Teatro, cerimônia e ritual

Teatro, cerimônia e ritual

As atrizes Emília Rey, Clara Carvalho e Denise Weinberg

Welington Andrade

Interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (mais ou menos fundamentado, mais ou menos livre), é, ao contrário, apreciar de que plural ele é feito”.

Roland Barthes, Crítica e verdade.

A montagem de As criadas, de Jean Genet, pelo Grupo TAPA, que marca o retorno da companhia ao Teatro Aliança Francesa e integra também a série de atividades que a instituição vem promovendo, desde o ano passado, em comemoração às cinco décadas de existência de um edifício teatral que faz parte da história de São Paulo, proporciona uma excelente oportunidade para que o público paulistano possa entrar em contato com uma dramaturgia das mais líricas e intensas da língua francesa. E ainda possibilita a esse mesmo público o exercício de uma fruição teatral muito rara nos palcos da cidade nos dias atuais, porque centrada basicamente no encontro do ator com a palavra.

Embora hoje esteja um tanto quanto esvaziado pela indústria cultural, o anátema Maldito! já se aplicou violentamente, nas décadas de 1950 e de 1960, a Jean Genet (1910-1986), o romancista, poeta e dramaturgo francês que fez da apologia do desejo homossexual e da errância de ladrões, delinquentes e criminosos uma flecha envenenada a ser desferida contra a hipocrisia do mundo contemporâneo, para atingir o alvo da consciência do bem e dilacerar a convicção da virtude.

A maldição sobre Genet começou aos sete meses, idade com que sua mãe o abandonou em um orfanato público. (Ou talvez um pouco antes, quando Camille Genet o registrou como filho de pai desconhecido). E continuou ao longo da adolescência e da juventude, em razão da série de roubos que ele cometeu, responsável por levá-lo constantemente à prisão. Além dos lenços e tapetes pilhados das lojas de departamento que visitava, Genet acabou por se especializar em furtar livros. E um deles – uma edição de luxo da poesia de Paul Verlaine – quase o levou, em 1943, à prisão perpétua, maldição de que foi salvo pelo poeta Jean Cocteau, o primeiro dos muitos intelectuais que vieram a admirar sua obra. Mesmo depois de o presidente Vincent Auriol lhe ter concedido perdão definitivo em 1949, quando já gozava de notoriedade por sua produção literária, o epíteto de maldito continuou a acompanhar Genet, não somente quando os Estados Unidos negaram-lhe em 1965, por “desvio sexual”, o visto de entrada no país (concedido finalmente em duas ocasiões posteriores: em 1968, ano em que o dramaturgo participou de algumas manifestações em Chicago contra a guerra do Vietnã, e, em 1970, em que foi convidado a proferir algumas conferências em solo americano a convite dos Panteras Negras), como também quando seu artigo “Violência e brutalidade”, publicado no Le Monde em 1977, suscitou aguerrida polêmica, pela defesa que ele fazia da atuação do grupo alemão de extrema esquerda “Fraction armée rouge”.

A primeira versão de As criadas foi escrita em 1946, ganhando o texto uma versão definitiva em 1968. A história é de uma simplicidade sombria: as irmãs Clara e Solange trabalham como empregadas na casa de uma rica mulher por quem nutrem uma intensa relação de amor e ódio. Entregues a um tortuoso jogo de poder e submissão, ambas traçam um plano para levar o amante de Madame à prisão e assassinar a patroa logo em seguida. Genet buscou inspiração para a trama em duas fontes diversas: na canção Anna la bonne, de Jean Cocteau (que, por sua vez, remete ao belo poema Annabel Lee, de Edgar Allan Poe), cujos elementos narrativos ele aproveita literalmente na peça, e no famoso crime cometido em 1933 pelas irmãs Papin, que assassinaram sua patroa, caso que causou grande comoção na França.

Desse modo, os elementos narrativos de As criadas deixam-se contaminar, como um baixo-contínuo, por uma atmosfera noir – própria das histórias veiculadas pela revista Détective, da qual Genet (assim como sua personagem Clara) era assíduo leitor. Mas a grande qualidade do texto é ultrapassar o registro da crônica policial e invadir os domínios de uma discussão filosófica e estética das mais refinadas. A loquacidade das irmãs, que lhes serve de método para atingir a lucidez de suas formulações – implícita nos próprios nomes das protagonistas: Claire, lúcida, e Solange, solar –, constitui uma poderosa ferramenta de afirmação da perversidade do homem. O ser humano, para Genet, é atraído por uma força primordial, inominada e incontrolável que o arrasta inexplicavelmente em direção às zonas mais soturnas e lúgubres da alma humana, como bem sabem as personagens de Poe, pedra fundamental de As criadas, conforme já visto, e marco zero de boa parte da literatura moderna que discute a existência e a natureza do mal.

