As idéias generosas do Norte

As idéias generosas do Norte

A filosofia política produzida nos EUA criou teorias preocupadas com os problemas internos a respeito de direitos individuais e problemas externos de relacionamento com os que não vivem segundo os padrões modernos do Ocidente

Quando as tropas dos Estados Unidos deixaram o Vietnã, o cartunista Henfil fez uma tira em quadrinhos na qual, no primeiro quadrinho, expressava preocupação. Estranho! Henfil, um homem de esquerda, preocupado com a saída das tropas em vez de comemorar? Aí vem o segundo quadrinho, no qual a pergunta era: “Para onde irão agora?”.

Essa é a idéia de uma boa parte dos brasileiros a respeito da filosofia política dos Estados Unidos. Outras pessoas, como Tiradentes, Monteiro Lobato e Anísio Teixeira, olharam a “América” de outra forma – eles viram lá o que Karl Marx também viu: as grandes possibilidades da democracia tinham suas cartas na mesa no país da bandeira listrada.

A democracia não é, nos Estados Unidos, um regime de governo, ela é uma forma social de vida. Poucos estadunidenses, conservadores, liberais ou radicais, imaginam que se possa viver de uma outra forma que não em uma democracia. Votar ou ser votado, representar ou ser representado importa pouco, é sabido, mas viver sob a regra do aumento de oportunidades para muitos é um ideal que não sai da cabeça dos que nasceram nos Estados Unidos e dos milhares que não nasceram, mas que lutam para entrar no país e usufruir da “América”.

Por isso mesmo, a filosofia política produzida nos Estados Unidos nos últimos anos criou teorias preocupadas com os problemas advindos da democracia: problemas internos a respeito de direitos individuais e de justiça social, por um lado, e problemas externos de relacionamento com os que estão sob o teto não-democrático ou que não vivem segundo os padrões modernos do Ocidente, por outro lado.

Para cada um dos problemas acima, os Estados Unidos forneceram ao mundo uma filosofia política de primeira linha. Robert Nozick escreveu sobre direitos individuais (e propriedade); John Rawls escreveu sobre igualdade e Justiça, e Richard Rorty escreveu sobre lealdade.

Robert Nozick (1938 – 2002) é o autor do clássico Anarchy, State and Utopia (1974), em que advoga que os direitos básicos são os de vida, liberdade e propriedade. Todavia, é o direito de propriedade – a propriedade legalmente adquirida – que pode, de certo modo, ser a base para outros direitos. Um Estado que infrinja esse direito começaria a promover a injustiça, seja ele um estado democrático ou não. Assim, qualquer que seja o modo de distribuição de dinheiro que a democracia possa promover, se insistir em tal tarefa, estará infringindo um direito básico, que é a garantia da propriedade legal, o que iniciaria uma situação de corrupção dos direitos.

 Em geral, o contraponto a esse tipo de pensamento no plano liberal é de John Rawls (1921 – 2002), no seu clássico Theory of Justice (1972). A parte central do trabalho explicita dois princípios para um novo e hipotético contrato social. O primeiro princípio diz que cada indivíduo tem de ter o direito à máxima igual liberdade compatível com uma liberdade do mesmo tipo para todos. O segundo princípio tem duas partes; na primeira parte afirma-se que as diferenças sociais e econômicas têm de estar atreladas à abertura igual para todos de empregos e posições, em condições justas de igualdade de oportunidades; na segunda parte fala-se que as tais diferenças são justificadas somente se dão vantagem em uma situação pior. O primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo. Tais princípios não são regras para a política propriamente dita, mas leis para o funcionamento melhor da sociedade como um todo, em sua dinâmica total que interliga política, economia e vida social como elementos da estrutura da comunidade moderna justa.

