Dias circulares

Dias circulares

Na São Paulo dos anos 60, a dimensão pública da poesia era afirmada em lançamentos, debates e leituras; lia-se em voz alta, uns para os outros, em teatros, casas noturnas, ruas e praças

Houve “geração 60” de poetas paulistas? Em caso positivo, como se relacionava com a cidade? São Paulo estava presente em sua poesia?

A discussão da “geração 60” foi suscitada, alguns anos atrás, pela antologia Sincretismo – a poesia da geração 60, de Pedro Lyra (Topbooks, 1995), que se propunha a abarcá-la em âmbito nacional. Mas já havia sido proposta em Artes e ofícios da poesia, organizada por Augusto Massi e Leda Tenório da Mota (Editora Artes e Ofícios, 1991), através de dois de seus integrantes. Um deles, Carlos Felipe Moisés, advertiu com relação a “ismos”, correntes e classificações, para ele “bem comportados, demasiado bem comportados, no seu endosso a uma anacrônica história linear, caricatura oitocentista intrometida século XX adentro”. Outro, Antonio Fernando de Franceschi, declarou-se membro do grupo ou movimento de autores que se reuniram em torno da Antologia dos novíssimos e da coleção Novíssimos de Massao Ohno, por volta de 1960. Reconhecendo a importância desse editor para que saíssem do ineditismo, citou Celso Luís Paulini, Paulo del Greco, Roberto Piva, Carlos Felipe Moisés, Claudio Willer, Renata Pallottini, Eduardo Alves da Costa, Rodrigo de Haro. Falou em “ecletismo de base nessa constelação literária”. Para ele, “os novíssimos nunca tiveram o viés escolástico dos concretos, não se organizaram como movimento nem defendiam teses relacionadas com um projeto geral de criação”. Comentou ainda “afinidades eletivas com autores para os quais a atenção de muitos convergia”. Incluíam, para alguns, “os surrealistas e os poetas americanos da beat generation”. Mas sua marca foi a diversidade.

A geração paulista acabaria adotada pela Antologia poética da geração 60, de Álvaro Alves de Faria e Carlos Felipe Moisés (Nankin Editorial, 2000). E pelo documentário de Ugo Giorgetti, de grande repercussão, Uma outra cidade (exibido na TV Cultura, disponível em vídeo), que focalizou Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo de Haro, Roberto Piva, Jorge Mautner e a mim, em sua bela evocação daquela São Paulo.

O que define geração? Para alguns, não basta haver relações entre autores. É preciso um programa. Nesse sentido, fala-se em geração de 22, dos modernistas, de 45, dos que reverteram as propostas do modernismo etc. Octavio Paz, ao tratar de sua própria geração, adotou um conceito mais amplo. Referindo-se aos poetas agrupados ao redor da revista mexicana Taller entre 1938 e 41 (em Antevíspera: Taller, na coletânea Sombras de obras – arte y literatura. Biblioteca de Bolsillo, Barcelona, 1996), reconheceu que “a história da literatura é história de obras e seus autores, mas, entre as obras e os autores, há um terceiro termo, (…) as gerações literárias”. Definiu-as: “Uma geração literária é uma sociedade dentro da sociedade e, às vezes, frente a ela”. E acrescentou: “Com freqüência dividida em grupos e facções que professam opiniões antagônicas, cada geração combina a guerra exterior com a intestina”. Portanto, a geração pode, sim, incluir relações simpáticas e idiossincráticas, sincrônicas e antagônicas. Mais importante é haver edições e editor e pontos de encontro. Então, os mencionados por Franceschi e os incluídos na antologia de Álvaro e Carlos Felipe foram uma geração, apesar de o necrológio de 1963 (exibido em Uma outra cidade) ter sido para concretos, populistas, medalhões e para contemporâneos nossos, como Lindolf Bell, a quem acusamos, no mínimo, de beletrismo. E para mais gente que depois se tornaria nossa amiga.

A relação com os de 45, que dominavam o panorama cultural, era ambivalente. Houve quem fosse adotado como sucessor. E quem a combatesse. Poesia concreta, sim, era unanimidade negativa. Para muitos, em nome da permanência do verso. Por serem engravatados, bem-comportados. Por entenderem que, com as novas tecnologias, informática etc., viria uma nova linguagem, em forma de ideograma. Décio Pignatari deixou crescer a barba e o cabelo; mas, na crítica ao cientificismo, ao culto à tecnologia, tínhamos razão.

