‘As mulheres devem chorar’, um texto de Virginia Woolf

‘As mulheres devem chorar’, um texto de Virginia Woolf
Virginia Woolf, 1902 (Arte Andreia Freire / Revista CULT/ Foto George Charles Beresford)

 

Inédito no Brasil, este texto integra a coletânea As mulheres devem chorar… ou se unir contra a guerra, lançado neste mês pela editora Autêntica. O trecho foi originalmente publicado em 1938, no livro Três guinéus, no qual Virginia Woolf desenvolve o argumento de que existe uma estreita conexão entre masculinismo e militarismo, entre patriarcado e regimes ditatoriais. Também inédito no Brasil, Três guinéus tem previsão de lançamento para o segundo semestre, pela Autêntica.

 


Seria uma pena deixar sem resposta uma carta tão notável quanto a sua – uma carta talvez única na história da correspondência humana, pois, quando teria, antes, um homem instruído perguntado a uma mulher como, em sua opinião, se poderia evitar a guerra? Façamos, pois, a tentativa, ainda que esteja condenada ao fracasso.

Façamos, em primeiro lugar, aquilo que todas as cartas instintivamente fazem, um esboço da pessoa a quem a carta é endereçada. Sem alguém cálido e respirando do outro lado da página, as cartas são inúteis. O senhor, pois, que faz a pergunta, é um pouco grisalho nas têmporas. Atingiu a meia-idade exercendo, não sem algum esforço, a advocacia; mas, em geral, sua jornada tem sido próspera. Não há nada de empedernido, mesquinho ou desgostoso em sua expressão. E sem querer lisonjeá-lo, sua prosperidade – esposa, filhos, casa – é merecida. Quanto ao mais, iniciou sua educação em um dos grandes internatos privados, concluindo-a na universidade.

É aqui que surge a primeira dificuldade de comunicação entre nós. Indiquemos rapidamente a razão. Nós dois viemos do grupo que, nesta época de transição, na qual, embora a descendência seja mista, as classes ainda permanecem fixas, é conveniente chamar de classe instruída. Quando nos encontramos pessoalmente, falamos com o mesmo sotaque e conseguimos manter, sem muita dificuldade, uma conversa sobre as pessoas e a política, a guerra e a paz, o barbarismo e a civilização – questões todas, na verdade, sugeridas por sua carta. Além disso, ganhamos ambos a vida com nosso trabalho. Mas… esses três pontos assinalam um precipício, um abismo tão profundamente cavado entre nós que tenho estado aqui sentada, do meu lado, me perguntando se adianta alguma coisa tentar fazer minha fala chegar ao outro lado.

Aqui estamos preocupados tão somente com o fato óbvio, quando se trata de considerar a importante questão de como podemos ajudá-lo a evitar a guerra, de que a educação faz toda a diferença. Algum conhecimento de política, de relações internacionais, de economia é obviamente necessário para entender as causas que conduzem à guerra. A filosofia e até mesmo a teologia podem proveitosamente dar sua contribuição. Ora, a pessoa sem instrução, como o senhor concordará, o homem com uma mente pouco treinada provavelmente não poderia tratar dessas questões de maneira satisfatória. A guerra, como resultado de forças impessoais, está, pois, além da compreensão da mente pouco instruída, pouco treinada. Mas a guerra como resultado da natureza humana é outra coisa. Não acreditasse o senhor que a natureza humana, as razões, as emoções do homem e da mulher comum conduzem à guerra, não teria escrito pedindo nossa ajuda.

Felizmente há um ramo da educação que se inscreve sob a categoria de “educação sem custo” – aquele entendimento dos seres humanos e suas motivações que, desde que a palavra seja expurgada de suas associações científicas, se pode chamar de psicologia. Mas embora muitos instintos sejam tidos, em maior ou menor grau, como comuns a ambos os sexos, guerrear tem sido, desde sempre, hábito do homem, não da mulher. A educação e a prática desenvolveram aquilo que pode ser uma diferença psicológica transformando-a em algo que pode ser uma diferença física – uma diferença de glândulas, de hormônios. Seja como for, um fato é indiscutível – raramente, no curso da história, um ser humano foi abatido pelo rifle de uma mulher; os pássaros e os animais foram e são, em sua grande maioria, mortos por vocês, não por nós.

