A reforma de Previdência e a “Traição de Tabata”

A reforma de Previdência e a “Traição de Tabata”
A deputada federal Tabata Amaral (PDT), criticada por ter votado a favor da reforma da Previdência (Foto: Divulgação)

 

A esquerda acordou nesta quinta-feira em depressão e fúria por causa da aprovação da reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara Federal. Entendo a frustração, uma vez que este projeto em particular é um pacote de maldades daqueles que governantes só ousam propor, se muito, nos primeiros seis meses de mandato. Mas muitas pessoas, além disso, demonstram uma genuína surpresa com a aprovação da proposta e isto, sim, me parece intrigante. A aprovação da reforma da Previdência era apenas uma questão de “quando” e de “quanto” e nada mais. Era mais barbada prever a aprovação da reforma da Previdência do que a vitória de Bolsonaro no segundo turno depois que Lula fechou questão sobre uma candidatura petista para enfrentar o antipetismo. E olha que naquele caso já era fácil demais.

Desde que Paulo Guedes expôs a sua proposta, a única força política que se apresentou com energia suficiente para lhe atravancar o caminho foi o desastre na articulação política do governo Bolsonaro. Que produziu como consequência o aumento exponencial dos custos exigidos pelos parlamentares, principalmente dos partidos com um teor de 0% de ideologia e 100% de fisiologia, que a mídia, em um equívoco estúpido, chama de centrão. Nada que uma promessa de generosa liberação de emendas parlamentares não pudesse resolver.

Em segundo lugar, como em política não há espaço vazio e o que não falta no Congresso são cobras criadas, o presidente da Câmara ocupou voluptuosamente o espaço deixado às moscas por um governo sem apetite ou competência para a articulação política. E assim, Rodrigo Maia foi para a reforma da Previdência até agora o que Eduardo Cunha foi para o impeachment de Dilma: mostrou que é ele quem manda no Congresso e não o governo, e que o presidente da República pode até ter uma coalizão forte, mas quem afinal faz as entregas, se quiser, é o presidente da Câmara.

De resto, se o presidente e os seus garotos não atrapalhassem, hipótese que não era desprezível ainda há pouco, a aprovação de uma reforma da Previdência seria bastante previsível. Primeiro, porque a entrega da reforma foi a condição fundamental para que a elite endinheirada do Sul e do Sudeste aderisse a Bolsonaro em 2018 e aceitasse usar o próprio prestígio e influência para cristianizar o paganismo bolsonarista diante do sistema produtivo e financeiro do país e o sistema de mídia que orbita ao redor destes. Era claro, portanto, que Bolsonaro não teria como manter o apoio de um setor extremamente influente da sociedade brasileira, se não se demonstrasse capaz de entregar tal reforma. E Paulo Guedes, o principal fiador desses sistemas na administração Bolsonaro, sempre fez questão de lembrar ao governo que a sua parte do pacto eleitoral precisava ser cumprida.

Nada disso garantiria coisa alguma, contudo, não fosse a crise econômica, que é persistente e, para muitos setores, devastadora. No quinto ano consecutivo em que a economia do país não sai do lugar, o emprego desapareceu, as pessoas sentem que a sua vida está pior, e uma geração inteira de brasileiros parece estar perdendo as esperanças. Cinco anos é uma vida. Por outro lado, Paulo Guedes, a Globo News e todos os envolvidos na defesa desta proposta conseguiram transformar o cenário da crise econômica na principal alavanca para a obtenção da reforma da Previdência que desejavam. E a venderam à opinião pública como a bala de prata para que o país volte a crescer.

Em contrapartida, ninguém foi capaz de apresentar uma outra abordagem da reforma fora do quadro interpretativo economicista, ninguém foi capaz, enfim, de desafiar o enquadramento da Previdência como gasto público dos economistas de Chicago. Cabia à esquerda fazer isso. De forma que, antes de perder duramente, na madrugada da quinta-feira, na votação da reforma no Plenário do Congresso, a esquerda já havia perdido, ainda mais fragorosamente, a disputa pela interpretação desta reforma na opinião pública.