O debate entre rawlsonianos e nozickinianos é, em grande medida, atinente ao funcionamento interno da democracia – em especial a democracia estadunidense. O ponto de atenção de Richard Rorty (1931), principalmente em seus Philosophical papers (três volumes publicados entre 1991 e 1998), no que esse filósofo tem de diferente dos outros, é o modo como ele propõe redescrever termos da polêmica ético-política a respeito de como o Ocidente pode lidar com “os outros”. Rorty fornece meios para uma alteração da política externa da democracia estadunidense.

Em geral, quando “os outros” agem de maneira a serem leais em relação a seus clãs e nações, eles são acusados de praticar atos não-racionais e, no limite, não-morais. Quem é leal ao clã não pode ser devoto da humanidade e servo da razão e, então, estará sempre na iminência de cometer falta moral. Essa forma de pensar, para Rorty, advém da ética ligada à idéia de que regras morais são produtos da razão a-histórica. Para ele, uma ética que leve em consideração a gênese de nossos procedimentos morais mostrará que aprendemos como “comportamento moral” antes a lealdade aos que estão mais próximos – família ou clã, e depois cidade ou nação – do que a lealdade aos que estão mais distantes. Assim, se a moralidade é construída historicamente, não há como não entendê-la como sendo graus de lealdade. Descrevendo a moralidade segundo graus de lealdade, poder-se-á, talvez, dizer dos “outros” que eles, ao serem fiéis a interesses que parecem particulares para “nós”, estão sendo tão morais quanto aqueles que fizeram de seus grupos a humanidade e de seu deus a razão.

Ficaria mais fácil solicitar dos “outros” que se sentassem à mesa de negociação se os tratássemos tão morais quanto “nós”, uma vez que o que está em questão é a lealdade ao que fornece mais vínculos, sendo que é a lealdade, segundo esse entendimento, o elemento originário da moralidade. Ficaria mais fácil solicitar de “nós” que nos sentássemos à mesa de negociação se pudéssemos admitir que a chamada “humanidade” não vai aderir ao que é a “nossa causa” imediatamente, uma vez que tanto “nós” quanto esse grupo enorme, que é denominado de “humanidade”, ganhamos fiéis de maneira paulatina, a partir da modificação que fazemos em relação às nossas lealdades iniciais, que são para com o clã, para com a cidade, para com a nação etc.

A propriedade ganha por meios legítimos (de Nozick), a igualdade liberal (de Rawls) e os laços de lealdade como bases da construção moral (de Rorty) formam, sem dúvida, um conjunto de idéias que compõem um legado inte-le-c-tual, bastante atual, que vem do Norte e que, se absorvido por nós, brasileiros, não deixaria nem Tiradentes, nem Lobato, nem Anísio Teixeira descontentes. Eles ficariam felizes se nossa juventude pudesse aprender a distinguir o que John Dewey (1859 – 1952) identificava, exatamente para ressaltar as diferenças de seu próprio país, por meio de dois nomes: a “América” – a idéia de construção de um novo e melhor mundo – e os “Estados Unidos” – o complexo indus-trial-militar. Os Estados Unidos alimentariam a preocupação de Henfil. A “América”, cheia de belas e generosas filosofias sociais, nos daria os sonhos, sem os quais a vida fica pequena.

Paulo Ghiraldelli Jr.
doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Ocupa o cargo de Diretor Científico do Centro de Estudosem Filosofia Americana (www.cefa.org.br) e de professor do Pragmatism Archive da Oklahoma State University. É editor, junto com John Shook, da revista internacional Contemporary Pragmatism, publicada pela Rodopi, de Amsterdã, e do Portal Brasileiro da Filosofia (www.filosofia.pro.br). Coordenador de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ibitinga (Fundação Municipal Pública). Autor, dentre outros, de Richard Rorty (Vozes, 1999), Neopragmatismo, Escola de Frankfurt e Marxismo (DPA, 2001), Introdução à filosofia (Manole, 2003) e Filosofia e história da educação brasileira (Manole, 2003).

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