Em comum, a unir aquelas turmas, a eloqüência. A dimensão pública da poesia era afirmada em lançamentos, debates e leituras. Lia-se em voz alta, uns para os outros, em teatros, casas noturnas, ruas e praças, como na Catequese poética de Lindolf Bell, de grande notoriedade, no O sermão do viaduto, de Álvaro Alves de Faria. A busca de comunicação oral foi um traço distintivo com relação aos construtivismos. Mas nem por isso houve simpatia por seu pólo antagônico, o populismo dos CPC. Em suma, nem formalistas, nem conteudistas; nem militantes ortodoxos, nem trancafiados em torres de marfim. O cosmopolitismo dos que assumiram a identidade literária na São Paulo e no Brasil do interregno entre o desenvolvimentismo juscelinista e o golpe de 64 ajustava-se à metrópole industrializada, modernizada pelo crescimento do setor terciário, com a incessante destruição e renovação do seu perfil arquitetônico e a produtiva confluência de migrações.

A anarquia de então e a transgressão do comportamento não eram nada, ou pouco, comparadas a qualquer rave ou casa noturna. Talvez fossem mais impregnadas de humor. Tinham caráter de exceção e um sentido político, ao se contraporem a uma sociedade fechada, regrada, justificando o uso, de modo quase maniqueísta, das categorias “burguês” e “antiburguês” para indicar quem estava de qual lado. Não era para menos: lembro-me da noite em casa do expoente da geração de 45, sua esposa, exaltada com o recém-publicado Paranóia de Roberto Piva: “Mas como? Poesia, com esses palavrões? Willer, você que é inteligente, como pode admitir uma coisa dessas?”. Convidavam à provocação.

Como era São Paulo, com uma fração do número atual de habitantes? Seu centro real ficava em um febril cruzamento de vida cultural e desfile de toda sorte de tipos. Não é o caso de entoar novamente o réquiem do Paribar ou do Barbazul, tão bons ou medíocres quanto infinitos locais. O roteiro de bares interessa pela gente que os freqüentou. Incluía, na praça Dom José Gaspar, o Tourist, o Paribar, o Leco e a Galeria Metrópole a partir de 1963. Na São Luiz, o Arpége e o Barbazul de mesas na calçada. O derradeiro footing ia até a esquina – Sampa do Jeca de fim de noite. Ali circulavam intelectuais e artistas de diferentes matrizes, estudantes, rapazes chamados genericamente de playboys, pederastas, mulheres de todos os tipos, e os excêntricos amistosos, espécie diferente dos loucos furiosos e dos chatos. Aterrissar naquele trecho, pontilhado por indicadores das mudanças, permitia realizar as possibilidades do encontro: conversas banais, discussões de atravessar a noite, uma farra, um caso amoroso, instantâneo ou duradouro, companhias para uma noite falando de poesia ou cinema ou os mistérios da existência. Precedendo a contracultura, preparando-a, o sexo havia-se desconfinado. Ter relações íntimas com a namorada aos poucos deixava de ser um drama.

Que densidade de equipamentos culturais e pontos de encontro naqueles poucos quarteirões. Na Sete de Abril funcionavam o Masp, o bar do museu e o auditório da Cinemateca, mais o Cine Coral dos filmes europeus. Na Barão de Itapetininga, as livrarias Francesa, Brasiliense e Parthenon, a casa de chá Viena, com orquestra e tudo, e o cineclube do Centro Dom Vital (debate sobre novos poetas em 1963, um da geração cinco anos anterior, dedo em riste: “Ser brasileiro é ter tido uma infância normal..! É ter tido uma infância normal..!” – como se exaltavam com facilidade…).

A agenda cultural de hoje é maior; porém, em matéria de livrarias, a São Paulo de quarenta anos atrás ganhava pela oferta de títulos de qualidade na Livraria Francesa, nas importadoras de livros mexicanos e argentinos Ler e Mestre Jou, no Palácio do Livro da Ipiranga, com um estoque impressionante de pockets, na Parthenon, além da Livraria Italiana e das tradicionais brasileiras, Teixeira, Jaraguá e Brasiliense. O mundo nos era apresentado através de capas de livros.

Hoje, exceto a Livraria Francesa, nada disso existe. Acabou. Só a Biblioteca Mário de Andrade subsiste, isolada. Repito: São Paulo não era nenhum paraíso. Sempre foi caótica e degradada. Mas, para a descrição do que temos agora na mesma região, teria de adotar o tom de profeta raivoso do admirável Abraçado ao meu rancor, de João Antonio.

