Caio Prado Jr.: Um intelectual entre a academia e a revolução

Caio Prado Jr.: Um intelectual entre a academia e a revolução

 

Historiador, geógrafo, filósofo, escritor, político, militante e editor. Entre as diversas funções assumidas por Caio Prado Júnior ao longo de sua vida, um traço de sua personalidade fica bem delineado: a conciliação da teoria com a prática em seu desejo de entender (e mudar) o Brasil. Nascido em 11 de fevereiro de 1907 em São Paulo, filho da família Silvia Prado, uma das mais poderosas da cidade, Caio iniciou seus estudos com uma formação em direito pela USP, em 1928.

Logo em seguida, com seu ingresso no Partido Comunista Brasileiro, em 1932, e a subsequente publicação de seu primeiro livro, Evolução política do Brasil (1933), Caio Prado iniciou, ainda aos 26 anos, uma trajetória como um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Professor de história da Universidade Federal de Goiás (UFG), João Alberto da Costa Pinto relata que, ao conversar com alguns parentes de Caio Prado percebeu como ele havia sido hostilizado pela família e pelos amigos ao ingressar no Partido Comunista Brasieliro, o que não representaria, na visão de Costa Pinto, uma ruptura de classe, como se convencionou classificar o episódio.

Para o professor de ciência política da FFLCH-USP Bernardo Ricupero, “a recepção de Evolução política do Brasil, num momento de renovação do país e de seu pensamento, acentua a inovação representada pela utilização do marxismo para entender o Brasil”. No entanto, é com seu próximo livro, Formação do Brasil contemporâneo (1942), que Caio Prado consolida-se como um dos grandes intérpretes do Brasil, ao mesmo tempo em que se distanciava do PCB pelas teses que defendia.

Apesar de nunca ter saído do partido ou criado cisões com seus integrantes, e ser um de seus importantes financiadores, Caio Prado Jr. nunca ocupou cargos importantes no PCB devido a dissonâncias teóricas. “O PCB defendia determinadas teses que eram encampadas principalmente pelo Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré, pensando em intelectuais da época. Agora, as teses que Caio defendia são muito diferentes”, aponta o professor de história da FFLCH-USP Luiz Bernardo Pericás, autor de Caio Prado Júnior: uma biografia política (2016).

O historiador paulista, que morreu aos 83 anos em 23 de novembro de 1990, destoava do PCB principalmente em dois pontos: refutou a ideia de que existiam reminiscências feudais no Brasil e negou a hipótese de uma revolução burguesa, principalmente após observar o papel submisso desse grupo durante e depois da ditadura militar, como afirma Luiz Bernardo Pericás.

Um marxista nos trópicos

Apesar de no PCB, fundado em 1922, já existirem alguns intelectuais tentando utilizar o marxismo para analisar o Brasil, essas interpretações, no geral, aplicavam de forma mecânica as formulações da Internacional Comunista (IC), na opinião de Ricupero. “Caio Prado Jr., em contraste, entende o marxismo como um método de interpretação e transformação da realidade. Dessa maneira, destaca tanto a singularidade da história brasileira com sua ligação com o capitalismo internacional. Mantém muitos dos temas e até a linguagem comunista, mas indica, a partir do método marxista, uma interpretação do Brasil original e diferente da do PCB”, explica.

Devido a essas diferenças, as obras de Caio Prado não eram publicadas pelo partido, o que o fazia recorrer aos seus próprios recursos. Dono de uma gráfica, ele fundou em 1942, juntamente com Monteiro Lobato e Arthur Neves, a Editora Brasiliense, que publicaria entre 1956 e 1964 a Revista Brasiliense, importante canal para a veiculação de textos de comunistas que não tinham tanto destaque dentro do PCB naquele momento.

“Ele podia, então, difundir as ideias dele independente da máquina do partido, mas sempre que o fazia era visto como defensor de teses nacionalistas, como um burguês, um aristocrata, ou um elemento das elites, que ele realmente era em termos de origem de classe”, diz Pericás.

O historiador paulista foi uma importante figura política de sua época. Foi presidente, em 1935, da Aliança Nacional Libertadora (ANL) de São Paulo; deputado estadual, em 1945, pelo PCB; deputado da Assembleia Nacional Constituinte em 1948; participou ativamente do movimento de solidariedade a Cuba e à Revolução Cubana; foi presidente da Comitiva Brasileira em Cuba, em viagem que fez no final de 1961. E foi, devido ao seu posicionamento político indissociável de sua teoria, diversas vezes preso e perseguido.

Segundo Luiz Bernardo Pericás, para quem Caio Prado Jr. talvez seja o maior historiador brasileiro do século 20, ele foi pioneiro e inovador ao retornar às raízes da colonização brasileira para entender as relações, processos, estruturas sociais, econômicas e políticas que vão operar na composição e na transformação da sociedade brasileira.

