A cabeça de um criador

A cabeça de um criador

Emicida na sede da Laboratório Fantasma, na zona norte de São Paulo (Foto: Ica Martinez)

Amanda Massuela
Colaboração Eric Campi e Paulo Henrique Pompermaier

A cinco dias da estreia da Laboratório Fantasma na 42º edição da São Paulo Fashion Week, o clima na sede da empresa criada pelos irmãos Leandro Roque de Oliveira e Evandro Fióti era de ansiedade. Pelo menos desde agosto, todas as atenções da equipe estavam voltadas ao desfile que marcaria a entrada definitiva da marca de Emicida no circuito da moda brasileira. “É mais uma maneira de contar uma história”, diz o rapper à reportagem da CULT no escritório da LAB, na zona norte de São Paulo. “Assim como o cinema, a música e as artes visuais, a moda também é uma plataforma por onde a gente pode contar uma história, e por que não uma história sobre representação?”

Sete anos depois do lançamento da sua primeira mixtape, “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…”, Emicida quer ocupar todos os espaços. Aos 31 anos, está mais interessado em construir pontes do que em limitar seus caminhos artísticos. Quer dialogar com os mais diversos públicos, da periferia ao centro, do Brasil à Europa, mas, principalmente, quer ouvir. E não para “se concentrar no seu próximo ataque”, como era de costume durante as batalhas de rap do metrô Santa Cruz, onde começou a rimar, mas quer manter os ouvidos abertos com a intenção de “construir”.

“É uma questão de maturidade, eu começo a refletir sobre as coisas que vou deixar no mundo. Tem um filósofo chamado Sêneca que diz que a única forma de a gente viver para sempre é compartilhando o que aprendemos, e é o que estou tentando fazer. Eu vou para a África, pego umas histórias, trago para cá e compartilho com todo mundo, e não é todo mundo do meu bairro, da minha cor. É todo mundo. E cada um vai ter uma leitura válida daquilo”, afirma.

Ao escolher o cinema, o rap ou a passarela para contar essas histórias, Emicida deixa bem claro que é “dono de sua cabeça”. “Eu sou livre, vou para onde eu bem entender, as pessoas concordando ou não. Eu vou na minha quebrada e os caras estão feliz pra caralho, não é a favela que faz esse julgamento”, diz, referindo-se aos críticos que por vezes o acusam de dar muita atenção ao mainstream. “Eu quero que as pessoas falem sobre como esses lugares [a moda, o cinema, a música] podem ser mais plurais. Existem pessoas no Brasil que se sentem muito confortáveis com a exclusão, e elas ainda detêm muito poder. O que eu posso fazer é usar a minha criatividade para quebrar essas barreiras aos poucos.”

Emicida na sede da Laboratório Fantasma, na zona norte de São Paulo (Foto: Ica Martinez)
Emicida na sede da Laboratório Fantasma, na zona norte de São Paulo (Foto: Ica Martinez)


Um samurai africano

Yasuke foi um homem negro de origem africana que, sequestrado no período da escravidão, acabou indo parar no Japão, onde se transformou em um grande samurai. É ele quem inspira a coleção homônima de roupas lançada pela Laboratório Fantasma, no dia 24 de outubro, durante a quinta maior semana de moda do mundo. “É um personagem que quebra uma série de estereótipos sobre lugares que nos pertencem e que [teoricamente] não nos pertencem”, explica Emicida, que sempre foi aficionado pela cultura japonesa. “Passei a adolescência inteira lendo mangá e assistindo animê. Eu até falo uns bagulhos em japonês”, brinca.

Nas peças, há estampas de origamis e ideogramas japoneses; as calças e bermudas são feitas com elásticos e zíperes para que se ajustem com facilidade a vários tipos de corpos. Na semana que antecedeu o desfile, o rapper conta que praticamente “morou” em um estúdio, acertando detalhes da trilha, gravando e fazendo alterações nas músicas até o último minuto. Sentia que precisa “fazer justiça” a toda a expectativa que havia em torno daquele momento, que, apesar de não ser a sua estreia no mundo da moda – esta aconteceu em 2015, na Casa de Criadores –, não deixava de ser um episódio extremamente “grandioso” em sua trajetória.

“Houve um momento na minha vida em que eu achei que a minha perspectiva não era importante, que eu tinha que ficar de cabeça baixa, calado, passar batido, porque eu tinha medo. O racismo, no Brasil, cria um medo em você”, diz. Mas desde que lançou o videoclipe para “Triunfo”, em 2009, música que o projetou na cena do rap nacional, ele soube que queria estar em outras plataformas, da maneira que fosse, com as ferramentas que tivesse à disposição.

De lá para cá, Emicida trabalhou com profissionais como os diretores João Wainer, Katia Lund e o estilista João Pimenta, por exemplo. “Eles têm uma criatividade que passeia livre, o que é muito nobre na cabeça de um criador – e eu acho que a gente também tem essa liberdade. Às vezes a gente limita os pretos e os pobres a querer contar só uma história, como se tudo o que produzimos tivesse que ser um retrato fiel do ambiente de onde viemos. Mas isso é uma maneira de restringir as pessoas a um único discurso. Cada um tem que falar do que quiser, e nesses últimos tempos eu tenho pensado muito nisso.”

