anos que separam uma criação de outra a um átimo de segundo. Se Eurípides em Medeia, de acordo ainda com Carpeaux, “é o primeiro poeta que exprime a alma do homem, sozinho no mundo, fora de todas as ligações religiosas, familiares e políticas, sozinho com a sua razão crítica e o seu sentimento pessimista, com a sua paixão e o seu desespero”, Chico Buarque e Paulo Pontes expõem com muita habilidade em Gota d’água: uma tragédia brasileira os conflitos psicológicos entre a vontade sentimental do casal de protagonistas e as leis imperiosas da convivência familiar e social, que, embora não tiranizem mais hoje em dia a mulher como na década de 1970, ainda a expõem à hipertrofia do individualismo masculino, disfarçado, sobretudo pela indústria cultural, de diferença de gênero.

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Ousando mexer em material aparentemente autossuficiente, Rafael Gomes reduziu as múltiplas ações do texto original de Gota d’água às cenas de encontro, confronto e embate entre Joana e Jasão. Desse modo, treze personagens foram eliminados – treze, se for considerado que Creonte e Alma são mantidos na adaptação unicamente como figuras de fundo. Já em relação ao repertório musical, deu-se o contrário. Às canções originas “Flor da idade”, “Bem-querer”, “Basta um dia” e “Gota D’água” foram acrescentadas “Cálice”, “Pedaço de mim”, “Mulheres de Atenas”, “Caçada”, “Eu te amo”, “Mil perdões”, “Baioque”, “Você vai me seguir”, “Sem fantasia” (em versão instrumental) e “João e Maria” (somente a título de citação), extraídas do vasto e célebre cancioneiro do compositor.

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Em termos dramatúrgicos, a opção é bastante feliz. O dialogismo excruciante do casal de protagonistas evidencia a feição predominantemente psicológica do conflito que há entre eles (evocando com muita habilidade o substrato euridipiano da proposta) e remete o espectador à essencialidade de um contato vivido face a face e corpo  a corpo que encontra no lirismo das falas criadas por Chico Buarque e Paulo Pontes o modo de uma expressão plástica sui generis. Vale destacar a força poética do texto, mantida praticamente intocável quatro décadas depois de ele ter sido concebido. Para isso, concorrem naturalmente não só o trabalho da dramaturgia e da direção, mas também o da interpretação, sobretudo de Laila Garin, a quem competem as falas mais vazadas de subjetivismo e arrebatamento. Quanto às canções acrescentadas ao quarteto original, embora algumas sofram um desgaste natural por serem demais conhecidas, elas dão uma sustentação muito eficiente, de um lado, à atmosfera amorosa vivida intimamente entre o casal e, de outro, ao clima político experimentado entre ambos e a vida social mais ampla – constituindo especialmente a interpretação de Baioque por Laila um dos pontos altos da perspectiva política.

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Se pensarmos com Paula da Cunha Corrêa que “das tragédias gregas antigas, perderam-se o contexto cultural, a música, a dança e a encenação como um todo, elementos fundamentais e constitutivos desses dramas”, a direção musical de Gota d´água [a seco], a cargo de Pedro Luís, arrisca conceber um trabalho sonoro senão de todo afinado com o universo dramático de Eurípides (quem há de negar que a pungência de canções como Cálice e Pedaço de mim não seja similar aos efeitos sonoros e prosódicos veiculados pelas falas da Medeia grega?) ao menos comprometido em revigorar as partituras musicais de Chico Buarque. Assim, os novos arranjos instrumentais e vocais que todas as canções receberam (nem excessivamente deferentes aos originais, tampouco radicalmente transgressores com eles) estão a serviço dos inúmeros matizes de teatralidade que o projeto da direção deseja atingir. Some-se a isso o talento do quinteto que executa a trilha sonora ao vivo, formado por Antônia Adnet, Dudu Oliveira, Elcio Cáfaro, Marcelo Muller e Pedro Silveira.

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A cenografia de André Cortez é um elemento cujo efeito de disrupção é semelhante àquele provocado pelo cenógrafo em Um bonde chamado desejo, dirigido também por Rafael Gomes. Quando a modernidade das formas empregadas pelo cenógrafo parece ilegível, do ponto de vista da materialização de algumas das indicações cênicas presentes no texto original, eis que ela explode como simples “desejo de escritura no espaço tridimensional” (Patrice Pavis) e se impõe em sua paulatina funcionalidade e estranha beleza.

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Em Gota d’água a seco, Rafael Gomes consegue dialogar autonomamente com o universo dramatúrgico e musical de Chico Buarque e Paulo Pontes, indo a fundo naquilo que constitui a essência da personagem que não somente a dupla de criadores de Gota d’água, mas também Vianinha e Eurípides foram buscar na tradição mítica mais antiga (que literariamente remonta a Homero e a Hesíodo): a exposição do ser dilacerado da protagonista. Concorrem especialmente para a materialização em cena deste coração humano cindido entre os eflúvios do amor e o demônio da vingança o talento e a técnica de Laila Garin, uma atriz de emoção à flor da pele, voz densa e corpo do qual ela extrai uma força incrível. Características que competem a Joana e a Medeia. Como também já concerniram às performances de Maria Callas, Fernanda Montenegro e Bibi Ferreira. Baiana de nascimento e dona de um timbre e de uma prosódia toda especial, tão diferente do falar padronizado que estamos acostumados a ouvir no eixo Rio-São Paulo, a intérprete explora um tipo de fragilidade agreste, patética, doída, logo subvertida pela força da paixão que habita e possui sua personagem. Paixão igualmente selvagem, patética e doída.

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Alejandro Claveaux também compõe muito bem o Jasão que defende em cena, explorando com brio sua jovialidade e sua bela estampa, ao mesmo tempo em que procura conferir variadas nuances às intenções ora claras, ora soturnas desta espécie de marco zero do arrivismo machista no Ocidente. “Jasão não ama nada. É um puro egoísta que se apresenta diante de nós. Jasão é um cínico que passou pela escola dos sofistas e que fala a linguagem deles. Os seus raciocínios são impecáveis até o paradoxo”, afirma o helenista francês André Bonnard, a respeito não somente do ex-marido de Medeia, como também, mesmo sem saber, do de Joana.

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Vale notar que Gota d’água [a seco] é a segunda encenação em tão pouco tempo de Rafael Gomes cuja protagonista aspira o amor, mas engole a auto-aniquilação. A outra é a Blanche Dubois de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. Talvez o projeto futuro do diretor – um musical sobre a vida da cantora Elza Soares – interrompa o movimento de esmagar-se contra o vazio vivido por Blanche e Joana. Mas ainda assim recolocará o diretor na senda de mulheres trágicas, cuja paixão ora perturba a lucidez do espírito, como acontece com Blanche, ora a apura, como ocorre com esta Joana de hoje e provavelmente com a Elza do novo espetáculo que se anuncia.

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GOTA D’ÁGUA [A SECO]
ONDE: Teatro FAAP (Rua Alagoas, 903 – Pacaembu)
QUANDO: Até 30 de outubro. Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h
QUANTO: De R$ 25,00 a R$ 100,00
INFO: (11) 3662-7233

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