arquivo Cult | A cosmopista do risco

arquivo Cult | A cosmopista do risco

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Por razões canônicas, ou por passageiras modas acadêmicas, há textos que suscitam análises solenes ou próximas demais a esquemas individuais e que se adequam a manobras teórico-ideológicas (provisórias, certamente) que carregam sua própria versão da verdade. Lidos em outra sintonia, esses mesmos textos podem incitar ao diálogo aberto, franco e incondicional; principalmente quando pertencem a autores que apostaram em outra leitura e em outra definição da literatura e de seu mundo. Dentre aqueles que estenderam pontes, fomentaram seu trânsito e formalizaram a cumplicidade do leitor encontra-se Cortázar.

 

O tom que reconheceríamos como sua marca instalou na prática literária a sutil desculpa do primeiro Borges e o fez já não por circunstâncias fortuitas, e sim assumindo a responsabilidade por todo ato, pela leitura e por aquilo que desliza a partir das bordas do livro. A partir dessa perspectiva e, em diferentes instâncias de seu posicionamento ideológico, podemos ler, dentre outros, “Continuidad de los parques” e “Las babas del diablo”.

 

Dada a generosidade do desafio e a aventura que sempre se insinua no quintal de uma casa, pelo corredor de algum ministério ou pelo corredor de um ônibus, pelo respaldar de um assento ou pela mão sedutora num corrimão, no convés de um barco ou no voluntário recolhimento de um apartamento parisiense, não é casual o diálogo desejoso de que nos apropriamos ao ingressar na obra de Cortázar. O pacto que se torna vigente ao abordar seus textos se reveste de um ar de sedutora intimidade, de aposta no possível, de confiança com sinais de alerta, de fé no sentido próprio dessas dimensões que não se conseguem vislumbrar, mas que sempre estão por perto do desejo. Percebemos isso na séria leveza humorística de seus cronópios e famas e na ocasional conduta de Lucas; no escândalo e no terror de contos que vão de “Casa tomada” a “No se culpe a nadie”, “Satarsa” e “Pesadillas”; no inquietante enquadramento poético das histórias que organizam “Reunión” e “Apocalipsis de Solentiname”; na busca de algum sistema para que algo ou alguém diga “Las babas del diablo”; nas intermináveis investigações do Clube da Serpente e nas apostas de todos os seus perseguidores para achar alguma coisa mais vivencial que a submissão ao cotidiano, algo mais que a alternativa entre a entrega e a loucura; não tão simplesmente e, para sempre, algo mais.

 

A 40 anos de sua morte, perdura o perfil de um rebelde com causa que em sua época frequentou a tímida poesia e o raro drama junto à tradução e à docência, o culto de letras inglesas e francesas, a reflexão sobre o existencialismo e o regozijo perante o surrealismo, as páginas de Realidad e o clima de Sur, os ícones peronistas e a saída para o que só sob a ditadura dos anos 70 perceberia como exílio. Talvez mais do que com qualquer outro intelectual latino-americano de nossos dias, em Cortázar se entrelaçam carinho, convicção e ternura, admiração por sua retidão ética, pelo compromisso e pela solidariedade – palavras que se tingiram de nostalgia e cinismo no desmembramento das comunidades. Uma leitura de sua variada dimensão literária atravessa a inocente carícia carregada de erotismo, o encontro dos corpos e o amor em glíglico (balbucio), o sonho de revanche do boxeador caído e a dúvida entre as cordas e a mancha no asfalto, a denúncia dos assassinos e a segurança do burocrata, a exaltação do indivíduo e a recuperação do abandonado por um longínquo erro da espécie. E ao longo das décadas, de amores e travessias, sempre a busca de alternativas, de outro modo de dizer e de escrever; o que é também outro modo de ser.

 

