Trabalhadoras na vanguarda

Trabalhadoras na vanguarda
Manifestação de mulheres nas ruas de Petrogrado em 1917 (Reprodução)

 

O papel decisivo das mulheres e trabalhadoras russas para o início da Revolução de Fevereiro de 1917

 

As trabalhadoras russas, concentradas no setor têxtil e nos ofícios menos qualificados, eram o setor mais explorado da classe operária russa: em 1916, o salário médio chegava a menos da metade do da metalurgia. A porcentagem de analfabetismo, que atingia a média de 36% entre os trabalhadores industriais e se reduzia a 17,4% entre os metalúrgicos, subia a 62,5% entre as têxteis, embora a distância entre a alfabetização masculina e feminina se reduzisse consideravelmente nos grupos de menor idade, entre os quais se recrutavam as militantes das fábricas de tecido.

A tarefa estratégica de ganhar as mulheres trabalhadoras para as propostas socialistas foi logo compreendida pelas mulheres socialistas. A necessidade do desenvolvimento da agitação e propaganda socialista entre as mulheres russas foi uma das conclusões da Revolução de 1905, expressa pela líder revolucionária Aleksandra Kollontai (1872-1952) na Primeira Conferência Internacional das Mulheres Socialistas em Stuttgart (1907). Já na Segunda Conferência, em Copenhague, 1910, com delegadas de dezessete países, proclamou-se o “Dia da Mulher” nos seguintes termos:

“De acordo com as organizações políticas e sindicais com consciência de classe do proletariado de seus respectivos países, as mulheres socialistas de todas as nacionalidades têm de organizar um Dia da Mulher (Frauentag) especial, no qual, antes de tudo, há de se promover a propaganda pelo sufrágio feminino. Essa reivindicação deve ser discutida em relação com toda a questão da mulher, segundo a concepção socialista. O Dia da Mulher deve ter um caráter internacional, e ser cuidadosamente preparado.”

Pouco antes do desencadeamento da Primeira Guerra Mundial e seguindo o exemplo das operárias alemãs – cuja revista Die Gleichheit (A igualdade), editada por Clara Zetkin desde sua fundação em 1892, alcançou uma tiragem de 124 mil exemplares em 1914 –, as social-democratas russas editaram a revista Rabôtnitsa (Trabalhadora), cujo primeiro número foi publicado no Dia Internacional da Mulher de 1914, com 12 mil exemplares. Seu conselho editorial incluía Inês Armand, Aleksandra Kollontai e Nadêjda Krúpskaia, a companheira de Lênin, entre outras líderes do movimento de mulheres comunistas. O editorial do primeiro número, publicado em 16 de março de 1914, afirmava que a revista “educará as trabalhadoras com pouca consciência [política], e sublinhará seus interesses comuns com o resto da classe trabalhadora não somente na Rússia como em todo o mundo”.

O periódico reportava uma tendência à passividade, ausência de iniciativa e de perseverança na luta, indiferença geral pela vida pública, um sentido debilmente desenvolvido da solidariedade de classe e uma baixa alfabetização política, como características da cultura política das trabalhadoras não qualificadas. “Quantas vezes”, perguntava-se um artigo, “ouvimos dizer que uma greve nessa ou naquela empresa fracassou porque ‘entre os trabalhadores havia muitas mulheres’, que várias fábricas não apoiavam os seus camaradas ‘porque’ entre seus trabalhadores havia muitas mulheres, que uma greve terminou prematuramente e por conseguinte se perdeu ‘porque’ entre os operários havia muitas mulheres? As mulheres são o grupo menos consciente. Filiam-se menos que os homens aos sindicatos, vão com menos frequência aos clubes e às conferências.”

‘Você ajuda a acabar com o analfabetismo, autor desconhecido’, de 1920. A figura feminina chamando a atenção para o problema é especial, já que as mulheres eram a parcela da população mais atingida (Reprodução)

Mulheres trabalhadoras: a vanguarda de fevereiro

A Primeira Guerra Mundial transformou o papel social das mulheres na Rússia. Entre 1914 e 1917, centenas de milhares de mulheres se converteram em operárias da indústria, ocupando postos de trabalhadores enviados ao front: no final de 1916, o número de homens recrutados subira a 14,6 milhões, muitos deles jovens que haviam sido o único sustento para suas famílias. Na expansão industrial ocorrida durante a guerra, houve um crescimento desproporcional do número de trabalhadoras. Embora em termos absolutos o aumento tenha sido quase o mesmo para ambos os sexos, o aumento relativo da mão de obra feminina superou a dos homens em mais de 50%, com o que o componente de mulheres na classe operária aumentou de 25,7% em 1914 para 33,2% em 1917. Na indústria têxtil e na de alimentos, ofícios principalmente não qualificados e onde as mulheres se haviam tornado proeminentes há muito tempo, as trabalhadoras formavam, agora, uma maioria.

O ingresso das mulheres nas fábricas não as eximia, no entanto, de suas responsabilidades domésticas. As pressões que sofriam as trabalhadoras pela fome de seus filhos, combinada com a exclusão da vida política e social, as convertiam, como assinala Rabôtinitsa, em um dos setores mais conservadores; tal condição de dupla opressão, porém, tornava-se ainda mais explosiva entre as mulheres devido à falta de pão. As eternas filas que em pleno inverno russo as trabalhadoras faziam para conseguir o alimento, antes de entrar nas fábricas, levaram-nas a questionar o poder político, sem mais mediações.