Como, pois, vamos compreender o seu problema, e, se não conseguirmos, como poderemos responder a sua pergunta sobre como evitar a guerra? A resposta baseada em nossa experiência e nossa psicologia – por que guerrear? – não é uma resposta que tenha a mínima utilidade para vocês. Obviamente há, para vocês, alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação em guerrear, que nós nunca sentimos ou de que nunca extraímos prazer. Uma completa compreensão só poderia ser alcançada por transfusão de sangue e transfusão de memória – um milagre ainda fora do alcance da ciência. Mas nós, que vivemos agora, temos um sucedâneo para a transfusão de sangue e a transfusão de memória que deve servir, em caso de necessidade. Há aquele maravilhoso, perpetuamente renovado e até agora amplamente inexplorado recurso para compreender as motivações humanas que é proporcionado em nossa época pela biografia e pela autobiografia e pelos jornais diários. É à biografia, pois, que nos voltaremos, em primeiro lugar, rápida e brevemente, para compreender o que a guerra significa para vocês.

Em primeiro lugar, isto, da vida de um soldado:

Tive a mais feliz das vidas que se pode ter, e sempre trabalhei em prol da guerra, e agora entrei na maior de todas, na flor da idade, para um soldado…. Graças a Deus, partimos dentro de uma hora. Que regimento magnífico! Que homens, que cavalos! Dentro de dez dias, espero, Francis e eu estaremos cavalgando lado a lado em direção aos alemães.

A isso acrescentemos estas palavras, da vida de um piloto de guerra:

Falamos da Liga das Nações e das perspectivas de paz e desarmamento. Sobre esse assunto, ele não era propriamente militarista, mas marcial. A dificuldade para a qual não conseguia encontrar nenhuma resposta era que, se a paz permanente fosse alguma vez alcançada, os exércitos e as marinhas deixariam de existir, não haveria nenhum meio de vazão para as características viris que as batalhas desenvolveram, e a constituição humana e o caráter humano acabariam por se deteriorar.

Aqui, pois, estão três motivos que levam o sexo que o senhor representa a lutar: a guerra é uma profissão; uma fonte de felicidade e grandes emoções; e também um meio de vazão das características viris, sem as quais os homens se deteriorariam. Mas esses sentimentos e opiniões não são, de modo algum, universalmente partilhados pelo sexo que o senhor representa; isso é demonstrado pelo seguinte extrato de outra biografia, a vida de um poeta que foi morto na guerra – Wilfred Owen:

Tive uma iluminação que nunca será absorvida pelo dogma de qualquer igreja nacional: a saber, que um dos mandamentos essenciais de Cristo era: Passividade a qualquer preço! Padeça desonra e desgraça, mas nunca recorra a armas. Seja maltratado, ultrajado, deixe-se matar; mas nunca mate…. Vê-se, assim, que o puro cristianismo nunca combinará com o puro patriotismo.

E entre algumas notas para poemas que ele não viveu para escrever estão estas:

A artificialidade das armas… A desumanidade da guerra… A insuportabilidade da guerra… A horrível bestialidade da guerra… A insensatez da guerra.

A julgar por essas citações, é óbvio que o mesmo sexo sustenta opiniões diferentes sobre a mesma coisa. Mas é óbvio também, a julgar pelos jornais de hoje, que, não importa quantos dissidentes haja, os de seu sexo são, hoje, em sua grande maioria, a favor da guerra. Eles são da opinião de que Wilfred Owen estava equivocado; que é melhor matar do que se deixar matar. Entretanto, uma vez que a biografia mostra que são muitas as diferenças de opinião, é evidente que deve haver alguma razão preponderante na gênese dessa esmagadora unanimidade. Deveremos chamá-la, a bem da brevidade, de “patriotismo”? Mas a irmã do homem instruído – o que o “patriotismo” significa para ela? Tem ela as mesmas razões para se orgulhar da Inglaterra, para amar a Inglaterra, para defender a Inglaterra? Tem ela sido “imensamente abençoada” na Inglaterra?

A história e a biografia, quando inquiridas sobre esses pontos, parecem demonstrar que o lugar dela na morada da liberdade tem sido distintamente diferente do lugar de seu irmão; e a psicologia parece sugerir que a história não deixa de ter seus efeitos sobre a mente e o corpo. Portanto, a interpretação que ela faz da palavra “patriotismo” pode muito bem diferir da dele. E essa diferença pode fazer com que se torne extremamente difícil para ela compreender a definição de patriotismo dada por ele e os deveres que ele impõe. Parece óbvio que pensamos diferente por termos nascido diferentes; há um ponto de vista do soldado e do piloto de guerra; um ponto de vista de um Wilfred Owen; o ponto de vista do patriota; e o ponto de vista da filha de um homem instruído. O próprio clero, que faz da moralidade sua profissão, nos dá conselhos divergentes – sob algumas circunstâncias é certo guerrear; sob nenhuma circunstância é certo guerrear.

Mas além dessas imagens da vida e das opiniões de outras pessoas, dessas biografias e histórias, há também outras imagens – imagens de fatos atuais, fotografias. Fotografias não são, obviamente, argumentos dirigidos à razão; elas são simplesmente asserções factuais dirigidas aos olhos. Vejamos, pois, se quando olhamos para as mesmas fotografias sentimos as mesmas coisas.