Nesse sentido, logo após as comemorações do primeiro centenário do nascimento de Borges [ocorridas em 1999], prefiro evitar a tão citada circunstância de ter sido Borges quem publicou o primeiro conto de Cortázar (“Casa tomada”) e sua valiosa apreciação, para recuperar, em compensação, “El escritor argentino y la tradición”. No contexto dos debates sobre nacionalismo e representação, sobre o simulacro de verossimilhança do realismo folclórico e a construção da nação, assim como sobre o lugar da Argentina perante as tradições literárias e as guerras européias, surgia a pergunta: “Qual é a tradição argentina?”. Dada a peculiaridade do país e a de sua própria herança cultural, Borges propunha uma resposta perdurável: “Acredito que nossa tradição é toda a cultura ocidental, e acredito também que temos direito a essa tradição, mais do que podem ter os habitantes de uma ou outra nação ocidental.” Sugere “que não devemos temer e que devemos pensar que nosso patrimônio é o universo; lançar mão de todos os temas, e não podemos limitar-nos ao argentino para sermos argentinos: porque o ser argentino é uma fatalidade e nesse caso o seremos de qualquer modo, o ser argentino é uma mera afetação, uma máscara”. Em suas considerações, Borges passa rapidamente de “ocidente” a “universo”, “outra forma de nomear Biblioteca”, e cifra, generosamente, o escritor argentino como herdeiro e inovador das letras que mereceu receber.

 

À fórmula de Borges, Cortázar haveria de incorporar livremente certa presença oriental através de sua fascinação com a mandala, o satori e o salto desde e em direção ao ser. Por outro lado, esse debate já antigo “cuja sombra ainda se projeta ocasionalmente pelo aparato cultural” também aflorou em Cortázar; primeiro, sistematicamente em sua reflexão sobre as estratégias do conto e, depois, quando, em virtude da publicação de Fantomas e seus possíveis alcances populares, volta a narrar a reação dos gauchos argentinos diante de “La pata de mono”, de W.W. Jacobs, em contraposição ao alimento que lhes prodigavam os folcloristas.

 

O interesse por essas precisões adquiriria, particularmente nos e a partir dos anos 60, uma dimensão continental. Hoje, esta se vê diluída na cada vez mais difusa nomenclatura de “o latino”/”o hispânico” nas terras globalizadas do norte, enquanto, diante de crescente migração interna, perdura e se acentua com claras expressões racistas e xenófobas no discurso nacionalista e regional. Sem recair no que já foi estudado em outro lugar, cabe assinalar que, ao cruzar o oceano e ao participar da promessa que significou a Revolução Cubana, Cortázar se redefiniu: sem deixar de ser o que sempre foi (essa fatalidade de ser argentino), assumiu seu latino-americanismo e atuou conforme suas exigências em diversos cenários da América violentada. Em anos recentes, em que a construção das identidades se tornou um lugar-comum de setores acadêmicos que pugnam por instalar seu discurso como alternativa ao que percebem como ameaça à figura individual e aos interesses agregados de multíplices minorias, esse modo que Cortázar teve de pensar-se em função da história mais próxima e de comprometer-se com ela sugere algo mais que a conduta poltronesca daqueles que, por razões de idade, conveniência ou cinismo, perderam a revolução.

 

Essa atitude também impõe sua própria reflexão sobre o manuseio da língua, esse outro instrumento para possuir e definir a realidade. Para Cortázar, cuidar da língua era recriá-la, passá-la pela peneira do cemitério – assim definiu algum dia o Dicionário da Real Academia Espanhola – para dar-lhe vida, ritmo de rua e de sentidos, regozijo e sóbria precisão, a generosa sabedoria de uma identidade que se reconhece nos caminhos compartilhados. Hoje, quando tantos latino-americanos nos EUA entregam-se, rendendo idioma e definição de ser, ao reconhecimento de um público que saboreia outros sons ou – o que acaba sendo mais mesquinho, embora dê a medida de seus praticantes – ao escasso renome da academia (e já não só à estadunidense, mas também às que se querem suas filiais), percebo nesse castelhano mantido nas décadas parisienses uma moral que teria colhido outra epígrafe para Rayuela ( O jogo da amarelinha) – à la César Bruto, claro. E esclareço que não falo de opções vitais nem de integração à cultura francesa, como fez magistralmente Héctor Bianciotti, mas da hipocrisia de rebeldes de sala de aula que, para aceitar suas próprias origens, apelam a prestigiados índios da Índia, a asiáticos que compreendem sua própria cultura e, assim, do mesmo modo que no século XVI, seguem confundindo a cartografia de etnias, culturas e letras.

 

Se, com “El perseguidor”, Cortázar passou do “eu” ao “nós”, com “Reunión” antecipou o que já seria parte integrante de sua obra crítica: a reflexão a partir do lado não-doutrinário da simpatia a favor do socialismo. Adotou, igualmente, a defesa dos direitos humanos que o levaria a participar no Tribunal Russel sobre o Chile, a intervir nas multíplices mesas redondas geradas pelo clima desses anos e a escrever uma série de textos posteriormente publicados em vários livros sobre a Argentina e a Nicarágua.