Aquela agitação em dois planos complementares, da farra e da produção, quando não proliferação, foi um sintoma de vitalidade. A perspectiva apocalíptica, mais típica dos fins de século e de milênio, marcou a década. Conforme já observei (no posfácio da Antologia poética da geração 60), intelectuais e artistas viviam um milenarismo antecipado, a expectativa de uma mudança como catástrofe, instalação de utopia ou ambos. Quem se engajasse em movimentos políticos ia mudar o mundo. Artistas iniciantes estavam aí para subverter a arte. Novos poetas vinham transformar a relação entre poesia e sociedade. Reciprocamente, inimigos visíveis, apresentavam-se os conservadores enfáticos, as milícias da TFP e do CCC, e a polícia. Essa chegou a ocupar-se de manifestações literárias: detinham Álvaro Alves de Faria por causa dos sermões no Viaduto e mandaram Lindolf Bell parar com a Catequese poética, entre outros episódios.

Rastrear influências e fontes de inspiração, da impostação bíblica até o intimismo, vai além deste artigo. O mapeamento em antologias é satisfatório. Mas vale a pena observar, de novo, relações de continuidade e ruptura com Mário de Andrade, poeta de São Paulo por excelência. Por exemplo, em Álvaro Alves de Faria encontramos o mesmo uso de topônimos, quando “Sapatos de freiras caminham na São Luís/ em direção à Santa Casa de Misericórdia./ Só amanhã elas dirão/ que a vida acabou”. Ou em “Uma mulher desmaia no canteiro/ dizendo que o inferno é como a Praça da República”. Não apenas na poesia, mas em crônicas e narrativas, Álvaro se relaciona de modo ambivalente, mas passional, com a cidade. Indicações geográficas devem algo ao olhar penetrante do jornalista, do cronista atento ao detalhe.

A reedição de Paranóia, poemas de Roberto Piva e fotos de Wesley Duque Lee (Instituto Moreira Salles, 2000), fez que muita gente reconhecesse o que deixou de ver na época: uma voz legitimamente original na poesia brasileira. Contribuíram para o silêncio de 1963 e anos seguintes blasfêmias como “o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus/cadela”, e isso “enquanto os cardeais nos saturam de conselhos bem-aventurados/ e a Virgem lava sua bunda imaculada na pia batismal”. Uma poesia que proclamava a rebelião e destruía simbolicamente o mundo: “arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos”. Tudo o que Paranóia tem de alucinado ganha vigor pelo realismo simultâneo das imagens, não só de um mundo onírico, mas também concreto, acentuado pelos nomes das ruas e praças onde Piva circulava – praça da República, largo do Arouche, avenida São Luís, rua das Palmeiras – e pelas fotos de Wesley Duque Lee. Piva escreveu como beat da megalópole, intoxicado, em uma dosagem ainda maior do que a dos próprios rebeldes norte-americanos, pelo vanguardismo europeu em seus modos mais radicais. Assim como Allen Ginsberg em Uivo continua o Poeta em Nova York de García Lorca, Piva, em Paranóia, é seguido por Poeta em São Paulo, dele mesmo. O tempo passado entre a publicação de Paulicéia desvairada de Mário e Paranóia é de 41 anos. O mesmo que nos separa, agora, da primeira edição de Piva. Mas os poemas de Mário são de outra era, sobre outra cidade, em outra linguagem, enquanto a poesia de Piva vai, aos poucos, sendo vista como contemporânea. Mudaram ambos: a cidade e os valores literários.

O termo transgressão do comportamento é de Georges Bataille, que, em A literatura e o mal, o distingue da expressão transgressão de idéias. Essa continua valendo. Não usamos as mesmas roupas; não freqüentamos aqueles bares (que nem existem mais); dificilmente reencenaríamos umas tantas confusões. Mas os livros que lemos, as músicas que ouvimos, os filmes e muitas das peças teatrais a que assistimos não perderam atualidade. Nem o melhor do que escrevemos.

Claudio Willer
poeta, autor de Anotações para um apocalipse (editora Massao Ohno), Jardins da provocação (editoras Massao Ohno/Roswitha Kempf) e Volta (editora Iluminuras); é ensaísta e tradutor, tendo organizado e traduzido Lautréamont – Obra completa (editora Iluminuras)

Deixe o seu comentário

TV Cult