Aqui, na mesa à nossa frente, há algumas fotografias. O governo espanhol as envia com paciente pertinácia mais ou menos duas vezes por semana! Não são fotografias agradáveis de se olhar. São fotografias de cadáveres, na maior parte. A coleção desta manhã contém uma que pode ser o corpo de um homem, ou de uma mulher; está tão mutilado que poderia ser, por outro lado, o corpo de um porco. Mas essas são certamente de crianças mortas, e aquilo é, sem dúvida, parte de uma casa. Uma bomba pôs a parede abaixo; ainda se vê uma gaiola de passarinho balançando onde ficava, supostamente, a sala de visitas, mas o resto da casa mais parece uma caixa de fósforos suspensa no ar.

Essas fotografias não constituem um argumento; são simplesmente exposições de fatos dirigidas aos olhos. Mas o olho está conectado com o cérebro, o cérebro com o sistema nervoso. Esse sistema envia suas mensagens como um raio, que atravessa cada uma das lembranças do passado e cada uma das sensações do presente. Quando olhamos para essas fotografias alguma fusão se dá dentro de nós; por mais diferentes que possam ser a educação e as tradições que nos embasam, nossas sensações, entretanto, são as mesmas. O senhor as chama de “horror e asco”. Nós também as chamamos de horror e asco. E as mesmas palavras nos vêm aos lábios. A guerra, diz o senhor, é uma abominação, um barbarismo; a guerra deve ser interrompida a qualquer preço. E nós ecoamos suas palavras. A guerra é uma abominação, um barbarismo; a guerra deve ser interrompida. Pois agora estamos, ao menos, olhando para a mesma imagem; estamos vendo com o senhor os mesmos cadáveres, as mesmas casas destroçadas.

Essa emoção, essa fortíssima emoção, parece exigir algo mais forte que um nome escrito numa folha de papel, uma hora desperdiçada ouvindo discursos, um cheque preenchido com uma quantia qualquer que possamos nos permitir gastar – digamos, um guinéu. Algum método mais enérgico, algum método mais ativo de expressar nossa crença de que a guerra é bárbara, de que a guerra é desumana, de que a guerra, como disse Wilfred Owen, é insuportável, horrível e brutal, parece ser necessário. Mas, retórica à parte, de que método ativo dispomos?

Vocês, naturalmente, poderiam, uma vez mais, pegar em armas – na Espanha, por exemplo – em defesa da paz. Mas esse, supostamente, é um método que vocês rejeitaram. De qualquer maneira, esse método não está disponível para nós; tanto o Exército quanto a Marinha estão vedados ao nosso sexo. Tampouco nos é permitido fazer parte da Bolsa de Valores. Assim, não podemos usar nem a pressão da força nem a pressão do dinheiro. Não podemos pregar sermões nem negociar tratados. E também, embora seja verdade que podemos escrever artigos ou enviar cartas para a imprensa, o controle da imprensa – a decisão sobre o que imprimir e o que não imprimir – está inteiramente nas mãos dos que pertencem ao seu sexo. É verdade que há vinte anos passamos a ser aceitas no Serviço Público e na Ordem dos Advogados; mas nossa posição ali é ainda muito precária e nossa autoridade, mínima.

Não apenas somos incomparavelmente mais fracas do que os homens de nossa própria classe; somos mais fracas do que as mulheres da classe operária. Se as operárias do país dissessem: “Se forem à guerra, nós nos recusaremos a fabricar munições ou ajudar na produção de bens”, a dificuldade de entrar em guerra aumentaria consideravelmente. Mas mesmo que todas as filhas dos homens instruídos deixassem de utilizar seus instrumentos de trabalho amanhã, nada de essencial, seja na vida da comunidade, seja no esforço bélico, seria perturbado. Nossa classe é a mais fraca de todas as classes do Estado nacional. Não temos nenhuma arma com a qual fazer valer nossa vontade – nenhuma arma a não ser uma influência ilusoriamente “indireta”, o arduamente conquistado voto, e uma outra. Por alguma razão, nunca satisfatoriamente explicada, o direito ao voto, em si de modo algum desprezível, estava misteriosamente associado a outro direito, de um valor tão grande para as filhas dos homens instruídos, que praticamente todas as palavras do dicionário foram por ele transformadas, inclusive a palavra “influência”. O senhor não julgará que essa afirmação é exagerada se explicarmos que ela se refere ao direito de ganhar a própria vida.

> Compre a edição 243 em nossa loja digital
> Assine a CULT digital e tenha acesso à integra de todos os textos da edição 243

Deixe o seu comentário

TV Cult