 

Embora alguns de seus leitores de primeira hora tenham se surpreendido diante da virada política de Cortázar, nem seu interesse pelos direitos humanos nem sua dedicação para enfrentar, a partir da cultura, as ditaduras do Cone Sul e a Nicarágua de Somoza foram surpreendentes. A semente de suas preocupações e a ética que erigiu sua obra acham-se ainda em seus contos fantásticos de juventude. Por outro lado, embora sempre tenha se negado a produzir uma literatura de tese ou a responder aos requerimentos de uma literatura política por encomenda, sim, foi notória a mudança de perspectiva e ênfase nos ensaios que escrevera nos anos 40 e 50 diante dos publicados a partir dos 60.

 

Seus primeiros textos apontaram para uma zona na qual as categorias deviam ser matizadas, onde o alternativo ainda era o prédio do multíplice e do simultâneo. Para abordar o mundo sugerido por seus textos, entra-se pela fissura, pelo espaço que navega por entre as letras, pela dúvida sistemática, pelo interrogante que suspende toda certeza para lançar possibilidades e aberturas. Instalados em sua dimensão, caberia esperar que a qualquer momento se pudesse oscilar entre a queda e o impulso em direção a outro salto; entre renunciar a uma escassa segurança de uma ordem que ia se despedaçando e atravessar uma ponte ou uma galeria ou um oceano (ou apenas sair/ se do porto) para acariciar outro perfume, degustar o sabor de outra pele, ouvir a música das esferas. Para Cortázar e para aqueles que aceitam ser seus cúmplices, a literatura é risco, é enfrentamento e procura; aposta e modo de vida tão irrenunciáveis como a força de eros, como olhar os outros e reconhecer-se na prática solidária que oferece proximidade, amizade, amor e também, quando a história o exige, a força necessária para opor-se à violência.

 

Ainda amparados por filiações literárias e pela inquietante sombra das tradições que cifra Borges nesses (e todos?) nossos dias – e que incluem não só a exaltação do indivíduo e seu culto à coragem como também a responsabilidade dos homens perante a história –, com Cortázar mudamos de geografia. Cruzaremos ocasionalmente quintais portenhos, margens e exotismos do pouco frequentado ou lugares que são filhos da imaginação, mas, em Cortázar, também acharemos o descobrimento da gozosa cartografia do desejo, o redescobrimento do eros combatente. De forma apertada e muito próxima (como possivelmente corresponda enunciá-lo), trata-se de conjugar o corpo como lugar de encontro, de outorgar-lhe um pródigo tempo e espaço sobre-a-terra diante do repressor corpo-para-terra; trata-se de aceitar, a partir da intimidade do gozo, da harmonia, do eu-você, que é na pele mais profunda que se inicia o que chegará a ser (ou não) a liberação de todas as forças e de todo sistema.

 

Talvez nessa ênfase que Cortázar adjudicou a eros e ao jogo (ao jogo/ fogo de eros) também se encontre a origem da independência à qual jamais renunciou, mesmo em instâncias em que tantos outros, rendidos a ordens, partidos e fórmulas, exigiam dele a partir das bases do compromisso. Além da dimensão justiceira das verdadeiras revoluções e das lutas que reivindicam os direitos humanos, essas carregam uma carga erótica e múltipla, própria de toda liberação. Não é casual a conjunção que define os anos 60 em que, à reivindicação política, somou-se – como parte do clima, mas sem que fosse possível sua integração – a tríade sexo-rock-drogas. O massivo pode ser irredutível quando se trata de movimentos de liberação política; não o é menos o recorte do desenho mais demarcado dos corpos, desse eu-você, quando se situam em outro cenário.

 

“Historizando”, diríamos que Cortázar foi um homem dos anos 60 que aceitou sua incipiente versão dos 40 e 50, assim como depois respondeu à ferocidade dos 70 para aportar, a partir dali, nas promessas dos 80 e a uma compreensão mais lúcida dessas épocas. Historizando, nós o vemos a partir deste final de século não só como companheiro de rota – assim o tacharam alguns a partir de suas próprias distâncias, esquecendo o valor de tal companhia –, mas como forjador (o termo não é excessivo) das letras que interpretam nossos compartilhados tempos.