Desse modo, as mesmas palavras que Charles Baudelaire dedicou à obra do autor dos contos de terror, mistério e morte que se tornaram clássicos também se prestam a escrutar a potência filosófica advinda da literatura de Genet: “Tal força primitiva, irresistível, é a Perversidade natural que faz com que o homem seja o tempo todo e ao mesmo tempo homicida e suicida, criminoso e carrasco; pois, ele [Poe] acrescenta com sutileza notavelmente satânica, a impossibilidade de encontrar um motivo razoável para certas ações más e perigosas poderia nos levar a considerá-las como sugestão do Demônio se a experiência e a história não nos ensinassem que Deus costuma desestabilizar a ordem e negligenciar o castigo aos faltosos; após ter se valido dos mesmos faltosos como cúmplices…”.

Paralelamente à tal sondagem, As criadas também aponta para a manifestação de uma sutil metateatralidade, de tipo pirandelliano. Quando estão sozinhas, Claire e Solange assumem um intrincado jogo de representação – em que se alternam nos papéis de vítima e algoz – com vista a aniquilar, simbolicamente, Madame e a ensaiar ao mesmo tempo o ato brutal que estão em vias de cometer. O texto, assim, dá inúmeras pistas de se tratar de “teatro dentro do teatro”, implícitas em falas, objetos cênicos e marcações. (Vale lembrar que o binômio criminalidade-metateatralidade presente em As criadas inspirou, dentre outras fontes, um raríssimo espécime de teatro do absurdo no Brasil: a peça Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, montada com sucesso em 1968 por Maria Della Costa e que conferiu a Antonio Bivar o prêmio Molière de dramaturgia daquele ano).

A grande qualidade da encenação ora em cartaz é o investimento que o diretor Eduardo Tolentino de Araújo faz na relação do ator com a palavra, dispensando outras mediações que não estejam circunscritas a este exercício. Clara Carvalho (Clara), Denise Weinberg (Solange) e Emilia Rey (Madame) imprimem a suas interpretações o tom de um naturalismo norteador, mas não absoluto, deixando que o texto de Genet apresente por si só seu bem urdido quebra-cabeça de recorrências simbólicas. A opção engendra certo risco de mornidão, mas garante uma recepção, por parte do espectador, bem mais autônoma, porque não calcada justamente naquele tipo de efervescência cênica que vem colonizando a sensibilidade das plateias mundo afora. Parece residir aí a origem das pechas de “teatrão” ou “teatro burocrático” ou ainda “teatro comercial” que às vezes recaem sobre o grupo TAPA, tão injustamente. Afinal, a uma companhia de cujo repertório, há trinta e cinco anos, fazem parte criações dramatúrgicas de excelentes autores, encenadas por uma equipe de diretores, atores, cenógrafos, figurinistas e iluminadores (para ficar nas funções mais usuais) aos quais não faltam sensibilidade e inteligência não cabe somente fazer bom teatro. É preciso também deter uma estética “transgressora” e causar frisson com ela.

A direção de Eduardo Tolentino de Araújo em As criadas vai na contramão da identificação de sentidos e significações – seja no texto, seja na encenação – muito fechados, que possam orientar o espectador rumo a um centro de gravidade semântica. Desse modo à performance das atrizes cabe o papel de indicar a pluralidade das interpretações passíveis de serem exaladas quer do texto, quer da cena. Há três excelentes intérpretes no palco. Clara Carvalho e Denise Weinberg revestem seus corpos e vozes de uma emoção muito bem conduzida, alternando os registros entre o patético e o lírico. Não se pode afirmar que a interpretação de ambas seja essencialmente naturalista, uma vez que o projeto da montagem não aponta para o aspecto psicológico, ou hiperpsicológico, pelo qual o tratamento ilusionista da fábula poderia se deixar impregnar. A intensidade emocional das atrizes que defendem a dupla de irmãs, assim, é essencialmente teatral. Da mesma teatralidade, aliás, se serve Emilia Rey para compor sua Madame, uma criação luminosamente lúdica, salpicada com as tintas de um humor à inglesa, entre o frívolo e o irônico.

É a partir do uso desses significantes teatrais (palavra, corpo, voz…) – de que os atores do TAPA costumam se servir tão bem – e não da posse de significados “extracênicos” que o espectador será convidado a usufruir o jogo de inquirições éticas e metafísicas proposto pelo belíssimo texto de Jean Genet, salvas aquelas inquirições de serem respondidas apressadamente em razão da atmosfera metalinguística que subjaz a tudo.

As criadas é um espetáculo que, entre inúmeras qualidades, nos convida a resistir a muitas falácias. A da falência das fábulas. A da onipotência dos significados. A da obsolescência de qualquer teatro que não seja experimental e anticomercial. E por fim, especialmente em virtude dos dramáticos acontecimentos que envolveram a cultura francesa em tempos tão recentes, a de que toda iconoclastia deve ser barbaramente aniquilada. Fosse assim, o outrora maldito poeta do submundo não estaria hoje mais vivo do que nunca.  Transfigurando metáforas muito elaboradas de submissão e dominação em expressões de irrestrita liberdade artística, afinal.

As criadas
Onde: Teatro Aliança Francesa, Rua General Jardim, 182 – Vila Buarque
Quando: 16/01 até 15/03 (Quinta à Sábado às 20h30 e Domingo 19h)
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia)
Info: www.teatroaliancafrancesa.com.br

 

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