As ondas políticas

As ondas políticas

O bom governante deve entender que está sempre em alto-mar

Shakespeare encena Maquiavel. Próspero, d’A Tempestade, executa uma coreografia política pensada a partir das lições d’O Príncipe. A representação teatral do inglês é espelho privilegiado da política do florentino. No início da peça, Próspero é o legítimo Duque de Milão, lendo em sua biblioteca e desatento às coisas de governo, confiadas ao irmão. Esse desleixo político se constitui num grave erro, que leva o irmão a usurpar-lhe o poder.

Devido ao amor do povo, Próspero não é assassinado, mas posto num barco, com a filha e alguns livros, que lançado mar adentro vai aportar na Ilha governada por Sycorax e habitada por Caliban e Ariel. Ali instaura um principado novo e exercerá o poder de fato, revelando um desejo de conquista até então latente. Para tanto, teve de enfrentar a travessia do mar.

Próspero sintetiza as duas maneiras que Maquiavel descreveu para a conquista e a manutenção do poder: a violência da usurpação e o favor dos cidadãos.

É um César Bórgia, que usurpa o reino alheio e governa pela crueldade –na relação de governante com o resistente Caliban –, e também é um Francesco Sforza, que mantém o governo à custa de afanosos trabalhos – no vínculo com o obediente Ariel.

Próspero expressa o príncipe moderno, ao ver de Maquiavel, que se descobre capaz de instaurar uma nova ordem, aprendendo que a política é marcada por permanentes transformações, de modo que todos os estados, sejam principados sejam repúblicas, vivem o desequilíbrio. Maquiavel insiste nos perigos postos ao príncipe e nos erros que deve evitar, pois a estabilidade é precária e os tempos incertos. Um príncipe deve ter as qualidades para aprender a poder ser mau ou a se valer disso, conforme as necessidades (dominando Caliban); e para desejar ser tido como piedoso (oferecendo liberdade a Ariel).

O mar é a grande metáfora da política. Traduz a importância do tempo, representa o potencial da tempestade capaz de subverter sociedades e simboliza ondas desmesuradas que atingem governantes e governados. Para Maquiavel, a força da água é metáfora da fortuna – árbitra de metade de nossas ações –, juntamente com o livre-arbítrio – outra metade. A fortuna é rio impetuoso que destrói a natureza e a engenharia humana. Porém, quando volta a calma, podem-se fazer canais e barragens, permitindo a construção de um novo espaço político. Após enfrentar a cólera do mar, Próspero reconstrói na Ilha as condições para governar.

Se Próspero fracassou como príncipe da tradição, descobrindo como é frágil a continuidade hereditária, lançado ao mar perde antigas referências e adquire novas. A longa travessia lhe mostrou que a tranqüilidade pode ser indício de iminentes transformações e que a política é prática sem parâmetros permanentes. O bom governante deve entender que está sempre em alto-mar.

Para Maquiavel, a política se altera no ritmo incessante das ondas. Ao final da encenação política, quando tudo parece ordenado, Próspero deixa transparecer que não encontrou as certezas para o exercício da política. Com toda a experiência e saber acumulados, continua lidando com um mundo que exige ser desbravado. Ele carrega o paradoxo de tornar-se poderoso apenas por ter sido lançado ao mar. Talvez por isso, ao final da peça, mostre cansaço da luta ferrenha, quando seriam necessárias novas metamorfoses. Desalentado, sem desejo do poder, descobre-se sem finalidade. Pede que seja libertado da Ilha.

Miguel Chaia
professor do Departamento de Política e da Pós-graduação em Ciências Sociais e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – da PUC/SP

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