 

Os clássicos não são somente os livros nos quais um povo lê e interpreta seus desígnios (matizando a versão de Borges), mas também os que na mais humana cotidianidade da história literária são compreendidos como divisores de águas. Já que não nos é dada a profecia e, portanto, ignoramos como se lerá ao completar-se o centenário de sua publicação, aceitemos que para nossos dias a importância de Rayuela é suficiente para marcar um antes e um depois na literatura latino-americana. Pela dinâmica e pelo espírito das jornadas que acompanharam sua publicação, Rayuela não está sozinho (o solitário jogo individual ainda se goza mais quando vem acompanhado); integra um núcleo seleto de romances que, despreocupadamente, aguarda sua superação, deslocação, substituição – modos substantivos para designar as esperançadas escaramuças de alguns cônegos de claustro. Sem sentimentalismo nem cega exaltação de uma época, o fato é que foram dias de experimentação e de ruptura (também no literário) e que, pouquíssimos anos depois de terem ocorrido, foram reconhecidos como transformadores da história. E, com certa nostalgia, cabe recordar dias em que a ênfase na primeira pessoa do best seller de um quilômetro quadrado de metrópole não merecia o interesse de todos os leitores, em que o minimalista não era o oposto ao épico e em que a história não era desvelar os namoricos de caudilhos decimonônicos (relativo ao século 19). Talvez, então, tenha-se vivido dias menos egoístas por sentir que a palavra e aqueles que a enunciavam eram responsáveis por algo mais além do que seu lugar em uma página diária e o comentário dos suplementos; talvez porque a promessa de outras alternativas estivesse na rua ou porque nós, os leitores, tivéssemos achado vozes e interlocutores que soubessem abrir a porta para ir jogar e para antecipar que outras ordens jaziam atrás da “gran des/orden”. Talvez também porque nos ensinaram que nem todas as viagens são a viagem; que a sua não era uma metáfora atualizada do intelectual à procura das musas europeias para regressar iluminado para suas terras. Essa ronda – voluntária, como no caso de Cortázar; o produto de exílios, em tantos outros – anunciava um modo mais abrangente e generoso de ver o mundo. Como toda saída ao mundo, essa foi propícia para dialogar com outras vozes e outras culturas – e mais ainda: para ouvir a própria voz – para que, enriquecida por outras culturas e outras visões, voltasse a enunciar novos matizes e soma do próprio. Sempre foi possível narrar o universo falando da aldeia, mas foi igualmente necessário sair da aldeia para conhecer seu lugar no mundo e a partir dali iniciar o conhecimento das origens e de seus possíveis futuros.

 

Termos definidores como “fantástico”, “realista”, “material”, “espiritual” fixam limites em seu próprio enquadramento e, portanto, acusam sua própria insuficiência para dar conta de tudo aquilo que excede os fichários – em sua época o descobriram, e praticaram, os seguidores da classificação de Todorov em torno da literatura fantástica e, mais recentemente, aqueles que fixam o romance histórico. Do outro lado do afã classificatório, cuja meta é, precisamente, definir uma medida de comodidade didática, tudo tem nome e, ocasionalmente, até o que merece. Tudo e, especialmente os jogos, como tantas vezes nos recordou Cortázar, responde a regras; é por isso que, para quem as reconhece, essas mesmas incitam a seu abandono e transformação quando mais não seja para estabelecer outras versões desses mesmos modos de viver e gozar e entender e voltar sobre a vida. Há, além disso, uma constante no impulso por sair do normativo. Não é uma simples reação contra o certificado de boa conduta e as convenções; tampouco um gesto anárquico ou de repúdio gratuito. Provém, acredito, de uma relação que, ainda que tacitamente, articula conhecimento e poder; saber e desenvolvimento humano. Não me refiro, certamente, às fórmulas de organismos preocupados pela iniquidade e a marginalização – embora isso também lhes incumbe e subjaze a certos enunciados na obra de Cortázar –, e sim a essa sensação mais profunda de fraude que está na busca de Johnny Carter, de Persio e de Medrano, de Horacio Oliveira e daqueles que redigem O livro para Manuel inserindo a documentação jornalística na vontade literária, para citar somente os personagens mais notórios. Se no princípio foi uma percepção ontológica que ecoou em suas já citadas reflexões sobre o existencialismo e o surrealismo, a isso se somou posteriormente o reconhecimento da história que estava se desenvolvendo na América Latina. Ambas instâncias, no entanto, sob o domínio de uma ética participativa e comprometida com o trânsito do homem pela terra e pela história. No mais explicitamente literário manifestou-se, por exemplo, através de já incipientes epígrafes como as que regem Rayuela; no político, por gestos como a doação dos direitos autorais às famílias de presos políticos, na interpretação do exílio como estratégia para recuperar valores e aprender a ser menos insular ao enfrentar o legado de nossas compartilhadas ditaduras, nas esgotantes jornadas de solidariedade que manteve até seus últimos dias. E isso sem abandonar seu conhecido interesse pelos jogos, pela variante plástica da felicidade que conheceu Julio Silva, pela música – do jazz e do clássico ao tango e a seu memorável Trottoirs de Buenos Aires – tudo aquilo que fazia a seus outros segmentos de vida, enquanto também relia Rodolfo Walsh e Felisberto como chave de sobrevivência e de simpatia e escrevia contos, poemas, sonhos.

