Cabeças frescas

Cabeças frescas

Ricardo Musse

Apesar da reputação como professor da Universidade de Königsberg, Immanuel Kant (1724- 1804) só se tornou reconhecido como filósofo após a publicação, aos 57 anos de idade, da Crítica da Razão Pura. Sua obra anterior não despertou o interesse dos contemporâneos e mesmo a posteridade só a esmiuçou no intuito, quase sempre vão, de localizar os germes de suas três Críticas.

Esse encontro tardio com a descoberta filosófica, no entanto, nem sempre foi regra. Muitos pensadores produziram uma reflexão original em plena juventude, até mesmo no âmbito da “filosofia universitária”.

Friedrich von Schelling (1775-1854), por exemplo, publicou Do Eu Como Princípio da Filosofia e as Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo com apenas 20 anos. Dois anos depois, lançou Ideias para uma Filosofia da Natureza. No ano seguinte, 1798, tornou- -se professor na Universidade de Iena, por indicação de Fichte e Goethe.

A trajetória de Schelling configura um itinerário simetricamente oposto ao de Kant. Garantiu seu lugar na história da filosofia, o galardão de participante simultâneo do idealismo alemão e do romantismo de Iena, graças aos seus primeiros livros, publicados antes dos 30 anos de idade. No entanto, apesar desse êxito inicial, sua obra posterior quase não teve repercussão.

Em seus escritos juvenis, Schelling insurge-se, como Fichte, contra a limitação kantiana do conhecimento ao entendimento discursivo. Mas, na medida em que desenvolve uma “filosofia da natureza”, uma investigação da “pré-história da consciência”, complementa e ao mesmo tempo integra numa unidade maior a “filosofia do espírito” de seu antigo mentor, do qual se afasta ainda mais ao propor a intuição estética como via privilegiada de acesso ao conhecimento absoluto.

Numa sucessão vertiginosa – nada incomum numa época cujo ritmo foi ditado pelos eventos revolucionários na França –, Schelling foi “destronado” com a publicação, em 1807, da Fenomenologia do Espírito. Com esse livro, Hegel, então com 35 anos, imprimiu uma nova direção ao idealismo alemão, apresentando sua postulação de uma “razão histórica” como a conclusão lógica desse movimento, ao mesmo tempo uma síntese e uma superação da filosofia do espírito de Fichte e da filosofia da natureza
de Schelling.

A Fenomenologia do Espírito apareceu como um raio em céu azul.

Até então, Hegel era conhecido apenas como um discípulo de Schelling, seu companheiro de estudos no Seminário de Tübingen (junto com Hölderlin, constituíram um trio de entusiastas da Revolução Francesa), que o convidara para a Universidade de Iena e para coeditar sua revista de filosofia.

Só cem anos depois, em 1907, soube- -se – com a edição, por Nohl, de seus trabalhos de juventude – que Hegel tomara o cuidado de expor a Fenomenologia como um edifício concluído, apagando os vestígios de sua construção.

Nesse mesmo ano, Wilhelm Dilthey publicou uma análise desse conjunto de textos, apresentando-os como obra do “jovem Hegel”, denominação que Georg Lukács popularizou ao colocá-la no título de seu livro sobre essa fase do filósofo.

Com essas publicações, abriu-se caminho para uma compreensão do pensamento de Hegel pela via de uma comparação da Fenomenologia, da Lógica e de sua “filosofia real” com seus primeiros escritos – entre os quais cabe destacar o manuscrito O Espírito do Cristianismo e Seu Destino e o curso ministrado em Iena conhecido como Sistema da Eticidade.

Tal vertente interpretativa extravasa o modelo fornecido pelo próprio Hegel em sua História da Filosofia – padrão de sua recepção pela posteridade –, que salienta, meio esquematicamente, a transição evolutiva e sequencial do idealismo por meio da tríade subjetivo, objetivo, absoluto.

Em 1848, Karl Marx, aos 30 anos, granjeou fama mundial ao publicar um panfleto, o Manifesto Comunista, no qual anunciava uma revolução que se desencadeou efetivamente apenas um mês depois da edição, espalhando- se da França para toda a Europa.

Apesar dessa precocidade, designamos hoje como obra do “jovem Marx” não propriamente o Manifesto, mas seus escritos anteriores. O próprio autor, num Prefácio de 1859 – uma das poucas ocasiões em que trata de sua trajetória intelectual –, considerou-os como mero “acerto de contas” com sua “antiga consciência filosófica”, acrescentando que os abandonou sem muita relutância “à crítica roedora dos ratos”.

A repercussão da publicação, a partir de 1926, de A Ideologia Alemã e dos Manuscritos de 1844 (também ditos de Paris, local de sua redação), comprovou que o juízo de Marx sobre seus primeiros escritos fora, para dizer o mínimo, afetado por um excesso de modéstia.

Nesses dois livros e nos 11 parágrafos de um apontamento que Engels denominou Teses sobre Feuerbach, estão delineadas as linhas gerais do “materialismo histórico”, uma teoria crítica da sociedade a que Marx não retornou a não ser em notas esporádicas.

Na ausência de um texto conclusivo sobre os princípios dessa doutrina – somada aos interesses político-práticos que lhe são inerentes –, não espanta que a investigação de sua obra de juventude tenha se tornado inseparável da aferição do momento em que Marx se tornou “marxista”, delimitação das balizas de um território ainda hoje controverso.


Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP

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