Inédito – O triplo desafio

Inédito – O triplo desafio

Leia abaixo um trecho de “O triplo desafio”, inédito de Bauman escrito em maio de 2009

Semelhante à ideia da Santíssima Trindade, presente nas sagradas Escrituras, há um triplo desafio que a humanidade enfrenta atualmente e que, dependendo de suas respostas, pode levar a moldar o futuro do planeta. Triplo desafio ou ainda três num único (“três em um” ou “os três como um só”). O desafio atual é composto de três partes: o interregno, a incerteza e a disparidade institucional, mas cada parte remete às outras duas, que são inseparáveis.

Interregno

Algures no final dos anos 1920 e 1930, no início do século passado, Antonio Gramsci escreveu em uma das muitas anotações por ele feitas durante o seu longo encarceramento na prisão de Turi: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.

O termo “interregno” foi originalmente usado para designar um hiato de tempo que separa o falecimento de um monarca soberano e a entronização do seu sucessor: esses períodos eram utilizados como as principais ocasiões em que as gerações passadas experimentavam (e costumeiramente esperavam) uma ruptura naquela monótona forma de continuidade do governo, da lei e da ordem social. O direito romano colocou um carimbo oficial sobre essa compreensão do termo (e seu significado) quando proclamou o interregno justitium, que é (como Giorgio Agamben nos lembrou em seu estudo de 2003, Lo Stato di eccezione) reconhecidamente uma suspensão temporária das leis e todas as normas existentes (presumivelmente na expectativa de leis novas e diferentes serem eventualmente proclamadas). Gramsci amplia, no entanto, o conceito de “interregno” com um novo significado, abrangendo o mais amplo espectro de aspectos sociopolítico-jurídicos da ordem e, simultaneamente, atingindo mais profundamente a condição sociocultural. Ou melhor (lembrando a memorável definição de Lenin de “situação revolucionária” como uma condição em que os governantes já não têm mais poder e o Estado não mais deseja ser governado por eles), Gramsci liberta a ideia de “interregno” de sua habitual associação com intervalo de (uma rotina de) transmissão hereditária ou poder elegível e a anexa a situações extraordinárias em que o quadro jurídico existente de uma ordem social perde a sua aderência e já não pode se impor, enquanto um novo quadro, feito à medida das forças recém-emergidas que geram as condições responsáveis por tornar o antigo quadro inútil, ainda está na fase concepção, ainda não foi completamente montado ou não é suficientemente forte para ser colocado em seu lugar.

Eu proponho, seguindo a sugestão recente de Keith Tester [professor de sociologia da cultura da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra], reconhecer a atual condição planetária como um caso de interregno. Com efeito, tal como o postulado de Gramsci, “o velho está morrendo”. A velha ordem fundada até recentemente, em uma forma semelhante “triuno”, princípio do território, Estado e nação, como chave para a distribuição planetária da soberania e do poder, este aparentemente sempre devotado à política territorial do Estado-nação como a sua única agência operacional, está, agora, por morrer. A soberania não é mais colada a qualquer dos elementos do princípio “triuno” e suas entidades derivadas; na dimensão macro é vinculada a elas, mas vagamente e em porções muito reduzidas em tamanho e conteúdo. O casamento supostamente inquebrável de poder e política está, por outro lado, terminando em separação, com uma perspectiva de divórcio.

Soberania é hoje, por assim dizer, desancorada e livre-flutuante. Os critérios da sua atribuição tendem a ser calorosamente contestados, enquanto a sequência usual do princípio da repartição e sua aplicação está, em um grande número de casos, invertida (isto é, este princípio tende a ser retrospectivamente articulado na sequência da decisão atribuída, ou inferido da decisão já realizada, a partir do estado de coisas). Estados-nação partilham trajetos conflituosos realmente irascíveis, ou fingem aspirá-los, mas sempre com uma disciplina extremamente competitiva, com as instituições escapando com êxito da aplicação do antigamente obrigatório princípio triuno da repartição, e, muitas vezes, ignorando explicitamente ou sub-repticiamente solapando, prejudicando seus objetivos designados. Certamente o aumento do número de concorrentes pela soberania, mesmo que não isoladamente, mas certamente de forma solidária, equivale à potência média de um Estado-nação (multinacionais financeiras, industriais e empresas comerciais contam agora, de acordo com John Gray [professor da London School of Economy, colaborador do jornal The Guardian], com “cerca de um terço da produção mundial e dois terços do comércio mundial”). Soberania, esse direito de decidir as leis, bem como exceções à sua aplicação, bem como o poder de tornar as duas decisões vinculativas e eficazes, é para um determinado território e num determinado aspecto da vida, fixada dispersamente em uma multiplicidade de centros – e por essa razão é eminentemente questionável e contestável, enquanto nenhuma decisão tomada por alguma agência consegue ter fundamento plenamente soberano (isto é, sem constrangimento, indivisível, não compartilhado), para não falar da alegação de credibilidade e eficácia.

(2) Comentários

  1. Disse tudo…(kkk)
    Tá .o capra já dizia algo assim no ponto de Mutação(1980) e daí,dela PRA CÁ SÓ MUDAMOS O PARADIGMA DA SUSTENTABILIDADE e deum jeito que os ecologistas tão até agora em busca de uma definição(politica e semantica)deste concejt.Gramsi lembra hegemonia e a esquerda (pelo menos a latina)não pode se queixar da última década…Bom tá aí a Somália a nos cutucar -a fome não é virtual é real e fisiológica e a escassez é antropológica.

  2. Excelente ideia do Gramsci, trabalhada por Bauman. Pena que a elite intelectual brasileira torce o nariz para o simpático e sábio velhilho polonês.

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