E neste caso a esquerda praticamente perdeu por W.O. De que voz influente da esquerda e da centro-esquerda você viu surgir interpretações da reforma da previdência em que a massa prestou atenção e a que uma parte importante da sociedade aderiu? Fora uns vídeos recentes e pouco disseminados de Ciro Gomes, a esquerda não se fez ouvir, não disputou a interpretação dos fatos, não formulou um projeto alternativo que envolvesse o público, não liderou campanhas nem engajou pessoas. A esquerda pós-2015 parece ter perdido a capacidade de falar à massa e de empolgar multidões. E olha que estou me referindo principalmente ao espaço em que hoje se joga o grande jogo da política na esfera pública, a saber, os ambientes digitais, tão eficientemente ocupados pela nova direita. A esquerda simplesmente não tem aparecido para jogar. Aliás, nada diferente do que aconteceu com a PEC do teto do gasto público e com a reforma trabalhista

No campo político, deu-se o mesmo. Oficialmente, o bloco da oposição tem 141 deputados e o governo tem 350. 22 são oficialmente independentes. Pois o governo conseguiu 379 votos a favor da reforma da Previdência, enquanto os votos contra foram 131. Façam, pois, as suas contas. A oposição de esquerda tem pouco mais de 25% da Câmara, a coalizão governamental tem um pouco abaixo de 70%, mas pode expandir no máximo a 75%, como aconteceu na quinta. A aprovação de uma reforma como esta requer 3/5 dos deputados, mas o governo conseguiu 71 votos a mais do que precisaria. Em suma, amigos, foi uma derrota feia para a oposição.

Como disse-me hoje um amigo, a oposição deveria era estar se perguntando por que, mesmo com a mais impopular das reformas do Estado, mesmo com um governo batendo cabeça há seis meses e com o índice de apoio popular mais baixo da série histórica, mesmo com uma crise econômica que não dá sinais de declínio, ainda assim a oposição não consegue convencer e liderar ninguém além dos 25% inerciais. A esquerda perdeu a capacidade de negociar, convencer e liderar também no interior do próprio sistema parlamentar. Além de ter perdido a capacidade de formular propostas e aglutinar pessoas ao redor delas. Prova disso é que se chegou ao Plenário simplesmente em uma situação, binária, de tudo ou nada: ou se era contra a reforma ou a favor desta reforma, porque outro projeto de reforma não havia à mesa. Nunca houve, aliás. E muita gente preferiu uma reforma ruim e cruel a nenhuma reforma, é bom que se diga.

A frustração da esquerda com o modo como as coisas se conduziram na votação da reforma deveria ser uma frustração consigo mesma. Com a sua incapacidade demonstrada, desde 2015, de liderar a política nacional nas ruas, nos ambientes digitais e no parlamento. Mas pelo que depreendo da fúria registrada nas mídias sociais, a esquerda preferiu encontrar um culpado para onde direcionar a sua raiva, na figura da jovem deputada pedetista, Tabata Amaral. Parece até que a deputada é que teria esmagado todas as esperanças da esquerda na votação da reforma da Previdência. No fundo, sabe-se que o voto e a opinião dela não fizeram a menor diferença no conjunto dos 379 que aprovaram o projeto, que provavelmente os 265 mil eleitores que a constituíram deputada devem ter achado, inclusive, que o seu voto era “muito coerente”. Assim como se sabe que a aprovação da reforma da Previdência eram favas contadas e que ela aconteceu porque Rodrigo Maia a fez acontecer. Mas como odiar Maia não tem graça nem novidade, e a esquerda é autodestrutiva, que tal ficar com raiva de Tabata Amaral, linchá-la nas redes sociais e empurrar para a direita a única figurinha nova e influente que apareceu no álbum da esquerda nos últimos tempos?

Como se vê, a esquerda perdeu a capacidade de pautar e liderar a opinião pública, de articular e liderar a política partidária, mas continua craque em achar bodes expiatórios para o que não consegue fazer e em consolar-se com explicações fáceis e fracas dos próprios fracassos. Assim, o ego fragilíssimo da esquerda pós-2015 faz com que a sua leitura da realidade seja cada vez mais sentimental e menos política. Desta forma, o dia depois da aprovação da reforma da Previdência em primeiro turno foi o dia do melodrama “A Traição de Tabata”, quando deveria ter sido a ocasião de uma séria avaliação política sobre as razões de ter perdido, de novo, tanto na votação no parlamento quanto na opinião pública. Mas isto haveria de requerer uma serenidade e uma maturidade que, aparentemente, não estão disponíveis. E solta o bolero, que hoje é dia de “llorar la perfidia de tú amor”.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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