A guerra e a revolução transformaram completamente o setor mais oprimido e despolitizado da classe operária. Em sua História da Revolução Russa, Trótski recorda que as mulheres trabalhadoras foram a vanguarda da Revolução de Fevereiro:

“O 23 de fevereiro [no calendário juliano, 8 de março no calendário gregoriano] era o Dia Internacional da Mulher. Os elementos social-democratas se propunham a festejá-lo na forma tradicional: com assembleias, discursos, manifestos etc. Não passou pela cabeça de ninguém que o Dia da Mulher pudesse se converter no primeiro dia da revolução. Nenhuma organização fez um chamamento à greve para esse dia. A mais combativa organização bolchevique, o Comitê do setor operário de Víborg, aconselhou que não se fosse à greve. […] Tal era a posição do Comitê, ao que parece unanimemente aceita, às vésperas do 23 de fevereiro. No dia seguinte, omitindo suas instruções, declararam-se em greve as operárias de algumas fábricas têxteis e enviaram delegadas aos metalúrgicos, pedindo-lhes que acompanhassem o movimento. […] É evidente, portanto, que a Revolução de Fevereiro começou de baixo, vencendo a resistência das próprias organizações revolucionárias; com a particularidade de que essa iniciativa espontânea seguiu a cargo da parte mais oprimida e coibida do proletariado: as operárias do ramo têxtil, entre as quais há de se supor que houvesse não poucas mulheres casadas com soldados.”

Mesmo entre os dirigentes bolcheviques de Petrogrado, que tendiam a ser os mais militantes, a estratégia era conservar a energia para uma greve geral decisiva no 1º de maio. Não obstante, no distrito de Víborg, as trabalhadoras de várias fábricas de tecido abandonaram o trabalho e, reunindo-se do lado de fora das fábricas metalúrgicas vizinhas, convenceram os homens a unir-se a elas.

No livro Russia’s Second Revolution, Gordienko, um trabalhador da Fábrica Nobel de Construção de Máquinas, recorda: “Na manhã de 23 de fevereiro, ouviram-se vozes femininas na rua para a qual davam as janelas de nosso departamento: ‘Chega de guerra! Chega de fome! Pão para os trabalhadores!’ Eu e vários companheiros fomos para as janelas num abrir e fechar de olhos […] As portas da Bolsháia Sampsônievskaia Manufaktura Nº 1 estavam abertas. As massas de mulheres trabalhadoras enchiam a rua, e o seu estado de ânimo era militante. As que nos viram começaram a agitar os braços para nós, gritando: ‘Saiam! Deixem o trabalho!’ Voaram bolas de neve pela janela. Decidimos nos unir à manifestação […]. Ocorreu uma breve reunião fora da oficina principal, perto das portas, e saímos à rua […] Os camaradas à frente foram tomados pelos braços em meio a gritos de ‘Urá!’. E partimos com eles pela avenida Bolshói Sampsônievski.”

Um impulso gigantesco

O papel de vanguarda das mulheres trabalhadoras não se limitou a declarar a greve que desempenhou função crucial na conquista de apoio dos soldados. À luz desses acontecimentos, perderam todo significado considerações como “o tempo ainda não está amadurecido” para uma greve geral ou para manifestações de rua. A Revolução de Fevereiro foi desencadeada como uma greve geral insurrecional, iniciada por “manifestações de mulheres nas quais figuravam somente operárias que se dirigiam em massa à Duma municipal pedindo pão”, que rapidamente recorreu ao apoio dos operários e se fundiu em palavras de ordem políticas como “Chega de autocracia!” e “Chega de guerra!”

O efeito imediato da iniciativa política das operárias da capital foi a queda da Dinastia dos Românov, que governava a Rússia desde 1613, a proclamação de uma república democrática, o ressurgimento dos conselhos de deputados operários (sovietes), criados inicialmente pela classe operária russa na Revolução de 1905 e a abertura de uma etapa de duplo poder entre tais conselhos e o governo provisório que culminará na tomada de poder pelos bolcheviques em outubro de 1917. A revolução bolchevique outorgou às mulheres a plena igualdade de direitos civis e políticos, o casamento civil e o divórcio, o direito ao aborto em novembro de 1920 (o que converteu a Rússia no primeiro Estado do mundo a legalizar a interrupção voluntária da gravidez), e desenvolveu uma política tendente a permitir a socialização do trabalho doméstico e da criação dos filhos, liberando a mulher do jugo da escravidão doméstica. Tais avanços dramáticos se deveram à política revolucionária consequente dos bolcheviques – que diferentemente dos partidos burgueses e pequeno-burgueses não buscaram chegar a um compromisso com o clericalismo, mas levaram a cabo uma separação categórica entre Igreja e Estado – assim como ao impulso gigantesco que a militância das trabalhadoras russas havia dado à revolução.

Tradução: Silvio Rosa Filho

Cintia Frencia é professora da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina
Daniel Gaido é professor de História Contemporânea na Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina

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