 

Tenho consciência da dificuldade que encontro em escrever sobre Cortázar, pessoa e textos, sem colocar em jogo algo mais que o exercício da crítica. O distanciamento e o sentido de estranheza podem ser produtivos, e até obrigatórios, quando, com presumida objetividade, o compromisso e a paixão são relegados pela disciplina acadêmica. Nesse caso me permito acreditar que nem sempre é, nem deve ser, assim e que o juízo de valor e a encenação do desejo e do corpo também têm (devem ter) seu lugar no sistema. Não penso em “estados de alma”, mas sim no que suscita a reflexão sobre uma figura que marcou nossos tempos e que, além disso, antecipou alguns dos recortes de imprensa hoje multiplicados ciberneticamente.

 

Penso nesse latino-americanismo solidário com o qual Cortázar e outros intelectuais de seus tempos europeus apostaram, num sentido de justiça globalizada, vários quinquênios antes que o juiz espanhol Baltazar Garzón devolvesse a esperança de que serão submetidos a ela aqueles que a violaram impunemente durante o exercício do terror de estado. Penso no repúdio ao nacionalismo literário vulgar com que se impugnou o que não deixava de ser insultante para os setores menos ilustrados nas tradições culturais metropolitanas. Penso naqueles que não precisaram ser brasileiros, chilenos, uruguaios, bolivianos ou paraguaios, para constituir, em 1974-1975, o Tribunal Russel II para investigar a situação imperante nesses países, como tampouco foi, nem é, necessário ser argentino para exercer a justiça por crimes contra a humanidade. Não há nessa atitude repúdio de lar, nem de nação, nem de fidelidade a línguas e culturas de fundação; há, sim, um compromisso maior com o ser humano, com a debilidade de sua existência e com a promessa de seus logros, com aquilo que unifica através das diferenças e do culto à diversidade e à heterogeneidade cultural. Talvez por isso Cortázar tenha apostado tanto na infância e nos jogos, em momentos em que tudo é possível, em que nada é inevitável. Talvez porque ele próprio foi um nexo entre culturas, como o demonstram seus estudos de Keats e de Poe, só para citar dois autores que o ocuparam durante anos, ou as traduções de André Gide e Marguerite Yourcenar, dentre outros e, muito especialmente, como o confirmou sua parisiense vida latino-americana (e claro, argentina) sempre ávida de universo e de calor humano. Talvez porque, como também o soube o autor de “El jardin de los senderos que se bifurcan”, Cortázar sempre escreveu, fundamentalmente, na clave da origem, do leitor cúmplice numa aventura que nem começa nem acaba numa jornada de cosmopista, nem na escritura compartilhada.

 

Última (por hoje) compartilhada alusão: do mesmo modo que com Borges, a obra de Cortázar continua crescendo com a edição de livros que permaneceram inéditos. Cada um deles aponta para uma procura constante de limites literários e, em outro sentido, para mais que isso. A anunciada publicação de sua correspondência certamente será motivo de curiosidade e interesse. Suspeito, no entanto, que sua leitura tornará mais difícil dissociar texto e textura, porque nessas cartas veremos o que, graças à sua leitura, já sabíamos há muito tempo. Cortázar foi algo pouco frequente na história das letras americanas: necessário.

Texto publicado originalmente na Cult 39, de outubro de 2000.

Saúl Sosnowski é professor de Literatura e Cultura Latino-Americana na Universidade de Maryland, College Park. Entre suas publicações recentes, encontram-se: Rugido que toda palabra encubre (2017, poesía) e os romances Decir Berlín, decir Buenos Aires (2020) e El país que ahora llamaban suyo (2021).

Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro: tradutora de Os sete loucos, Os lança-chamas e Viagem terrível, de Roberto Arlt, Iluminuras.

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