“Ele vai ver o Brasil como um local que, desde os primórdios, está inserido em uma lógica do mercado internacional. E depois inserido na lógica do imperialismo, na qual os desígnios externos são vinculados a elementos de poder político e econômico interno. Elementos que vão permitir a subsistência de uma dinâmica que vai se reproduzir historicamente e que, apesar de todas as recorrentes mudanças, rupturas e expansões, vai deixar inalterada, em boa medida, os traços básicos dessas relações sociais”, explica Pericás.

A subordinação dos setores menos privilegiados da sociedade brasileira, por exemplo, é um elemento resultante desse processo que Caio Prado critica e tenta mudar. Ao criticar diversos traços constituintes do Brasil, como a concentração de terras, a livre iniciativa privada e o autoritarismo, o intelectual procurava superar o passado colonial da nação. Única forma, em sua perspectiva, do país abandonar sua condição periférica no concerto mundial.

Ao analisar a evolução do país como cíclica, permeada por fases sucessivas de progresso seguidas de decadência, Caio Prado também percebe essa subordinação a qual o Brasil estaria submetido. Suas perspectivas de luta são, como analisa o professor Pericás, “a constituição de uma estrutura politica democrática e popular, modificação das leis trabalhistas, principalmente no campo e rompimento com o imperialismo. Teses que vão gerar embates dentro do partido e com outros intelectuais, em relação a esse tipo de estrutura agrária, política e jurídica”.

No entanto, para o professor da UFG João Alberto da Costa Pinto, Caio Prado Jr. é o intelectual que teve menos alcance público ao longo das conjunturas de sua trajetória político-institucional. “O suposto marxismo do autor reiterava um projeto político para o país expressivamente nacional-corporativista. Ele consagrou-se pela posição dissidente no interior do PCB e como empresário no ramo editorial, mas, efetivamente, no debate público dos problemas políticos do seu tempo a sua obra e as suas repostas políticas tiveram pouco alcance, ao contrário das complexas e contraditórias trajetórias de Nelson Werneck Sodré e Gilberto Freyre”.

O professor de Goiânia, contrariando as análises historiográficas recorrentes, acredita ainda que nenhum livro de Caio Prado Jr. demonstre uma interpretação historiográfica ou filosófica sustentada na obra de Karl Marx. “Suas obras são um solene mal-entendido com o marxismo. Caio Prado Jr. apresenta ali [em Dialética do conhecimento (1953) e Notas introdutórias à lógica dialética (1959)], uma apologia do stalinismo como termo histórico de uma evolução complexa do marxismo”, afirma.

“Uma viagem pelo Brasil é, muitas vezes, uma incursão pela história de um século e meio para trás”

A frase acima, do autor de Formação do Brasil contemporâneo (1942), mostra bem, na opinião do professor Bernardo Ricupero, a triste atualidade do pensamento pradiano. A importância do agribusiness no país, a grande exploração agrária e as péssimas condições de trabalho que os caracterizam são alguns elementos atuais elencados por Ricupero sobre os quais Caio Prado já debatia. “Mesmo um aspecto da obra de Caio que foi muito criticado, a pouca importância que atribui à industrialização, adquire hoje surpreendente atualidade”.

Partindo de uma perspectiva contrária, João Alberto da Costa acredita que, apesar de ser clássico e fundamental, Caio Prado Jr. não pode ser visto acriticamente como um clássico do marxismo brasileiro, pois se trata de um dos últimos pensadores autoritários do país. “Nesse sentido, ainda é atual para se entender o Brasil, mas sob uma perspectiva contrária ao que diz o senso comum historiográfico: é um autor racista e autoritário”, afirma.

Para Ricupero, no entanto, o maior legado de Caio Prado foi ter “procurado fazer com que teoria e prática se encontrassem. Dessa maneira, elaborou uma interpretação do Brasil que procurou abrir caminho para a ação dos ‘de baixo’ e levou à frente diversas iniciativas ‘práticas’ que não descuidaram da dimensão ‘teórica’”. O professor de ciência política da USP acredita que essa é uma das principais características de Prado, “alguém que não aceitou separar a vida da obra”, o que marcou, ao longo de toda sua trajetória, a busca por uma ‘teoria prática’.

Já para Bernardo Pericás, a atualidade é uma marca de todos os clássicos intérpretes do Brasil no geral. “Para entender quem nós somos, para que possamos identificar todos esses gargalos que nós temos, os nós górdios que temos que desatar, nós precisamos entender nossa realidade, nossa história. E nada melhor que esses clássicos. Hoje se faz no máximo análise conjuntural. Antes os intelectuais, para entender o momento que eles viviam, iam até a colônia, faziam uma análise muito mais profunda das raízes do nosso problema”, afirma.

Os passos de Caio Prado Júnior, marcados pelo vacilar constante ora entre a academia, ora entre a militância política, não são características, atualmente, da intelectualidade brasileira, na opinião de Pericás. “Hoje em dia você tem uma intelectualidade acadêmica brasileira que está muito fechada dentro das próprias paredes da universidade, então você acaba tendo debates academicistas muitas vezes que não transbordam para os debates populares, para os debates políticos mais amplos”, argumenta o historiador.

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