E ele fala de racismo, violência policial e desigualdade social, mas também fala de amor. Emicida atribui seu sucesso ao apoio e ao respaldo da periferia. “Por qual outro motivo seria? Minhas músicas não são das mais comerciais, os temas de que eu falo são difíceis, duros, em um momento em que a música está ficando cada vez mais diluída”, diz. “Eu vou no contrassenso. Vez ou outra, alguém dorme no bagulho e eu invado o mainstream. A favela vê uma coisa de representação muito forte em nós, e isso é nítido pelos lugares por onde eu circulo.”

Glauber Rocha correndo pela África

Talvez uma de suas experiências mais radicais, junto da SPFW, tenha sido levar para o cinema o registro da sua viagem a Cabo Verde e Angola, em março de 2015, jornada que deu origem a Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa, disco lançado no ano passado. O documentário, intitulado Sobre noiz, é justamente uma imersão no processo de criação das músicas que compõem o álbum e que foram gestadas, em parte, no continente africano.

“Pela primeira vez eu era só uma pessoa, eu não era uma pessoa preta. Embora pareça uma coisa sutil, é algo muito significativo na vida de um ser humano, porque você tem o direito de não ser nada, não há uma expectativa negativa em torno de você. E acho que, quando a gente fala sobre humanidade, a gente fala sobre isso”, relembra Emicida, que já viajou ao continente três vezes. “Claro que tem uma pá de história triste, mas eu estava concentrado em observar a sutileza no modo de vida dos caras. É um sonho de todos nós conhecer a África, porque nós [negros] não sabemos de onde viemos.”

O documentário estreou no dia 14 de setembro no Centro de Arte e Esportes Unificado (CEU) Jaçanã, na periferia de São Paulo, com ingressos gratuitos. Depois passou pelos CEUs Três Lagos, na zona sul, e Jambeiros, em Guaianazes. Sua última exibição aconteceu no Cine Olido, na região central. Embora tenha recebido convites para exibir o filme em “lugares nobres da cidade”, Emicida afirma que histórias como as que conta no documentário “fazem uma diferença gigantesca na vida das pessoas nas periferias”.

“A nossa cultura e a arte em geral foram tão elitizadas que hoje em dia o povo observa essas manifestações e acredita que não é para eles. É muito triste que a gente tenha um lugar lindo como o Theatro Municipal, mas que boa parte da população nunca tenha entrado ali”, critica. “Você precisa ter algumas credenciais para pertencer ao centro expandido, Augusta, Pinheiros. Para mim e para todo mundo aqui [na Laboratório Fantasma] era muito simbólico começar as exibições pela quebrada, que é de onde a gente veio e é para onde a gente sempre tem que devolver alguma coisa.” Ele também pretende levar o mesmo desfile que vai para a passarela da SPFW, para o circuito dos CEUs.

Emicida se inspira em outros que, segundo ele, “criaram um ambiente possível” para que sua existência como artista se tornasse realidade. Na entrada da Laboratório Fantasma, um muro grafitado mostra as figuras de Sabotage, Dinah Di e DJ Primo, por exemplo, precursores do rap nacional. “Há quinze anos o Sabotage já estava no cinema. São caminhos que foram iniciados antes de mim e eu me sinto muito feliz de poder dar continuidade a algumas dessas linguagens”, diz. Assassinado em janeiro de 2003, Sabotage atuou em O invasor (2002), de Beto Brant, e no clássico Carandiru (2003), de Héctor Babenco, além de ter lançado um álbum que já nasceu como um dos grandes clássicos do gênero no país – Rap é compromisso, de 2000.

“Os caras falaram que o Sabotage estava vendido, falaram dos Racionais, que são caras que me inspiraram e que se preocuparam em contar histórias maiores”, defende o rapper. Faz parte dos planos de Emicida seguir os passos de seus ídolos e talvez ir até onde nenhum deles jamais foi. Ele conta que, cada vez mais, tem “sentido a necessidade de fazer uma coisa maior”, como um longa-metragem. “O Sobre noiz é uma experiência documental, a gente foi com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Tipo Glauber Rocha correndo pela África”, afirma. “Mas eu acho que a gente também devia mergulhar na ficção.”

Ao fim das quatro sessões de Sobre noiz, Emicida participou de um bate-papo com a plateia. Queria ouvir. Não com a ideia de fazer qualquer tipo de “pesquisa de campo”, mas para “conversar com pessoas que têm uma perspectiva de vida muito rica” e diferente da dele. “Quando fazemos isso, estamos falando que o ponto de vista delas importa”, afirma.“Elas [as pessoas que vivem nas periferias] precisam ocupar esses lugares. Precisam estar dentro do cinema, do teatro, para fazer pressão, para mudar a forma como o Brasil conta a sua história. Até que a gente chegue definitivamente nos livros de história oficiais.”

(1) Comentário

  1. Gênio por Gênio. Da quebrada pro mundo… Sem perder suas raízes. Mas sem se limitar.
    “Eu ainda sou o Emicida da Rinha, lotei casas do sul ao norte, mas esvaziei a minha…”

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